domingo, 10 de março de 2024

200 anos da imigração alemã. Érico Veríssimo conta como foi. O tempo e o vento.

O tempo e o vento é seguramente a maior epopeia da literatura brasileira. É o retrato perfeito de mais de duzentos anos de história, da colonização e povoação do Continente. "Veio gente de tudo que era lado", nos conta Érico Veríssimo, o seu autor. Entre as gentes que vieram estão os alemães. Por sinal, neste ano de 2024, faz duzentos anos que isso aconteceu. E Érico Veríssimo nos conta como foi. Entre os que chegaram, estão os meus antepassados. Estes chegaram um pouco mais tarde, em 1828 e fizeram - não de São Leopoldo, mas de São José do Hortêncio a sua querência. Mas, vejamos o Érico nos contando da chegada dos alemães:

O tempo e o vento (parte I). O Continente (Vol. I). Companhia das Letras.

"E as bandeiras e velas do bergantim Protetor, que está atracando no trapiche de Porto Alegre com imigrantes alemães a bordo.

S. Exa., o Presidente da Província, de chapéu alto e sobrecasaca, os espera no porto, no meio de autoridades.

Da amurada do navio, Willy olha a cidade que os casais açorianos fundaram.

Desembarca meio estonteado, de mãos dadas com a mulher: Hänsel e Gretel, coitados, perdidos na floresta.

Num batelão com outras famílias de imigrantes sobem o rio dos Sinos, de águas barrentas e margens baixas, rio sem história, sem castelos, sem ondinas nem Loreleis.

Tornam a pisar terra firme, entram num carro de bois.

Este é o lote que te toca, Willy. Agora não passarás mais fome como em tua terra natal.

Willy olha a mata. Verflucht! É preciso derrubar árvores, virar a terra e antes de mais nada fazer uma casa. Mas o alfaiate Willy não sabe construir casas. Senta-se numa pedra e fica olhando as nuvens e achando que Gott wird helfen.

Outras levas de imigrantes chegam. São da Renânia, do Palatinado, de Hesse, da Pomerânia, da Baixa Saxônia e da Vestfália.

O ar da antiga Feitoria do Linho-Cânhamo se enche do som de machados, martelos e vozes estrangeiras. Árvores tombam, picadas se abrem, e escondidos dentro do mato bugres e bugios espiam intrigados aqueles homens louros.

Heirich ficou debaixo dum cedro com o peito esmagado.

Kurt foi mordido por uma cobra.

Um índio furou o olho de Jacob com um frechaço.

Schadet nichts!

Dão à colônia o nome de São Leopoldo.

Ach mein Gott! Não gosto de charque nem de pão de milho nem de feijão com arroz. Quem me dera ter batatas, sauerkraut, pão de centeio e alguns litros de cerveja!

Willy experimenta o mate chimarrão, queima a língua, cospe longe a água verde e amarguenta. Mas Hans o ferreiro prova e gosta, veste chiripá, se amanceba com mulata e, vergonha da colônia, muda de nome: é João Ferreira.

Uma tarde em casa, nas faldas da serra Geral, Werner escreve ao seu Vetter Fritz, que ficou na Alemanha:

[...] o governo não nos deu tudo que prometeu, mas com o amor de Deus vamos vivendo.

Como não havia mais terras devolutas em São Leopoldo, nos mandaram aqui para a serra, onde existem índios ferozes.

Graças à divina Providência não passamos mais fome. Temos comida em abundância e nossa terra dá feijão branco e preto, milho, arroz e batata. Imagina, Fritz, batata! Também planto fumo, que é da melhor qualidade.

Deves vir também para cá. A viagem foi longa e dura, passei perigos e agruras, mas estou certo de que dentro de poucos anos serei um homem rico.

Olha, Fritz, tu que tanto gostas de frutas viverias aqui muito feliz, pois esta boa terra produz limas e limões, bananas, laranjas, ananases, figos, maças, melancias e melões. Agora vou plantar linho e algodão, e um dia talvez...

Werrner parou de escrever porque estava na hora de voltar para a lavoura. Nunca chegou a terminar a carta, pois naquele mesmo dia os índios atacaram a picada e mataram os colonos. Werner caiu de borco com uma frecha cravada nas costas. A última palavra que disse, babujando a terra de sangue, não foi o nome do Vaterland nem o de algum ente amado. Foi Scheisse!

Um dia um gaúcho andarengo e pobre passou a pé por São Leopoldo.

Olha a colônia que já tomava jeito de vila, viu homens trabalhando nas roças, ferreiros batendo bigorna, seleiros fazendo lombilhos, moleiros moendo trigo, padeiros fazendo pão, e como passasse por sua frente um filho de Willy, grandalhão, corado, feliz, bem montado num lindo alazão, o caboclo teve um súbito ímpeto de revolta e gritou:

Alamão batata!

E se foi, desagravado, erguendo poeira do chão com seus pés descalços.

Depois veio a guerra com os castelhanos. Formaram nas colônias uma Companhia de Voluntários alemães.

E de vários pontos da Província cinco Carés foram levados a maneador para as tropas nacionais como voluntários.

Nunca ficaram sabendo direito contra quem brigavam nem por quê.

Mas lutaram como homens, e nenhum deles desertou. Eram magros mas rijos.

Foi nessa mesma guerra que um tal Tenente Rodrigo Cambará um dia avançou a cavalo contra uma bateria castelhana e com um laço de onze braças laçou uma boca-de-fogo inimiga e se precipitou com ela, gritando e rindo a trancos e barrancos, para as linhas brasileiras.

Por essa e por outras ganhou uma medalha e foi promovido a capitão.

Pedro Caré nessa guerra teve um braço amputado. E nunca recebeu soldo.

Quando veio a paz voltou à vida antiga.

Onde foi que perdeu o braço?

Na guerra.

Não faz muita falta?

Nem tanto. Graças a Deus me cortaram só o braço.

E meio rindo ele mostrava sua china, que tinha um filho no colo e outro na barriga.

Por essa e por outras que a raça dos Carés continuou".

Creio que, também no Continente, junto com Jorge Amado, podemos dizer: "há de nascer, de crescer e de se misturar" e "Quanto mais misturado, melhor". De acordo com a narrativa de Érico, os alemães também chegaram a Santa Fé e, para o desespero do padre Lara, eram protestantes!. Deixo o link da resenha geral do livro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/erico-verissimo-descreve-as-missoes-o.html

Sobre a imigração alemã, também tenho alguns posts. Deixo aqui o link de dois deles. Os imigrantes do Hunsrück: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/os-imigrantes-do-hunsruck-haus-weber.html e sobre São José do Hortêncio: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/10/historia-de-sao-jose-do-hortencio.html



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