quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Sobre as orações. MONTAIGNE, em "OS ENSAIOS", nos fala a respeito.

Reputo este texto como sendo de muita atualidade. Creio que em nenhuma época houve tanta hipocrisia e distanciamento entre DEUS e seus ditos ou autoproclamados representantes. Vendo certas figuras que se dizem religiosas, sempre afirmo, que é preciso muito - não acreditar - para fazer as barbaridades que eles têm coragem de praticar. Hipocrisia é o termo para aferir esta situação. Inicialmente apresento o texto introdutório ao capítulo, o de número 56, do Livro Primeiro, de autoria de Rosa Freire D'Aguiar. Vejamos:

Os ensaios. Montaigne. Penguin - Companhia. 

Para tratar desse assunto delicado, na fronteira do sagrado e do profano, Montaigne retrabalhou muito o texto, tornando o capítulo três vezes maior desde a primeira edição da obra, em 1580. A clareza se ressente um pouco desses sucessivos acréscimos, mas sua profissão de fé católica é claríssima. Temos aqui um enfoque mais aprofundado da austeridade e do rigor do catolicismo de Montaigne. Os numerosos acréscimos foram em parte uma resposta às críticas do Vaticano sobre a asserção de Montaigne de que quando um homem reza deve estar purgado de seus pecados, sem hipocrisia, e em lugar e circunstâncias próprias a essa prática. Os censores do Vaticano examinaram particularmente este capítulo, e finalmente recomendaram algumas correções. Tanto quanto em 'sobre o arrependimento', vemos que o catolicismo de Montaigne era exigente. Ele condena, assim como Rabelais e, claro, Calvino, a oração mecânica que se faz sem um recolhimento especial. Sua ortodoxia rejeita toda tentativa de tradução dos textos sagrados, para ele fonte de erros e de heresias. Vamos ao texto:

"[...] Não sei se me engano mas, já que por um favor particular da bondade divina certo tipo de oração nos foi prescrita e ditada, palavra por palavra, pela boca de Deus, sempre me pareceu que devíamos fazer dela uso mais corrente do que fazemos; e se acreditassem em mim, no início e no fim de nossas refeições, em nosso levantar e deitar, e em todas as ações particulares em que nos acostumamos a incluir orações, gostaria que fosse o padre-nosso que os cristãos usassem, se não somente, pelo menos sempre. A Igreja pode estender e diversificar as orações segundo sua necessidade de nos instruir, pois bem sei que é sempre a mesma substância e a mesma coisa. Mas àquela deveria se dar este privilégio: que o povo a tivesse continuamente na boca, pois é certo que diz tudo o que é preciso, e que é muito adequada a todas as ocasiões. É a única oração da qual me sirvo para tudo, e repito-a em vez de trocá-la. Disso resulta que não tenho outra tão bem na memória como aquela. Estava recentemente pensando de onde nos vinha esse erro de recorrer a Deus em todos os nossos projetos e empreendimentos, e de chamá-Lo em toda sorte de necessidade, e em qualquer lugar em que nossa fraqueza deseja ajuda, sem considerar se a ocasião é justa ou injusta; e de invocar Seu nome e Seu poder em qualquer situação e ação que pratiquemos, por mais pecadora que seja. Ele é de fato nosso só e único protetor, e para ajudar-nos pode todas as coisas, mas, conquanto se digne a honrar-nos com essa doce aliança paterna, é, porém, tão justo como bom e poderoso. Mas usa bem mais frequentemente Sua justiça do que Seu poder, e favorece-nos de acordo com essa justiça e não segundo nossos pedidos [...].

E a posição de um homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto. Por isso, nossa Igreja (a católica) recusa todos os dias aos que se obstinam em fazer alguma insigne maldade o favor de admiti-los em sua comunidade. Rezamos por hábito e por costume, ou melhor, lemos ou pronunciamos nossas preces: não é, enfim mais que uma mímica. E desagrada-me ver fazerem três sinais da cruz no Benedicite, outros tantos nas Graças. (e desagrada-me mais por ser um sinal que reverencio e utilizo constantemente, mesmo quando bocejo) e, no entanto, todas as outras horas do dia vê-los dedicados ao ódio, à avareza, à injustiça. Hora para os vícios, hora para Deus, como por compensação e arranjo. É um milagre ver sucederem-se ações tão incompatíveis, de teor tão parecido, a ponto de não se sentir interrupção e hesitação nem mesmo nas fronteiras e na passagem de uma à outra. Que monstruosa consciência pode encontrar descanso enquanto nutre num mesmo lugar, em convívio tão harmonioso e tão pacífico, o crime e o juiz? Um homem cuja licenciosidade governa incessantemente sua cabeça, e que a julga muito odiosa aos olhos divinos, que diz ele a Deus quando lhe fala disso? Recupera-se, mas subitamente torna a cair.

