Uma das mais extraordinárias experiências educacionais que eu tive na minha vida foi o envolvimento em um trabalho de leituras, desenvolvido na Universidade Positivo, sob o título Ler e pensar. Participei desses trabalhos, tanto assistindo, quanto apresentando grandes obras. Para isso, tive que estudar muito e, em consequência, também aprender muito. Num desses trabalhos lemos a obra Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821 - 1880), o pai do realismo. A orientadora dessa leitura era uma especialista na obra do autor, professora na Universidade Federal do Paraná. A obra apareceu sob a forma de folhetim, em 1856 e em livro, já livre de censura, em 1857.
Madame Bovary. Gustave Flaubert. Abril. 1972. Tradução: Araújo Nabuco.Um breve olhar para a data da publicação nos mostra uma França extremamente agitada num período de grandes transformações (os fatos de 1848) com uma rápida ascensão da burguesia e uma profunda mudança nos costumes. Flaubert ousa abordar o tema tabu dos desejos de uma mulher. Ema, (Rouault de família e Bovary pelo casamento), é a personagem escolhida. Ela, de origem campeira, fora aluna de um colégio de freiras, onde se encantou com a literatura romântica que a tornou uma menina sonhadora e portadora de muitos desejos. Desejava viver intensamente. Aventuras românticas inebriantes. Essas seriam de difícil realização em um ambiente rural, de uma pacata vida no interior.
Apesar de Ema ser a personagem central da obra, ela começa e termina com outro personagem, Carlos Bovary, um médico viúvo da cidadezinha de Tostes. Ele faz um atendimento simples na casa de Rouault, fato que o aproxima de Ema. Esta vê em Carlos uma possibilidade de mudança de ares. Casam-se. Mas aí, como geralmente acontece na literatura romântica, eles, tanto os romances quanto os sonhos, acabam. Carlos Bovary não tinha encantos. Carlos era pragmático, todo devotado ao trabalho. Quase nem a percebia, embora a amasse. Ele era assim. Ema sofria. Carlos não correspondia aos personagens de suas leituras.
A família Bovary muda de ares. Vão morar em outra cidadezinha, em Yonville. Ali, com muitas dificuldades, recomeçam a vida. Novos personagens entram em cena. Entre eles, alguns fundamentais, como o jovem Léon, o esperto farmacêutico Homais, o inescrupuloso comerciante L'Heureux (observem o termo, seu significado: feliz, contente, alegre), e Rodolfo Boulanger (seu primeiro amante). Ruão, uma cidade maior, ficava próxima. Esses novos personagens são personagens burgueses, todos portadores de uma nova moral, uma moral sem comprometimentos, uma moral em busca da ascensão econômica, social e de reconhecimento. Muitos fatos ocorrem. Carlos não foge dessa moral. Em busca de fama, deixa se iludir pelo ambicioso farmacêutico, que lhe sugere uma cirurgia em um pé defeituoso. O episódio quase o arruína e ele termina em amputação da perna. Com Rodolfo, Ema se envolve em uma fuga amorosa não consumada e junto a L'Heureux submerge em dívidas, notas promissórias e procurações. Léon se mudara para Ruão.
Carlos de nada desconfiava, embora todas as falações na cidade. Há também os conselhos do cura, a quem a pobre e desencontrada Ema que, em suas crises, promete se tornar uma santa. O casal, para desespero de Ema, tem uma filha (queria um menino). Berta, praticamente ausente em suas vidas. Uma ida ao teatro, em Ruão, a faz reencontrar Léon. Uma explosão de uma tórrida paixão e um passeio em uma acelerada carruagem, em plena tarde, coisa que nunca se vira, nem mesmo em Ruão. Mas a moral burguesa não permitia compromissos ou comprometimentos, apenas usufrutos. E Ema, atordoada em dívidas, busca um fim aos agitos de sua vida, num final trágico. Carlos, com um ataque apoplético, também tem a sua vida de dores e sofrimentos encerrada. Ficara sabendo de tudo, mas generosamente a perdoava. Sobra a desamparada Berta, acolhida por familiares remanescentes.
Em meu livro, o do número 4 da coleção Os Imortais da Literatura Universal, eu tenho dois apontamentos, que foram feitos por ocasião do nosso trabalho de leitura. O primeiro é o seguinte: Ele o abriu e não encontrou nada. Trata-se de uma referência à parte final da obra, quando o dr. Canivet, médico famoso, vem fazer a autópsia de Carlos e não encontrou nada de extraordinário em sua morte. A segunda diz assim: Todos os finais são irônicos. Carlos, como personalidade, estava em julgamento.
