terça-feira, 2 de julho de 2024

CARTA AO PAI. Franz Kafka.

Andei por uma série de leituras que, se assim posso dizer, seriam um tanto depressivas. Não a leitura propriamente, mas sim, os temas abordados. Um realismo de fazer doer e doer muito. Entre essas leituras incluiria Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas e Deixe o quarto como está - ou estudos para a composição do cansaço, de Amilcar Bettega, que, como se lê na contracapa de seu livro, flertava com Kafka. Não custaria continuar por aí. Confesso que comecei a leitura de Carta ao pai, algumas vezes, apenas começava. Dessa vez a empreitada não ficaria pela metade.
Carta ao pai. Franz Kafka. L&PM - Pocket.

Uma pergunta: Carta ao pai é a autobiografia de Kafka? É uma obra de psicologia ou de psicanálise? É um tratado ou um ensaio sobre a autoridade ou sobre o autoritarismo? Creio que a resposta para as três perguntas é: SIM. Ela é uma autobiografia em que Kafka revela a atribulada relação com o seu pai, uma relação profundamente edipiana e é, acima de tudo, um grito agudo de dor e uma manifestação de profunda impotência de um filho diante de um pai autoritário, tirano, medida de todas as coisas. É um jogar na cara todos os estragos havidos e incorporados ao longo de toda uma Erziehung. Um pai autoritário e um filho tímido e inseguro.

Qual foi a razão para isso? Tudo indica que Franz buscava, com a carta, uma reconciliação com o pai. Não obstante nunca ter enviado a mesma a ele. Provavelmente porque sabia da fria recepção que ela teria. Certamente jamais seria lida. Como carta, ela é longa. Foi um manuscrito de mais de cem páginas. Um enfileirar de queixas e mais queixas. Quais foram as principais? O medo, medo presente, inclusive na escrita da carta. Para ti, tudo era simples. Uma vida inteira sacrificada em função dos filhos, para que nada lhes faltasse. Parece que faltou o principal. Afeto. Sempre me escondi de ti e, entre nós, nunca houve uma conversa franca. Algumas citações fortes:

Já nos primeiros parágrafos, logo depois do Lieber Vater.  "Tu me perguntaste recentemente porque afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento"(p. 17-18)

Quem eu sou? "Naturalmente, não quero dizer que me tornei o que sou apenas através da tua ascendência. Isso seria por demais exagerado (e eu até me inclino a esse exagero). É bem possível que eu, mesmo se tivesse crescido totalmente livre da tua influência, não pudesse me tornar um ser humano na medida em que o teu coração o desejava. É provável que mesmo assim eu me tornasse um homem débil, amedrontado, hesitante, inquieto" (p. 21).

Consequências? "A impossibilidade da relação tranquila teve uma outra consequência, muito natural no fundo: eu desaprendi a falar. Por certo eu não teria sido, sendo outro o contexto, um grande orador, mas sem dúvida teria dominado a linguagem humana corrente e comum. Mas tu me proibiste a palavra desde cedo, tua ameaça: 'Nenhuma palavra de contestação!' e a mão erguida para sublinhá-la me acompanham desde então. Adquiri junto de ti - és, quando se trata  de tuas coisas, um orador excelente - um modo de falar entrecortado, gaguejante, e também isso era demais para ti, de modo que por fim calei, primeiro por teimosia talvez, mais tarde porque diante de ti eu não conseguia pensar nem falar. E uma vez que eras meu educador verdadeiro, isso repercutiu por tudo em minha vida" (p.35).

As tuas armas? "Teus recursos oratórios, eficazes ao extremo e jamais falhos, pelo menos no que diz respeito a mim eram: insultar, ameaçar, ironia, riso malvado e - curiosamente - autoacusação" (p.37).

E a arma da educação pela ironia? "Era ela a que melhor correspondia à tua superioridade sobre mim. Em ti, uma advertência tinha comumente a seguinte forma: 'Não podes fazer isso assim ou assado'? 'Será que isso já é demais para ti'? 'Pra isso naturalmente não tens tempo'? e assim por diante. E cada uma dessas perguntas era acompanhada por um riso irritado e uma cara feia. De certa maneira a gente já se sentia punido antes mesmo de saber que havia feito algo errado" (p.39). E por aí vai.

Creio que até essas páginas (por volta da 40) estão as questões essenciais. Depois Kafka passa a examinar os destroços de sua educação autoritária e de total ausência do diálogo sobre os diferentes setores de sua vida: sobre o seu comportamento na loja, com ele e com os funcionários; sobre a sua religiosidade, de um judaísmo praticado com superficialidade e sem nenhum comprometimento. (Neste particular viveram a transição de uma religião praticada no campo e transferida para a cidade); sobre a sua atividade de escritor, que Kafka tanto prezava, sobre a sua profissão, numa atividade burocrática que ele detestava e, sobretudo, sobre a sua vida sexual e afetiva e que nunca passou da fase de noivado.

O noivado, aliás foi o motivo maior, a razão da escrita da carta. A respeito lemos na contracapa "entre os dias 10 e 19 de novembro de 1919, Franz Kafka, insatisfeito com a fria recepção paterna diante do noivado com Julie Wohryzek, escreveu ao pai, o comerciante judeu Hermann Kafka, uma longa carta - mais de cem páginas manuscritas. Kafka tinha então 36 anos".

A Carta ao pai que eu li é uma publicação da L&PM Pocket, com tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes. O seu prefácio é precioso. É uma contextualização da mesma. Desse prefácio, entre o que eu sublinhei, destaquei essa passagem:

"Porém é o pai - um verdadeiro catálogo de seus erros na educação do filho é estendido à frente do leitor - que aparece debruçado em toda a sua inteireza sobre o mapa-mundi, numa imagem que lembra as brincadeiras bem mais tardias de Charles Chaplin com o Grande Ditador; é a sua presença avassaladora que faz o filho proclamar: 'Da tua poltrona, tu regias o mundo' e chamá-lo de tirano, de regente, de rei e de Deus. Há exageros, claro - coisa que o próprio autor  reconhece -, e floreios retóricos. Kafka era advogado, leitor apaixonado das cartas de Kleist, Hebbel, Flaubert, e a objetividade da consideração jamais foi seu forte. Mas há também a luta honesta, típica da obra kafkiana, que Peter Handke detectou num dos aforismos de A história do lápis: 'Percebo que Kafka lutou por cada frase, e sobretudo pela continuação de cada frase'. E estamos lendo uma autobiografia, não há a menor dúvida... Em vez de interpretar a obra a partir do complexo de Édipo, no entanto, o mais interessante talvez fosse interpretar o complexo de Édipo a partir da obra. Ademais, assim como em seus romances, é o próprio Kafka - e Benjamin já o havia constatado - que está o 'centro' de sua obra".

Leitura instigante sob todos os aspectos. Para mim, o que mais me marcou foram os destroços causados pelo autoritarismo na formação da personalidade. Creio que essa marca me veio a partir do momento em que recrudescem no país os projetos ditatoriais com as suas sanhas autoritárias na política educacional com a instituição das nefastas escolas cívico militares. Tempos sombrios. Autor - autoridade - autoritarismos - anulações...

Deixo também resenhas biográficas de Kafka:




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