Se, como diz, o conceito de justiça divina e sua presença golpearam e castigaram sua alma, por mais curta que fosse a penitência o simples temor volveria seu pensamento para ela, tão amiúde que, de imediato, ele dominaria esses vícios que lhe são tão habituais e lhe estão incrustrados. Mas qual! E os que fundam uma vida inteira nos frutos e nos lucros do pecado que sabem ser mortal? Quantos ofícios e profissões socialmente reconhecidas temos cuja essência é viciosa? E aqueles que, confiando-se a mim, recitava-me ter toda a sua vida professado e praticado o ritual de uma religião condenável, segundo ele mesmo, e contraditória com a que tinha no coração, para não perder seu crédito e a honra de seus cargos, como conciliava esses pensamentos em seu coração? Com que linguagem conversam com a justiça divina a respeito desse assunto? Como seu arrependimento requer uma reparação visível e tangível, perde o direito de evocá-lo, tanto perante Deus como perante nós. São tão ousados para pedir perdão sem satisfação e sem arrependimento? Penso que é o caso daqueles primeiros como destes, mas daqueles não é tão fácil mostrar a obstinação. Essa contradição e essa volubilidade tão súbitas, tão violentas, que fingem diante de nós me cheiram a milagre. Revelam o estado de um indigerível conflito. E, nesses últimos anos, tinham o costume de criticar qualquer um em que reluzisse certa clareza de espírito e que professasse a religião católica, dizendo que era fingimento! E até afirmavam, para honrá-lo, que pouco importava o que dissesse externamente, pois não podia deixar de ter, internamente, sua fé reformada pelos padrões deles. Fastidiosa enfermidade, a de se crer tão forte a ponto de persuadir-se de que não é possível acreditar no contrário, e mais fastidiosa ainda quando a pessoa se convence de que um espírito assim prefere não sei qual melhora de sua sorte atual às esperanças e ameaças da vida eterna! Eles podem crer em mim: se algo me tivesse tentado na juventude, boa parte disso teria sido o gosto pelos riscos e as dificuldades que acompanhavam esse recente empreendimento. Não é sem boa razão, parece-me que a Igreja proíbe o uso promíscuo, temerário e levianos dos salmos sagrados e divinos que o Espírito Santo ditou a Davi. Não devemos misturar Deus às nossas ações a não ser com reverência e atenção plena de ter outro uso que não exercitar os pulmões e agradar a nossos ouvidos. É na consciência que deve ser produzida e não na língua. Não é correto permitir que um caixeiro de armazém se entretenha e brinque com ela, entre seus pensamentos vãos e frívolos. Nem de certo é correto ver largado na sala ou na cozinha o Livro Sagrado dos mistérios de nossa fé. Outrora eram mistérios, agora são divertimentos e passatempos. Não é de passagem, nem de forma tumultuada que devemos manipular um estudo tão sério e venerável. Deve ser uma ação premeditada e séria, à qual sempre há que acrescentar este prefácio do nosso ofício, sursum corda, (elevemos os corações,) e tendo o próprio corpo disposto em atitude que ateste uma particular atenção e reverência. Não é estudo para todo mundo: é estudo para pessoas que a isso se dedicaram, que Deus chama para tal; os maus, os ignorantes tornam-se piores com isso. Não é uma história para contar; é uma história para reverenciar, temer e adorar. Engraçadas essas pessoas que pensam tê-la tornado manejável pelo povo, por tê-la posto em linguagem popular. Quando não entendem tudo o que encontram por escrito a culpa seria só das palavras? Direi mais? Quando trazem para um pouco mais perto delas essa história, na verdade a afastam. A mera ignorância, que se entrega inteiramente a outrem, era bem mais salutar e mais sábia do que é essa ciência verbal e vã e que nutre presunção e temeridade. Creio também que a liberdade de cada um de difundir uma palavra tão religiosa e importante em tantos tipos de idiomas apresenta muito mais perigo que utilidade. Os judeus, os maometanos e quase todos os outros desposaram e reverenciam a língua em que originalmente seus mistérios foram concebidos, e são proibidas sua alteração e mudança: não sem razão"... Páginas 180 - 185.

Para ter uma visão maior de Montaigne, deixo o post de Os ensaios, mas antes lembrando que ele viveu no tempo das Guerras Religiosas na França, entre os católicos e os huguenotes. Ainda tenho a dizer  que a coerência é um elemento fundamental na vida das pessoas. Um dia ganhei uma camiseta de presente. Ela continha os seguintes dizeres: É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática. Paulo Freire. Viver de forma coerente e distante da hipocrisia - creio ser uma fórmula para o viver bem.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/11/os-ensaios-montaigne-1533-1592.html

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