Na continuidade de minhas releituras de José Saramago chegou a vez daquele que eu considero como o seu mais importante livro. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Seria uma autobiografia? Talvez sim, pois, Saramago procura penetrar no âmago da subjetividade de Jesus e expor todas as dúvidas e angústias que o "Filho do Homem" sentiu e sofreu, sem entender direito qual a missão que lhe fora reservada por seu Pai. Seu Pai, não o carpinteiro José, mas sim, o próprio Deus. Tema de difícil e delicada abordagem, fundamento maior da cultura ocidental. O livro é do ano de 1991. O seu título de Nobel da Literatura é do ano de 1998. O título também poderia ser, sem dúvida, O Evangelho segundo José Saramago.
O Evangelho segundo Jesus Cristo. Companhia das Letras. 1999. 21ª reimpressão.De uma questão tratada ao final do livro, tomo a razão de ser do mesmo. A cena envolve um diálogo de Jesus com os discípulos, também eles interessados em entender a missão de Jesus: "Que quer Deus, afinal, perguntou João. Quer uma assembleia maior do que aquela que tem, quer o mundo todo para si, Mas se Deus é senhor do universo, como pode o mundo não ser seu, e não desde ontem ou amanhã, mas desde sempre, perguntou Tomé, Isso não sei, disse Jesus,"... (p. 435). A dúvida ou as dúvidas de Jesus perpassam todo o livro e aponto, desde já, para o capítulo de número 22 (páginas 363 a 400), onde a questão é especificamente tratada. No meu modesto modo de ver, são estas páginas, seguramente das mais impactantes da literatura universal. Voltaremos à questão.
Para começar, uma questão de contextualização. No tempo de Jesus, a região habitada pelo povo hebreu estava sob a dominação do Império Romano, em aliança com os sacerdotes do Templo de Jerusalém, vivendo assim, sob uma dupla dominação. A libertação do povo era um desejo dominante entre os judeus e a aparição de "libertadores" desse jugo era bastante comum. Após a morte de Jesus, os discípulos continuaram a sua missão. A propagação, ou aquele "quer o mundo todo para si", teve grande impulso com Paulo, o chamado apóstolo dos gentios, isto é, do povo não judeu. Para explicar para esses novos adeptos da religião em expansão é que foram escritos os Evangelhos. Isso a partir dos anos 70 d.C., quando o centro dessa religião já tinha se transferido para Roma. Assim, essas versões já estavam um tanto distantes e não concomitantes aos fatos históricos. O Evangelho segundo Jesus Cristo, não foi escrito para os seguidores, mas para o mundo inteiro refletir sobre a doutrina que se transformou num dos pilares da civilização ocidental. Provocar reflexões, com certeza, foi o objetivo maior desse livro monumental.
No Evangelho segundo Jesus Cristo, chama muito a atenção o título com o qual Jesus sempre se apresentava, o "Filho do Homem", não de José, mas também dele. Um Jesus profundamente humano, que viveu todos os dramas humanos, com as suas doçuras e agruras, alternando momentos de intensa alegria e satisfação com os de profundas e imensas dores e tristezas. Momentos de obediência à religião herdada, com momentos de corajosa rebeldia, a tal ponto de, já aos 12 - 13 anos de idade, abandonar a sua mãe, já viúva, pois José morrera crucificado sob o jugo romano, quando fora acudir um vizinho seu. O motivo de sua rebeldia é uma das reflexões condutoras desse seu Evangelho. Trata-se da ordem de Herodes de mandar matar todas as crianças nascidas em Belém e que tivessem menos de três anos. Eram em torno de 25, essas crianças.
Acontece que José, estando no Templo, ouviu dos soldados que esta ordem de execução fora dada aos soldados romanos. Qual foi então a sua atitude? Ele tratou de salvar o seu filho, apenas o seu, ao não comunicar a ordem de execução aos demais pais da cidade de Belém. O Jesus menino, na ocasião foi salvo por haver nascido numa gruta, fora do âmbito urbano. De uma forma ou de outra, Jesus ficou sabendo desse episódio. Todas as noites tinha sonhos horríveis. Acordava com profundos sentimentos de culpa. Isso o leva a querer reconstituir o seu passado, abandonando a casa de sua mãe e de seus irmãos. Irá discutir com os escribas do Templo, viver no pastoreio de ovelhas sob o comando de Pastor (o demônio - observem o detalhe), visitar o local de nascimento e conversar com a escrava Zelomi, que ajudara a sua mãe no seu parto. Em suas andanças, a culpa será a sua mais fiel companheira.
