terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O pai, a mãe, o séquito e o império da loucura.

 Uma das peripécias do livro Elogio da loucura é que ele tem um narrador muito especial. Ela própria, a loucura. Ela confessa. "Não tens quem te elogia? Elogia-te a ti próprio".  Ela fala para um grande público e, por óbvio, começa se apresentando. E já na apresentação aparece a tonalidade que acompanha toda a obra, o humor, a sátira e a ironia. Para a sua apresentação evoca o poder de memória das musas. Vejamos, primeiramente o pai, a mãe e o nascimento.
A fabulosa obra datada de 1508. Tempos agitados de um mundo em transformação.

"Para dizer a verdade, não nasci nem do Caos, nem de Orco, nem de Saturno, nem de Jápeto, nem de nenhum desses deuses rançosos e caducos. É Plutão, deus das riquezas, o meu pai. Sim, Plutão (sem que o levem a mal Hesíodo, Homero e o próprio Júpiter), pai dos deuses e dos homens; Plutão, que, no presente como no passado, a um simples gesto, cria, destrói, governa todas as coisas sagradas e profanas; Plutão, por cujo talento a guerra, a paz, os impérios, os conselhos, os juízes, os comícios, os matrimônios, os tratados, as confederações, as leis, as artes, o ridículo, o sério (ai! não posso mais! falta-me a respiração), concluamos, por cujo talento se regulam todos os negócios públicos e privados dos mortais; Plutão, sem cujo braço toda a turba das divindades poéticas, falemos com mais franqueza, os próprios deuses de primeira ordem não existiriam, ou pelo menos passariam muito mal; Plutão, finalmente, cujo desprezo é tão terrível que a própria Palas não seria capaz de proteger bastante os que o provocassem, mas cujo favor, ao contrário, é tão poderoso que quem o obtém pode rir-se de Júpiter e de suas setas. Pois bem, é justamente esse o meu pai, de quem tanto me orgulho, pois me gerou, não do cérebro, como fez Júpiter, com a torva e feroz Minerva, mas de Neotetes, a mais bonita e alegre ninfa do mundo. Além disso os meus progenitores não eram ligados pelo matrimônio, nem nasci como o defeituoso Vulacano, filho da fastidiosíssima ligação de Júpiter com Juno. Sou filha do prazer e o amor livre presidiu o meu nascimento; para falar com nosso Homero, foi Plutão dominado por um transporte de ternura amorosa. Assim, para não incorrerdes em erro, declaro-vos que já não falo daquele decrépito Plutão que nos descreveu Aristófanes, agora caduco e cego, mas de Plutão ainda robusto, cheio de calor na flor da juventude, e não só moço, mas também exaltado como nunca pelo néctar, a ponto de, num jantar com os deuses, por extravagância, o ter bebido puro e aos grandes goles".

Vamos adiante na narrativa, ouvindo agora, a loucura falar de sua pátria. "Se, além disso, fazeis questão de saber ainda qual a minha pátria (uma vez que, em nossos dias, é como uma prova de nobreza notificar ao público o lugar no qual demos os nossos primeiros vagidos), ficai sabendo que não nasci nem na ilha natante de Delos, como Apolo; nem da espuma do agitado Oceano, como Vênus; nem das escuras cavernas. Nasci nas ilhas Fortunadas, onde a natureza não tem necessidade alguma da arte. Não se sabe, ali, o que sejam o trabalho, a velhice, as doenças; nunca se veem, nos campos, nem asfódelo, nem malva, nem lilá, nem lúpulo, nem fava, nem outros semelhantes e desprezíveis vegetais. Ali, ao contrário,, a terra produz tudo quanto possa deleitar a vista e embriagar o olfato: mólio, panaceia, neponte, mangerona, ambrosia, lótus, rosas, violetas, jacintos, anêmonas. Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a luz com o pranto, como quase todos os homens: mal fui parida, comecei a rir gostosamente na cara de minha mãe. Não invejo, pois, ao supremo Júpiter, o ter sido amamentado pela cabra Amalteia, pois que duas graciosas ninfas me deram de mamar: Mete, filha de Baco, e Apédia, filha de Pan".

Mas, falemos ainda das companheiras que formam os seu séquito: "Ainda podeis vê-las, aqui, no consórcio das outras minhas sequazes e companheiras. Se, por Júpiter, também quereis saber os seus nomes, eu vô-los direi, mas somente em grego Estais vendo esta, de olhar altivo? É Philávtia, isto é, o amor-próprio. E esta, de olhos risonhos, que aplaude batendo palmas? É Kolóxia, isto é, a adulação. E a outra, de pálpebras cerradas parecendo dormir? É Lethes, isto é, o esquecimento. E aquela, que se acha apoiada nos cotovelos, com as mãos cruzadas? É Misoponia, isto é, o horror à fadiga. E esta, que tem a cabeça engrinaldada de rosas, exalando essências de perfumes? É Idonis, isto é, a volúpia. E a outra, que está revirando os olhos lúbrigos e incertos e parece dominada por convulsões? É Ania, isto é, a irreflexão. Finalmente, aquela de pele alabastrina, gorducha e bem nutrida, é Throphis,isto é, a delícia. Entre essas ninfas, podeis distinguir ainda dois deuses: um é Komo, isto é, o riso e o prazer da mesa; o outro é Nigreton Hypnon, isto é, o sono profundo"

Creio que vale a pena, ainda, ouvi-la falar de seu império: "Acompanhada, pois, e servida fielmente por esse séquito de criados, estendo o meu domínio sobre todas as coisas, e até os monarcas mais absolutos estão submetidos ao meu império. Já conheceis, portanto, o meu nascimento, a minha educação e a minha corte. Agora, para que ninguém julgue não haver razão para eu usurpar o nome de deusa, quero demonstrar-vos quanto sou útil aos deuses e aos homens e até onde chega o meu divino poder, desde que me presteis ouvidos com bastante atenção". E por aí vai. Veja ainda a resenha da obra: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/01/elogio-da-loucura-erasmo-de-roterdam.html

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