Um antiintelectualismo cada vez maior está tomando conta do Brasil. Pensamos por slogans e clichês e abandonamos a reflexão crítica. Os preconceitos estão norteando o pensar. O pensamento binário elimina a possibilidade do outro, do diferente. O imaginário e os horizontes estão sendo suprimidos pelo tempo, apenas no presente. O não ouvir o outro nos empobrece assustadoramente. A mente é enrijecida na defesa do indefensável. O ensino de filosofia e sociologia está novamente sendo banido das escola, assim como o fora na ditadura civil-militar de 1964. Uma nova era de obscurantismo está assolando o país.
Logo na abertura do primeiro capítulo encontramos a fábula sob forma de epígrafe.
O antiintelectualismo abre espaço para a volta ao tempo do pensamento mitológico. Idiotas consagrados e apologistas da tortura, que atentam contra direitos fundamentais são histericamente aclamados como mitos. Cria-se um clima de contágio avassalador em que mentes não bem constituídas passam a ser contaminadas. Kant e o Esclarecimento deixam de ser referência e astrólogos são elevados a condição de filósofos. A maioridade kantiana é abominada e a menoridade e a tutela são veneradas. Valdomiros, Malafaias, Macedos substituem Kant. Adorno nem pensar.
Como uma das características do antiintelctualismo é aversão ao pensamento filosófico, que se estabelece por comparações, interrelações, parábolas, por abertura para a alteridade, e assim para o múltiplo e o plural e para as fábulas, a minha intenção neste post é muito simples. Contar uma fábula para propiciar a volta de, ao menos, um pequeno exercício. Através da comparação, retirar uma lição de moral, atribuir à história uma simbolização, um significado.
A fábula é de Esopo (620 - 564 a. C.) e retirada do livro Como as democracias morrem, dos cientistas políticos e pesquisadores da Universidade de Harvard, Steven Levitski e Daniel Ziblatt. A fábula serve de epígrafe ao primeiro capítulo do livro. É sobre o javali, o cavalo e o caçador. Também pode ser encontrada em Esopo - Fábulas completas, da Cosacnaify, belamente ilustrado por Eduardo Berliner. Ficamos com a versão da epígrafe:
Surgira uma séria disputa entre o cavalo e o javali; então, o cavalo foi a um caçador e pediu ajuda para se vingar. O caçador concordou mas disse: "Se deseja derrotar o javali, você deve permitir que eu ponha esta peça de ferro entre as suas mandíbulas, para que possa guiá-lo com estas rédeas, e coloque esta sela nas suas costas, para que possa me manter firme enquanto seguimos o inimigo." O cavalo aceitou as condições e o caçador logo o selou e bridou. Assim, com a ajuda do caçador, o cavalo logo venceu o javali, e então disse: "Agora, desça e retire essas coisas da minha boca e das minhas costas". "Não tão rápido, amigo", disse o caçador. "E o tenho sob minhas rédeas e esporas, e por enquanto prefiro mantê-lo assim".
O livro da Cosacnaify com as fábulas completas.
Pelo fato de estarmos desacostumados ao pensar, recorro ao livro da Cosacnaify, que na página 278 oferece uma segura interpretação; "Assim, muitas pessoas, movidas por uma cólera irracional, caem elas mesmas submissas a outrem, por desejarem vingar-se dos inimigos". O capítulo trata de alianças políticas perigosas, como o foi a aliança celebrada entre o cavalo e o caçador. Eu ia falar de uma outra aliança..., da celebração de um pacto com a mediocridade, mas, deixamos isso para lá para ficar com o famoso pedido de Mirabeau: "Mon Dieu, donnez moi la mediocrité".
Um adendo retirado da página 65 de Elogio da Loucura, escrito em 1509 por Erasmo de Roterdam. Sem comentários: "Já o cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem, e sendo por este dominado, participa consideravelmente das calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse animal doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por terra, obrigando-o a comer poeira junto com o cavaleiro. Já não falo das cruéis mordeduras, das esporadas agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, do pesado cavaleiro, em suma, a exemplo do homem, se sujeitou espontaneamente, na ânsia excessiva de se vingar do veado, seu inimigo".
Um adendo desse pequenino livro que modelou o mundo moderno. Um hino à liberdade e à autonomia.
