Há muito eu ouvia falar do livro Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré, do historiador iraniano, radicado nos Estados Unidos. Quem mais dele me falava era o meu amigo Valdemar Reinert, um estudioso apaixonado pela tema da religião. Agora foi o livro da vez. O li de um só fôlego. Embora eu tenha toda uma vida de formação religiosa, adquirida nos seminários de Bom Princípio, Gravataí e Viamão, todos no Rio Grande do Sul, pude constatar o quão pouco realmente sabemos sobre a figura histórica de Jesus e da implantação do cristianismo, seguramente uma religião que pretendeu ser universal. Será que era esse mesmo, o projeto de Jesus de Nazaré?
Zelota - A vida e a época de Jesus de Nazaré. Reza Aslan. Zahar. 2013. 9ª reimpressão. Tradução: Marlene Suano.
Antes de entrar na questão da análise do livro, apresento as orelhas: "Uma biografia fascinante e provocadora que desafia nossa compreensão do homem Jesus de Nazaré e de sua época.
Dois mil anos atrás, um pregador judeu atravessou a Galileia realizando milagres e reunindo seguidores para estabelecer o que chamou de 'Reino de Deus'. Assim, lançou um movimento revolucionário tão ameaçador à ordem estabelecida que foi capturado, torturado e executado como um criminoso de Estado. Seu nome era Jesus de Nazaré. Poucas décadas após sua morte, seus seguidores o chamariam de 'o filho de Deus'.
Com uma prosa envolvente, baseada em pesquisa meticulosa, o escritor e especialista em religião Reza Aslan mergulha na turbulenta época em que Jesus viveu, reconstruindo com maestria a Palestina do século I em busca do Jesus histórico. Ao fazê-lo, encontra um rebelde carismático que desafiava as autoridades de Roma e a alta hierarquia religiosa judaica - um dos chamados zelotas, nacionalistas radicais que consideravam dever de todo judeu combater a ocupação romana.
Comparando o Jesus dos Evangelhos com o das fontes históricas, Aslan descreve um homem cheio de convicções, paixão e contradição; e aborda as razões porque a igreja cristã preferiu promover a imagem de Jesus como um mestre espiritual pacífico em vez de revolucionário politicamente conscientizado que ele foi.
Em uma narrativa de tirar o fôlego, Zelota oferece uma nova perspectiva sobre aquela que talvez seja a história mais extraordinária da humanidade, e afirma a natureza radical e transformadora da vida e da missão de Jesus de Nazaré".
Instigante? Intrigante? Ao longo de toda a minha formação religiosa eu sempre recebi tudo pronto. Religião é uma questão de fé e, na dúvida entre a fé e a razão, agostinianamente sempre ficávamos com a fé. Assim éramos preparados para exercer a função de manter viva essa fé, no caso, a sua versão católica. A verdade nos foi revelada. A Bíblia é a palavra de Deus e Jesus é o próprio filho de Deus. Tudo envolto em mistérios. Os mistérios da fé. O livro de Aslan nos traz a história, nos traz a construção de uma narrativa, nos traz as contradições encontradas na própria Bíblia e no confronto com as fontes históricas.
Em suma, se em poucas linhas eu tivesse que sintetizar o livro eu faria o seguinte esforço: Jesus, nascido em Nazaré, era um judeu e abraçava uma versão de uma parte de seu povo, os zelotas. Os zelotas pregavam o "Reino de Deus", livres do jugo romano, mantido em uma aliança com os sacerdotes do Templo. Jesus os afrontou e foi condenado e executado ao modo romano (a crucificação). Jesus teve discípulos. Uns, sediados em Jerusalém, seguiam Tiago, o irmão de Jesus. Seguiam a Torá. Outros se helenizaram, ocupando as principais cidades do Mediterrâneo. Estavam dispostos a aceitar flexibilizações à lei judaica e eram comandados por Paulo. Com a morte de Tiago, Roma ganhou ascendência sobre Jerusalém como sede do cristianismo. Ali Tiago já havia instalado Pedro como o chefe de seu grupo. Paulo chega depois e procura tornar o cristianismo adaptável aos gentios (aos não judeus). Paulo transforma a religião, retirando dela o caráter revolucionário e de justiça social que os zelotas lhe tinham imprimido e cola em Cristo o seu caráter divino e conciliador. Com a destruição de Jerusalém (ano 70 d. C.) Roma se torna o centro do cristianismo e este se afirma com Constantino e o Concílio de Niceia. Este estabeleceu a ortodoxia da natureza divina de Jesus e transformou o cristianismo em religião de Estado. Paulo triunfou?
Essas polêmicas entre os seguidores de Tiago e Paulo nos foram muito bem ocultados. No epílogo, o autor nos lembra que o cristianismo para se afirmar, além de Niceia, também definiu no ano de 398 d.C., em Hippo Regus (atual Argélia) os 27 livros que comporiam o Novo Testamento. Mais da metade são livros de Paulo ou dele falam (p.233).
