quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Uma temporada no inferno e a correspondência. Rimbaud.

De uma relação de clássicos e, de tanto ouvir falar, encomendei o livro de Arthur Rimbaud, Uma temporada no inferno, seguido de sua correspondência, especialmente, a que ele manteve a partir de suas viagens pela África, onde ele empreendeu no mundo dos negócios. Esta correspondência abrange estes seus negócios e a relação com os seus familiares. Abrange ainda, a que ele manteve com Paul Verlaine, em seus tempos de escritor. Com Verlaine ele manteve um relacionamento que se situou entre o infeliz e o trágico, já que até tiro houve.
Quase a obra completa de Rimbaud.


Creio que Rimbaud foi um dos seres humanos mais infelizes que este mundo já conheceu. O título de sua curta obra, Uma temporada no inferno, bem traduz o imenso inferno que foi a sua vida. Ele nasceu em Charleville, no interior da França, já próximo à Bélgica, em 1854 e morreu em Marselha, em 1891. Seu pai era um militar, que sumiu da vida, deixando para a mãe a penosa tarefa da educação de quatro filhos. Arthur, para o bem ou para o mal, era o gênio da família. A edição do livro que eu li é da L&PM, da coleção Rebeldes&Malditos. Ela tem em suas páginas introdutórias uma biografia bastante detalhada. Apesar de sua vida curta, ela teve duas fases bem distintas: a de estudante e escritor e a de comerciante na África.

Uma temporada no inferno ocupa as páginas entre a 19 e a 79 e a edição é bilíngue. A metade destas páginas, portanto. Ele mesmo a editou, mas retirou do editor apenas alguns exemplares dos 500 que encomendara. Estes que sobraram ficaram intactos por trinta anos. O livro é datado pelo escritor com a data abril/agosto de 1873. Vejamos o que diz a sua biografia com relação a este ano.

1873. Janeiro: Ao chamado de Verlaine, Rimbaud retorna a Londres. A vida em comum recomeça.
4 de abril: Rimbaud e Verlaine deixam a Inglaterra.
12 de abril: Rimbaud vai para a fazenda da mãe em Roche.
26 de maio: viaja mais uma vez para Londres em companhia de Verlaine.
3 de julho: Após uma briga, Verlaine abandona Rimbaud precipitadamente e viaja para Bruxelas. 
8 de julho: Rimbaud encontra-se com Verlaine em Bruxelas. 
10 de julho: Verlaine atira em Rimbaud com um revólver, ferindo-o no punho esquerdo. Depois de se tratar, Rimbaud dá queixa na polícia, mas a retira alguns dias depois. Mesmo assim, Verlaine é condenado a dois anos de prisão. 
20 de julho: Rimbaud volta para Roche, onde acaba de escrever Uma temporada no inferno.
Outubro: Uma temporada no inferno é publicada por conta do autor pela Alliance Typographique de Bruxelas. Aos 19 anos para de escrever e em momento alguma retoma a escrita.

Registro estes dados para mostrar o que era realmente a vida do jovem neste período. Os encontros com Verlaine ainda continuavam, mas este procurou refazer a sua vida, convertendo-se a um piedoso cristianismo e a dedicar muitos de seus anos ao estudo da obra de Verlaine e a escrever prefácios para diferentes edições. Estes aparecem ao final deste livro da L&PM. Em 1878 Rimbaud iniciou o seu périplo africano, tendo antes, em 1854, escrito as Iluminações.

Na África se dedica a negócios e trambiques, com venturas e desventuras na costa oriental, na então Abissínia, Harar,, Daukalis e Somália. Negocia de tudo. Embora o ficar rico tivesse sido o seu grande propósito, não amealhou grande fortuna. Armas e escravos figuravam entre as mercadorias que negociava. Cedo contraiu grave doença, que o leva à morte, passando antes pela amputação de uma de suas pernas. Esse tempo de doença ele passa na cidade de Marselha, onde é acudido pela sua irmã. Mas a África, os seus negócios e a administração de suas finanças não lhe saem da cabeça, nem em seus últimos momentos de delírio. Em síntese, uma vida infeliz, uma vida de inferno, no reino de Cam, como ele dizia, maldizendo os negros

Embora a sua pequena obra, é um dos homens da literatura mais estudados, tal a intensidade de sua escrita, meio poesia, meio prosa, ou uma mistura das duas. Como amostra, passo para vocês a abertura de seu livro:

Uma Temporada no inferno: "Antes, se lembro bem, minha vida era um festim em que se abriam todos os corações, todos os vinhos corriam.
Uma noite, fiz a Beleza sentar no meu colo. E achei amarga. Injuriei.
Me preveni contra a justiça.
Fugi. Ó bruxas, ó misericórdia, ó ódio, meu tesouro foi entregue a vocês!
Consegui fazer desaparecer do meu espírito toda a esperança humana. Para extirpar qualquer alegria dava o salto mudo do animal feroz.
Chamei o pelotão para, morrendo, morder a coronha dos fuzis. Chamei os torturadores para me afogarem com areia, sangue. A desgraça foi meu Deus. Me estendi na lama. Fui me secar no ar do crime. Preguei peças à loucura.
E a primavera me trouxe o riso horrível do idiota.
Ora, ultimamente, chegando ao ponto de soltar o último basta!, pensei em buscar a chave do antigo festim, que talvez me devolvesse o apetite dele.
A caridade é a chave. Inspiração que prova que eu estava sonhando!
'Continuarás hiena etc...', repete o demônio que me orna de amáveis flores de ópio. 'A morte virá com todos os teus desejos, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais'.
Ah! pequei demais; - Mas caro Satã, por favor, um cenho menos carregado! e esperando algumas pequenas covardias em atraso, como aprecia no escritor a falta de faculdades descritivas e instrutivas, lhe destaco estas assustadoras páginas do meu bloco de condenado eterno".

No horizonte Nietzsche, Freud e todo o existencialismo. Gostei de uma observação na resenha biográfica. A severa mãe o admoesta. Qual a razão? Por Verlaine lhe haver indicado a leitura de Os miseráveis.


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