Um adendo - 02.08.2020. Discurso sobre a servidão voluntária - de Étienne de la Boétie. Sem comentários: Digamos, então que ao homem todas as coisas parecem naturais, que delas ele se nutre e a elas se acostuma; mas o que é realmente nativo é só aquilo que a natureza simples e inalterada o impele a fazer: assim, o primeiro motivo por trás da servidão voluntária é o costume. Os homens são como os mais leais cavalos, que inicialmente mordem o freio e depois passam a apreciá-lo; que primeiramente escoiceiam e logo exibem altivos seu arreio, pavoneando-se sob sua barda. Dizem que sempre foram subjugados, que seus pais viviam assim; pensam que estão fadados a tolerar o mal e convencem-se disso citando exemplos; justificam eles próprios a posse daqueles que os tiranizam ao dizer que estes vêm fazendo isso há muito tempo, quando, na verdade, os anos jamais dão a alguém o direito de fazer o mal, apenas intensificam a injúria. Dentre esses homens sempre há alguns - mais virtuosos que os outros - que jamais sentem o gosto pela sujeição e que, como Ulisses, que buscava sempre enxergar, do mar e da terra firme, a fumaça da sua cabana, não conseguem evitar a busca por seus privilégios naturais e a lembrança de seus predecessores e sua essência ancestral. Página 54-55.
Um adendo retirado da página 65 de Elogio da Loucura, escrito em 1509 por Erasmo de Roterdam. Sem comentários: "Já o cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem, e sendo por este dominado, participa consideravelmente das calamidades humanas. Acontece, muitas vezes, que esse animal doméstico, em lugar de fugir da batalha, se atira ao perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por terra, obrigando-o a comer poeira junto com o cavaleiro. Já não falo das cruéis mordeduras, das esporadas agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, do pesado cavaleiro, em suma, a exemplo do homem, se sujeitou espontaneamente, na ânsia excessiva de se vingar do veado, seu inimigo".
Um adendo desse pequenino livro que modelou o mundo moderno. Um hino à liberdade e à autonomia.
Um adendo - 02.08.2020. Discurso sobre a servidão voluntária - de Étienne de la Boétie. Sem comentários: Digamos, então que ao homem todas as coisas parecem naturais, que delas ele se nutre e a elas se acostuma; mas o que é realmente nativo é só aquilo que a natureza simples e inalterada o impele a fazer: assim, o primeiro motivo por trás da servidão voluntária é o costume. Os homens são como os mais leais cavalos, que inicialmente mordem o freio e depois passam a apreciá-lo; que primeiramente escoiceiam e logo exibem altivos seu arreio, pavoneando-se sob sua barda. Dizem que sempre foram subjugados, que seus pais viviam assim; pensam que estão fadados a tolerar o mal e convencem-se disso citando exemplos; justificam eles próprios a posse daqueles que os tiranizam ao dizer que estes vêm fazendo isso há muito tempo, quando, na verdade, os anos jamais dão a alguém o direito de fazer o mal, apenas intensificam a injúria. Dentre esses homens sempre há alguns - mais virtuosos que os outros - que jamais sentem o gosto pela sujeição e que, como Ulisses, que buscava sempre enxergar, do mar e da terra firme, a fumaça da sua cabana, não conseguem evitar a busca por seus privilégios naturais e a lembrança de seus predecessores e sua essência ancestral. Página 54-55.
Parabéns pelo blog e pelo texto! Gostei muito!
ResponderExcluirCoincidentemente estava lendo "Como as democracias morrem".
Abraços!
Muito obrigado pelo elogio, amigo. E que bela fábula.
ResponderExcluirparabéns pela analogia implicita,exemplos nao faltam. leia tbm a parabol a judaica sobre a verdade e a mentira, mesma moral
ResponderExcluirMuito obrigado pelo seu comentário. Vou verificar a parábola judaica sobre verdade/mentira.
ResponderExcluirEcelente e muito interessante e ede uma inteligência muito sabia amei
ResponderExcluirCom certeza, meu amigo, muita inteligência e sabedoria. Agradeço a sua manifestação.
ExcluirTudo o que li acima, parece bem retratar o petismo, o lulismo e o esquerdismo no Brasil, a partir de 2002, por aí. Antes da ascenção ao poder da esquerda, não haviam todos estes conflitos.
ResponderExcluirGilmar, fica registrada a sua manifestação. Vamos a uma cronologia. Esopo é um pensador grego que nasceu no ano 620 a.C. e morreu em 504 a.C. Já Elogia da Loucura teve a sua primeira publicação em 1511 e o Discurso sobre a servidão voluntária, de La Boétie, foi publicado postumamente, no ano de 1576.
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