sexta-feira, 30 de agosto de 2024

CAIM. José Saramago.

Nas minhas releituras de Saramago, me havia proposto a fazê-lo pela ordem de sua escrita. Não cumpri com essa minha intenção, depois de ler O Evangelho segundo Jesus Cristo. Optei por ficar com o tema da religião, com Caim, o seu acerto de contas com o antigo ou o primeiro testamento. Este livro é do ano de 2009. No meu entendimento ele é ainda mais ácido, em sua crítica, do que o Evangelho. A leitura desses dois livros é de fundamental importância para quem quiser minimente lançar um olhar sobre os pilares de nossa civilização, a dita civilização ocidental e cristã, ou judaico-cristã, fora das pregações religiosas.
Caim. José Saramago. Companhia das Letras. 2009.

A leitura de Caim implica num bom conhecimento bíblico, no caso, do Antigo Testamento, dos fatos ali narrados. Como sou de formação católica e não cheguei até o curso de teologia, eu os conheço apenas por ouvir falar e outras fontes, sempre religiosas. Se excetuam alguns fatos em que a curiosidade me levou à leitura. Trago comigo uma edição da Bíblia, da editora Ave Maria, que comprei em meados da década de 1960, numa livraria das irmãs paulinas, no centro de Porto Alegre. Uma edição do ano de 1964, 5ª edição. A mantenho como fonte para consultas.

Esse acerto de contas com o Antigo Testamento tem como personagem central Caim, aquele que matou o seu irmão Abel. Na visão de Saramago Caim não era tão mau, como e quanto sempre é pintado. Abel, diríamos numa linguagem dos tempos atuais, lhe praticava bullyng. Lhe tirava sarro pelo fato de Deus não aceitar os seus sacrifícios, ao contrário dos seus, motivo para auto exaltações E como as interrogações sempre incomodam, Saramago lança uma bem implicante. Quais seriam as razões para que Deus aceitasse apenas os sacrifícios de Abel. Questões de preferência, de ciúmes? Se o personagem é Caim, a intenção do livro é bem maior do que o personagem. A intenção de Saramago é, certamente,  a grande interrogação sobre os motivos da criação dos homens. O Deus Criador (tudo minúsculo em Saramago) parece ser alguém sempre mal humorado ou mesmo do mal, sim, mais do mal do que mal humorado.

Começa com os castigos impostos a Adão e Eva, pelo pecado cometido, ainda no paraíso. Qual mesmo? O da curiosidade. Comeram o fruto da árvore do conhecimento. Seriam iguais a Deus, ideia para Ele insuportável. E vejam o tamanho do castigo, além de desproporcional. "A partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incômodos da gravidez, incluindo os enjoos, como parirás com dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal triste destino vai ser o teu, disse eva. Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ficou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra"...

Pelo visto, Deus não economizou nos castigos, a começar pelo fim da boa vida no paraíso. Para a mulher mais: dor e incômodos da gravidez e do parto; repetição dessa dor pelo desejo e a submissão ao homem e, para Adão o tripalium, ou o trabalho como castigo. Vejam os fundamentos da tal da cultura ocidental. Ela começou com uma mácula original, da qual todos nós somos herdeiros. Logo após, lhes vem a briga entre os filhos Caim e Abel.  Deus não tem comiseração por Caim. Lhe deixa uma marca na testa e o obriga a peregrinar errante pela terra, em troca da vida. 

Para Saramago já havia outros homens habitando a terra. A partir desse momento, o das peregrinações de Caim, encontraremos o que já anunciamos, o fio condutor da narrativa: Aí estará o encontro com Lilith, com quem estabelecerá uma "festa dos corpos"; as histórias de Abraão e o sacrifício de Isaac (Só que será Caim a segurar a mão de Abraão); a torre de Babel e o desentendimento entre os homens e a insuportável ideia para Deus de que os homens o alcançassem e o temor de suas inteligências; a destruição de Sodoma e Gomorra, onde nem dez inocentes seriam encontrados (nem mesmo as crianças); a fúria de Moisés e de Josué no episódio do bezerro de ouro e na guerra com os madianitas e a partilha dos despojos (Deus será invocado como o Senhor dos exércitos e das guerras); a destruição de Jericó; o pacto entre Deus e o Diabo sobre o teste de fidelidade de Job (Ah se Kierkegaard pudesse ter lido esse livro!); por fim, o seu projeto de arrependimento da criação dos homens e a sua destruição pelo dilúvio. Mas esse episódio merece uma atenção especial

A humanidade teria um recomeço. Tudo e todos seriam destruídos, menos os de interior da arca. Entre eles também estava Caim. Seria uma nova criação da humanidade. Ela teria um novo pai, uma nova família. Um modelo de família (Seria como as apregoadas hoje em dia?). Noé, seus filhos e filhas encarnariam os valores dessa nova constelação familiar. Meio ou muito complicado. Embriaguez, promiscuidade, o comportamento da mulher, do próprio Noé.... Mas como diz o padre Amaro, aquele do crime, no romance de Eça de Queiroz, - a moral existe para ser pregada e não para ser praticada... - Um belo recomeço de tudo! Os dois últimos capítulos, os de número 12 e 13, pertencem necessariamente ao rol das páginas mais irônicas e sarcásticas da literatura universal.

Ao final, um duro embate entre Deus e Caim; "Então a nova humanidade que eu tinha anunciado. Houve uma, não haverá outra e ninguém dará pela falta, Caim és, e malvado, infame matador do teu próprio irmão, Não tão malvado e infame quanto tu, lembra-te das crianças de sodoma. Houve um grande silêncio. depois caim disse, Agora já podes matar-me, Não posso, palavra de Deus não volta atrás, morrerás da tua natural morte na terra abandonada e as aves de rapina virão devorar-te a carne, Sim, depois de tu primeiro me haveres devorado o espírito. A resposta de deus não chegou a ser ouvida, também a fala seguinte de caim se perdeu, o mais natural é que tenham argumentado um contra o outro uma vez e muitas, a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda. A história acabou, não haverá nada mais que contar". Para a contar, Saramago precisou apenas de 172 páginas.

A verdadeira raiva e ódio de Caim não era de Abel, o seu irmão, mas de  deus, uma vez que este não aceitara os seus sacrifícios. Mas este seu intento não se concretizou. Se isso fosse possível, aí sim poderíamos ter tido uma outra civilização. Deixo ainda as orelhas do livro:

"Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura.

Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.

A volta ao tema religioso serve, também, para destacar o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: aqui a capacidade de tornar nova uma história que conhecemos de cabo a rabo, revelando com mordacidade o que se esconde nas frestas dessas antigas lendas. Munido de ferina veia humorística, Saramago descreve uma estranha guerra entre o homem e o senhor. mais que isso, investiga a fundo as possibilidades narrativas da Bíblia, demonstrando novamente que, ao recontar o mito e confrontar a tradição, o bom autor volta à superfície com uma história tão atual e relevante quanto se pode ser".

Deixo também a outra obra de Saramago sobre o tema religioso. O Evangelho segundo Jesus Cristo.





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