Na volta para casa, após quatro anos, tem os seus pés em chagas e pede ajuda em uma casa em Magdala, já nas proximidades de Nazaré. Lá é atendido por Maria, a Maria de Magdala, prostitua de profissão. São, mais uma vez, na minha modesta opinião, das páginas mais cheias de beleza, amor e ternura da literatura universal, as que ali são descritas. Após ter cuidado dessas feridas, lhe foram abertas as feridas do amor, da paixão e da saudade. Após breve visita à mãe e aos irmãos, que não reconhecem a missão, da qual Jesus já tinha alguma noção, se retira definitivamente de sua casa e volta para Maria de Magdala. Esta, que já abandonara a sua profissão, será a companheira de todas as horas de Jesus.
Por óbvio, não vou fazer uma síntese, passo a passo, do livro. O que eu quero é exaltar os trechos que me foram os mais significativos. Por isso volto ao já enunciado capítulo 22. Mas, antes ainda, quero salientar a beleza das conhecidas cenas da multiplicação dos pães e peixes, da transformação da água em vinho, nas bodas de Caná e do sermão das bem-aventuranças. Nesse capítulo, o de número 22, Deus explicita a missão que destinou a Jesus, qual seja, um reino de glórias em troca de sua vida, por uma horrível e ignominiosa morte. Um reino futuro, porém.
Nesse capítulo Saramago nomeia os custos dessa vontade de Deus, em não mais querer ser o Deus de apenas um povo, mas de ser o Deus de todos os povos, o Deus universal. Em perspectiva, Saramago enuncia o sacrifício de tantos santos mártires, das Cruzadas, da Inquisição, vidas em isolamento, jejuns e autoflagelação. Jesus até ousa a pergunta se os deuses dos outros povos aceitariam tudo isso de forma passiva e pacífica. Nesse capítulo Saramago reúne Deus, o Pastor (lembram - o demônio, com quem Jesus trabalhara) e o próprio Jesus. São quarentas dias de encontro em uma barca. Numa cena de muita força o demônio procura uma reconciliação com Deus, prometendo renunciar ao seu ministério, se Deus também renunciasse ao seu projeto de extensão de sua religião, pacto ao qual Deus se recusa a aceitar. Destaquei um pequeno trecho:
"Não me aceitas, não me perdoas. Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora, Porquê, Porque este Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és, um Bem que tivesse de existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imaginá-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro, É a tua última palavra. A primeira e a última, a primeira porque foi a primeira vez que a disse, a última porque a não repetirei" (páginas 392-393). Não lembra Nietzsche e O nascimento da tragédia?
Talvez seja por isso que nas orelhas do livro, ele é apresentado como escrito com "socrática agudeza e voltaireana ironia". Vejamos o contexto: "... Na que é de justiça reconhecer a melhor prosa de ficção da língua portuguesa de nossos dias, José Saramago nos conta mais uma vez a mesma história que vem sendo contada há tantos séculos. A mesma? Sim, se tiver em vista tão só os personagens e os sucessos da fábula. Não, se se atentar para a nova carnadura de que aqui se revestem. Interessado menos na onipotência do divino que na frágil mas tenaz resistência do humano, a arte magistral de Saramago excele no dar corpo às preliminares e à culminância do drama da Paixão, presentificando-lhe as cores, cheiros, sons, movimentos, esmiuçando-lhe as ambiguidades e implicações em busca de significados recônditos por sob os ostensivos. Leiam-se, a título de exemplo de presentificação, as páginas de bravura que pintam os sacrifícios de sempre no Templo de Jerusalém. E onde melhor exemplo de esmiuçamento crítico que as páginas de socrática agudeza e voltaireana ironia acerca do debate travado entre Deus e o Diabo na barca perdida em meio ao nevoeiro de quarenta dias?
Mas é bom ver que nessa agudeza não há soberba de espírito, nem há desencanto do mundo nessa ironia: há lucidez e compreensão do humano, demasiadamente humano. O cognome de Filho do Homem que o Messias se dava adquire uma plenitude de sentido que o leitor não terá dificuldade em compreender se atentar para o que acontece aqui com o carpinteiro José, para o pedido de Cristo faz a Judas pouco antes de ser crucificado, e para as últimas palavras que diz de olhos voltados para o céu. Compreendido isso, será mais fácil entender por que este evangelho tem o título que tem".
E..., a cena final, na qual as interrogações continuam: "Depois, foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava". Lembrando que essa emblemática tigela negra está onipresente ao longo de todo o livro.
Deixo ainda a resenha de dois livros sobre o tema Jesus. De frei Betto, o Jesus militante
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/jesus-militante-o-evangelho-e-projeto.html
E de Reza Aslan Zelota - a vida e a época de Jesus de Nazaré.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/07/zelota-vida-e-epoca-de-jesus-de-nazare.html
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