Por se tratar de uma obra muito polêmica, obra que inclusive abre o período do realismo na literatura e por ter sido envolvida em censura e o autor submetido a julgamento, deixo as anotações alusivas a esses fatos, tirados do livro de mini biografias que acompanha a coleção. Creio que esclarecem bastante. Elas tem o sugestivo título de O Escândalo do adultério;
"Em julho de 1851, após um longo período de inatividade, Flaubert inicia a composição da mais famosa de suas obras: Madame Bovary, que o tornaria, em pouco tempo, um dos romancistas mais célebres da França. A elaboração exigiu-lhe quase cinco anos de trabalho incessante. O escritor desejava, como sempre, a forma perfeita, a palavra certa. Passava noites em busca de um adjetivo, semanas atrás de uma frase. Escrevia e reescrevia a mesma página dezenas de vezes. Por fim, achando que chegara a expressar o que queria, entregou a obra à publicação. Laurent Pichat e Maxime Du Camp encarregaram-se de imprimi-la na Revue de Paris, a partir de 1856. Tendo em vista, contudo, a austeridade dos costumes vigentes, resolveram cortar alguns trechos do romance, contra a vontade do autor. Tanto esforço ele fizera para encontrar a forma certa, e teria de ver inutilizadas páginas que lhe custaram dias e noites de aflição.
Mal o livro começou a ser publicado, Ulbach, o secretário da revista, levantou objeções à famosa cena do fiacre, na qual Flaubert descreveu, com detalhes, o colóquio amoroso de Ema Bovary com o amante. O episódio deveria figurar no número de dezembro, mas os editores resolveram omiti-lo. Du Camp explica a exclusão: 'Tua cena do fiacre é impossível, não para nós, nem para os que assinam, mas para a Polícia Correcional, que nos condenaria imediatamente'. Não imediatamente; alguns meses mais tarde. Ainda que sem a passagem discutida, a censura decidiu suspender a publicação de Madame Bovary e processar o autor. A justificativa oficial foi a 'imoralidade' da obra. A verdade, porém, é que o romance atacava a moral burguesa, posta a nu em sua fragilidade, convencionalismo e falsidade, através da caracterização da vida monótona e sem atrativos da província. A única personagem que, para escapar à mediocridade do ambiente, enfrenta os preconceitos e persegue os próprios sonhos e aspirações, é Ema Bovary. Mas acaba destruída, menos por ser adúltera, do que pela incapacidade de enfrentar as dívidas contraídas para salvar o amante. A vitória, ao final do livro, há de pertencer ao mais estúpido dos seres retratados: o farmacêutico Homais, protótipo do interesseiro falso que se presume intelectual. Claro que a sociedade burguesa sentiu a força do ataque, e seus representantes, no poder desde 1848, trataram de punir o acusado atacante.
Flaubert tentou abafar o processo recorrendo a amigos influentes.
Em vão. Em janeiro de 1857, sentou-se no banco dos réus, ao lado de Laurent Pichat. Pinard, o pequeno e nervoso promotor público, descreve Ema Bovary, citando passagens do livro, e investe contra o autor.
Sénard, o arguto advogado de defesa, argumenta explorando um ângulo 'moralista' da história: toda a depravação da heroína tinha de ser muito bem descrita, para provar que o trágico fim de Ema Bovary constitui o justo castigo de seus erros. Sénard chega a demonstrar que a obra, longe de ser uma apologia do adultério, é, ao contrário, uma advertência, por mostrar que desgraças esperam os adúlteros, e, sobretudo, a mulher. Oito dias depois, o autor é absolvido, e o livro, em edição completa, esgota-se em pouco tempo. Flaubert se tornara um nome célebre, tema para elevadas discussões e grotescas caricaturas, uma das quais apresenta o escritor vestido num avental branco, tendo de um lado, instrumentos cirúrgicos e, de outro, um coração atravessado por um bisturi.
Com tanto alarde em torno do romance, principalmente da protagonista, muita gente queria saber quem teria sido Ema Bovary. [...] Nenhuma pista era satisfatória. Às insistências dos curiosos, Flaubert declara: 'Madame Bovary sou eu'. A frase, encarada como gracejo na época, encerra muita verdade. Os fatos de sua vida não são evidentemente os mesmos, mas o temperamento romântico sim. Como Ema, Flaubert também procurava fugir à mesquinhez cotidiana e sonhava com amores irreais, ansiando por uma existência mais plena".
E uma das frases mais precisas do livro. Ema, em seu desespero financeiro, busca socorro com o tabelião Guillaumin, que tenta um lance de sedução. A sua resposta: Eu sou para lastimar, mas não para vender!
Ah! Eu ainda, inspirado em Philip Roth, em O professor do desejo, vou empreender o meu curso de literatura erótica, começando com Madame Bovary e continuando com O primo Basílio e Dom Casmurro. E de lambuja, Anna Karenina. E, ainda, a resenha de O professor do desejo:
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