domingo, 4 de agosto de 2024

Levantando do chão. José Saramago.

O meu propósito da vez. Reler as principais obras de José Saramago. Com uma peculiaridade. Pela ordem de escrita. Assim o primeiro livro da lista foi Levantando do chão, uma publicação do ano de 1980. A primeira leitura da obra, eu a terminei em 03.09.2010 e hoje, 29.07.2024 terminei a releitura. Me lembro perfeitamente que na primeira leitura essas obras iniciais do Nobel me impressionaram profundamente, a tal ponto de praticamente ler a sua obra por completo.

Levantando do chão. José Saramago. Bertrand Brasil. 2009.

Em meio a releitura eu fiz uma breve interrupção para, em minha chácara em Campo Magro, plantar um pequeno pomar. Algo em torno de 50 mudas de árvores frutíferas, cítricas em sua maioria. Fiz tudo com muito cuidado. Devo dizer que não fiz tudo sozinho. Contei com ajudas. Fizemos alinhamentos, amanhamos a terra, abrimos covas, as enchemos com terra preta até pela metade, depois as completamos com adubo (bosta de ovelha), fui ao CEASA comprar as mudas e, finalmente, o plantio. Ainda não terminei. Enquanto isso eu pensava no significado de Levantando do chão. Por favor, não pensem mal de mim. Eu explico.

Eu não possuo nenhum latifúndio, apenas disponho de uma pequena chácara que, por sinal, tem uma placa, anunciando que se trata do Jardim de Epicuro. Sim, o meu particular Jardim de Epicuro. Agora sim posso dizer que o grande tema de Levantando do chão é o latifúndio, que no dizer do escritor é mal não menor do que o mal das guerras e dos Leviatãs dos mares. Delimitando um pouco, o livro trata do latifúndio em Portugal, ao longo do século XX, na monarquia, na república e na ditadura do regime de Salazar. Termina com a Revolução, aquela dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Também há uma regionalização do espaço do latifúndio: O Alentejo, Évora mais particularmente. Sendo ainda mais preciso, uma pequena vila do interior: Monte Lavre.

Uma rápida consulta ao Google nos diz o que segue, sobre a questão agrária após a Revolução: "A Revolução dos Cravos marcou o início de uma nova era para Portugal, caracterizada pela realização de transformações profundas como as nacionalizações; as ocupações de terras, a reforma agrária, a formação de cooperativas e grandes unidades coletivas agrícolas; o controle e a gestão de empresas pelos trabalhadores". Creio ser esta uma bela ilustração. É a este despertar que o escritor quer simbolizar com o seu Levantando do chão.

O romance inicia com uma monumental frase em epígrafe. Ela é do escritor romântico, Almeida Garrett: "E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico". As perguntas, os questionamentos sempre incomodam. Bem, assim está iniciado o romance. O latifúndio em Portugal ao longo do século XX. Mas ele começou bem antes.

Ele começou quando em Portugal chegaram os Dagobertos, os Albertos, os Humbertos e outros Bertos. De olhos bem azuis. Para eles, a propriedade privada da terra estava inscrita nas leis de Deus. Ao menos era isso o que dizia o padre Agamedes, sempre a conciliar em favor da ordem estabelecida, em troca de promessas no distante e incerto outro mundo, o mundo do além. Assim já era antes de 1910, sob o império da monarquia e assim o seria com a república, que de pública tinha apenas a promessa. E assim como no Brasil, conseguiu ser igual ou ainda pior que a monarquia. E tudo piorou sob a ditadura de Salazar, tão violenta como o foram os tempos da inquisição, que se dizia santa. Contra as reivindicações dos trabalhadores, o padre Agamedes invocava a Santíssima Trindade da ordem estabelecida: A Igreja, o latifúndio e o Estado, sendo este representado pela guarda, sempre bem armada.

Do outro lado, temos a saga da família Mau-Tempo, em tempos de intempérie. Começou com Domingos, o desencontrado. Continuou com João e a filha Gracinda, esta casada com Manuel Espada. Com Manuel e os companheiros, entre eles um mártir, as prisões e as torturas se tornaram parte do cotidiano. Mas os camaradas não se entregavam e muito menos entregavam os companheiros camaradas. Das profundezas dos abismos buscavam forças e como do chão viam subirem as forças da vida, do alimento que lhes faltava, também eles encontravam forças e celebravam, em alegrias não dimensionadas as pequenas vitórias: De 22 escudos passaram para 33, a idade de Cristo. E de 33 foram para 40. E já não mais trabalhavam de sol a sol, mas apenas (apenas) 8 horas diárias. E os Bertos reclamavam: sobrava tempo para maquinações e vadiagem. E os guardas se tornavam cada vez mais incansáveis na caça aos temíveis comunistas, os comedores de criancinhas, os inimigos da civilização. João e Gracinda, pai e filha, tinham os olhos muito azuis, uma marca dos Bertos, que além do latifúndio, também se arrogavam outras propriedades.

Além da crítica social, da denúncia das inconcebíveis injustiças da fome e da fadiga, da doença e da conformidade como eternas companheiras, há a presença da esperança, sempre no imaginário e no horizonte e juntos se fortalecem, se erguem do chão com a força da linguagem, bem deles e distante das prédicas de padre Agamedes. Esta linguagem que tão bem entenderam lhes deu a necessária força para, a exemplo das forças de vida que se levantam do chão, para também eles se erguerem e viverem os novos tempos de transformação, acima de tudo brotada da consciência de sujeitos, que não mais se submeteriam às forças da sujeição. E... lembrando Paulo Freire e a sua Pedagogia do oprimido.

Da orelha do livro tomo um parágrafo para efeito de síntese: "O livro é a narrativa da vida de uma família de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) da região do Alentejo, no sul de Portugal, em cujos limites se passou o romance, desde o começo do século até logo após o 25 de abril. Trata-se de uma denúncia vigorosa da exploração, do desemprego e da miséria e, ao mesmo tempo, da tomada de consciência política por parte do trabalhador rural: o aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jornada e pela posse útil da terra".

E na contracapa, o próprio Saramago fala de sua obra: "Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: 'Isto é o Alentejo.'

Dos sonhos, porém, acordamos todos, e agora eis-me não diante do sonho realizado, mas da concreta e possível forma do sonho. Por isso me limitarei a escrever: 'Isto é um livro sobre o Alentejo. 'Um livro, um simples romance, gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grandes fomes, as vitórias e os desastres, as aprendizagens da transformação, e mortes.

É portanto um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação. leva como título e nome, para procurar e ser procurado, estas palavras sem nenhuma glória -  Levantando do chão.

Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira. Enfim, cá estou outra vez a sonhar. Como os homens a quem me dirijo".

E, como já disse ao reler O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, também o digo agora, o quanto é bom reler os nossos grandes escritores. Obras que fazem sonhar, que dão forças para o levantar do chão e nos fazer permanecer - bem alto erguidos.


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