Creio que ainda precisamos definir quem eram os zelotas. Vamos ao autor: "Muitos judeus na Palestina do século I se esforçaram para viver uma vida de zelo, cada um à sua própria maneira. Mas houve alguns que, a fim de preservar os seus ideais zelosos, estavam dispostos a recorrer a atos extremos de violência se necessário, não apenas contra os romanos e as massas não circuncidadas, mas contra os compatriotas judeus, aqueles que ousaram se submeter a Roma. Eles foram chamados de zelotas" (p. 65).
A frase em epígrafe reflete esse espírito zelota: Não pense que eu vim trazer paz sobre a terra. Eu não vim trazer paz, mas a espada (Mateus 10:34). O livro, de 303 páginas, contém um mapa da Palestina do século I, do Templo de Jerusalém, de nota do autor, introdução, cronologia, o corpo do livro dividido em três partes, epílogo, notas e referências. Vou me ater às três partes. Cada uma delas tem um prólogo. Ao todo são quinze capítulos. Vamos ás partes e e aos respectivos capítulos:
Parte I: Prólogo: Um tipo diferente de sacrifício (uma descrição do Templo, sua estrutura e os sacrifícios); 1. Um buraco no canto (Jerusalém para o Império Romano); 2. Rei dos judeus (o domínio romano e a busca da libertação); 3. Vós sabeis de onde venho (Jesus de Nazaré - Belém - fuga para o Egito?); 4. A quarta filosofia (Nazaré - carpinteiro - Séforis - família e a filosofia dos zelotas); 5 Onde está sua frota para varrer os mares romanos? (Pilatos e Caifás - As rebeliões - os sicários - o Zelo); 6. Ano Um (O povo de Deus e a sua destruição (70 d.C), o arrefecer das lutas do Povo de Deus).
Parte II. Prólogo: Zele por sua casa (a vida pública, entrada em Jerusalém, o Templo - um covil de ladrões, os tributos, a prisão e a execução).7. A voz clamando no deserto (João Batista e o anúncio do reino, o batizado de Jesus); 8. Segui-me (A Palestina sob o Império Romano, 12 tribos, doze apóstolos, Caifás, o maior inimigo, os milagres e a fama). 9. Pelo dedo de Deus (um exorcista em Cafarnaum, o dedo de Deus que cura). 10. Que venha a nós o teu Reino (Um convite para todos, o Pai nosso, os zelotas e não princípios éticos abstratos, não ao domínio romano). 11. Quem vós dizeis que sou? (Tu és o Messias? "Eu o sou". De zelota a celestial e divino). 12. Nenhum rei senão César (A prisão, Caifás e Pilatos, a condenação por Pilatos, a morte romana pela crucificação).
Parte III. Prólogo: Deus feito carne (A ressurreição. Estevão, o primeiro mártir. O homem-Deus. Saulo-Paulo. A reinterpretação helenística. De zelota a um deus romantizado. Tiago X Paulo. A abertura para um Deus global). 13. Se Cristo não foi ressuscitado (Duas correntes: a de Jerusalém - Tiago, Pedro e João e a helênica - Paulo. A grande transformação; de religião nacional para uma religião global. Paulo e a conversão dos gentios). 14. Não sou eu um apóstolo? (De Saulo a Paulo. De judeu a helenista. Os confrontos entre Tiago e Paulo. Pedro e Paulo em Roma). 15. O Justo (Tiago. Oposições com Paulo. A fé e as obras. Depois do ano 70 d.C., - de Jerusalém a Roma. A partir dos séculos III e IV, o domínio de Paulo. Do Jesus Zelota a Jesus de Nazaré).
Epílogo: Deus verdadeiro de Deus verdadeiro (325 d.C. - O Concílio de Niceia. Constantino, o primeiro imperador cristão. A ortodoxia em torno da natureza de Deus. A construção do Novo Testamento - Hippo Regius - 398 d.C. - O triunfo de Paulo). Deixo ainda o último parágrafo do historiador:
"Dois mil anos depois, o Cristo da criação de Paulo totalmente subjugou o Jesus da história. A memória do zelota revolucionário que atravessou a Galileia reunindo um exército de discípulos com o objetivo de estabelecer o Reino de Deus na terra, o pregador magnético que provocou a autoridade do sacerdócio do Templo em Jerusalém, o nacionalista judeu radical que desafiou a ocupação romana e perdeu, ficou quase completamente perdida para a história. Isso é uma pena. Porque a única coisa que qualquer estudo abrangente sobre o Jesus histórico deveria ter esperança de revelar é que Jesus de Nazaré, Jesus, o homem, é tão atraente, carismático e louvável como Jesus, o Cristo. Ele é, em suma, alguém em que vale a pena acreditar" (p. 233). Um caminho aberto para um cristianismo conservador.
O próximo desafio será a leitura de Jesus militante - Evangelho e projeto político do Reino de Deus, de Frei Betto, que, como já verifiquei na bibliografia, não inclui Zelota na sua relação.
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