domingo, 17 de março de 2024

A abolição. Pelos personagens de O Continente. Vol. 2. Érico Veríssimo.

Creio que uma das maiores virtudes de Érico Veríssimo como escritor, é o fato de dar voz aos seus personagens. E como os personagem sempre são vários, está garantida a pluralidade de vozes e de opiniões. Como o segundo volume de O Continente, da trilogia de O tempo e o vento se ocupa do final do Segundo Reinado, os temas da República e da abolição da escravidão estão onipresentes. Por isso, o post especial.

O tempo e o vento. (parte I). O Continente (Vol. 2). Companhia das Letras.

No ano de 1884, a localidade de Santa Fé é elevada a condição de cidade, sede de municipalidade. Os festejos serão enormes. Uma das solenidades ocorrerá no Sobrado da família Terra Cambará, agora sob a liderança de Licurgo, que dará manumissão aos seus escravos. A descrição que Érico Veríssimo faz é riquíssima em seus detalhes e me fez lembrar o grande abolicionista Joaquim Nabuco de que - não bastaria abolir a escravidão, seria também necessário abolir a sua obra -. A escravidão permanecerá entranhada na mente até dos próprios abolicionistas, mesmo daqueles que se anteciparam ao ato oficial do 13 de maio de 1888, como ocorreu na solenidade do Sobrado.

Como creio ser um tema candente, mesmo com tanto tempo após a abolição, tomo a liberdade de pedir licença ao Érico para uma pequena transcrição do momento em que se dá a solenidade no Sobrado, que bem mostra o indicativo de Joaquim Nabuco de que a obra da escravidão estaria ainda longe de ocorrer, ou melhor, ainda não ocorreu, mesmo nos dias de hoje. Existem, isso sim, inúmeros disfarces. Mas, vamos ao texto:

"A entrega dos títulos de manumissão foi feita no meio dum silêncio grave e comovido. Os escravos estavam no quintal, junto da porta da cozinha, e entravam à medida que seus nomes iam sendo chamados. Sob o espelho da sala de visitas, os títulos empilhavam-se em cima do consolo de mármore. Toríbio Rezende lia a lista de nomes: 'Antônio Tavares! Marcolino Almeida! Terêncio Rodrigues!', e muitas vezes Licurgo tinha que soprar-lhe ao ouvido o apelido do negro chamado, pois muitos daqueles homens já haviam esquecido os nomes de batismo. 'Maneco Torto'!, gritava Toríbio, 'Dente de Porco! Inácio Moçambique!' Por entre alas de convidados os pretos entravam na sala, piscando os olhos à luz forte, e acanhados, de cabeça baixa, sem ousarem olhar para os lados, aproximavam-se de Licurgo, recebiam o título e beijavam-lhe a mão; alguns ajoelhavam-se depois diante da cadeira em que Bibiana estava sentada e levavam aos lábios a fímbria de sua saia. Retiravam-se, estonteados, buscando aflitamente a porta da cozinha. Muitos dos escravos choraram ao receber a carta de alforria. Houve, porém, um deles que entrou de cabeça erguida, olhou arrogante para os lados, como num desafio, recebeu o título e, sem o menor gesto ou palavra de agradecimento, fez meia-volta e tornou a voltar para o quintal, impassível como um rei que acaba de receber a homenagem a que tem direito. Licurgo acompanhou-o com um olhar furibundo. Era o João Batista! Merecia uns bons chicotaços na cara. Sempre fora assim altivo e provocador. Era um bom peão, um bom domador, um trabalhador incansável, mas tinha um jeito tão atrevido, que por mais de uma vez Licurgo estivera prestes a 'ir-lhe ao lombo'.

A chamada continuava. Negros entravam e saíam. Havia entre eles homens e mulheres, moços e velhos. Licurgo começava a irritar-se. A cerimônia não só se estava prolongando demais, como também não oferecia metade da emoção que ele esperava: era uma coisa tão lenta e aborrecida como uma eleição. 'Bento Assis', gritou Toríbio. E, como o preto chamado não aparecesse, ele repetiu em voz mais alta: 'Bento Assis!'. O peão que estava à porta da cozinha gritou para fora: 'Bento Assis!'. Nenhuma resposta veio. Licurgo, que sacudia a perna nervosamente, bradou de repente: 'Bento Burro! Onde está esse animal?. 'Bento Burro', repetiu o peão. Então uma voz soturna saiu do meio dos escravos que esperavam, no sereno: 'Pronto, patrão!'. E entrou na casa.

E o desfile continuou. Licurgo mal podia conter sua impaciência. Não conseguia convencer-se a si mesmo de que aquela era uma grande hora - uma hora histórica. Não achava nada agradável ver aqueles negros molambentos e sujos, de olhos remelentos e carapinha encardida a exibir toda a sua fealdade e sua miséria naquela casa iluminada. E como eram estúpidos em sua maioria! Levavam a vida inteira para atravessar a sala e depois ficavam com o papel na mão, atarantados, sem saber que fazer nem para onde ir. Era preciso que ele gritasse: 'Agora vá embora. Não! Por ali. Volte pro quintal.

O pior era que o Sobrado já começava a cheirar a senzala.

Foi com um suspiro de alívio que entregou o último título.

E quando o último escravo desapareceu na cozinha, houve um momento de silêncio e imobilidade, como se os convidados esperassem de Licurgo algumas palavras. Mas quem falou primeiro foi a velha Bibiana:

- Agora abram as janelas para sair o bodum!

Licurgo mandou erguer as vidraças. Estava meio decepcionado. Esperava durante meses por aquele instante e no entanto ele não lhe trouxera a menor emoção. De repente viu-se cercado por amigos que lhe apertavam a mão e o abraçavam efusivamente. Um deles gritou: 'Viva o Clube Republicano! Viva o nosso correligionário Licurgo Cambará!'. Os outros gritaram em coro: 'Viva!' E começaram a bater palmas estrepitosamente. Os gaiteiros que estavam no vestíbulo romperam a tocar uma marcha. Licurgo, então, sentiu com tamanha força a beleza daquele instante, que esteve quase a rebentar em lágrimas. Foi com esforço que se conteve. Entregou-se passivamente àqueles abraços, alguns dos quais chegavam a cortar-lhe a respiração. Não ouvia as palavras que lhe diziam. Só sabia que aquele momento era glorioso, raro, grande. Com um gesto de suas mãos tinha dado liberdade a mais de trinta escravos! Lá fora estava acesa uma grande fogueira ao redor da qual os negros - agora homens livres, felizes e dignos - iam dançar, cantar, comer e beber!.

Uma preta de turbante vermelho, os dentes arreganhados, andava por entre os convidados com uma bandeja cheia de copos de cerveja. Alguém deu a Licurgo um copo, que ele apanhou e levou avidamente aos lábios, bebendo-lhe todo o conteúdo dum sorvo só, Ficou depois lambendo distraidamente os bigodes, a olhar em torno, meio zonzo, sentindo um calor e um tremor de febre, as ideias confusas e sempre aquela vontade absurda de chorar. Bibiana aproximou-se dele e abraçou-o e - pela primeira vez em muitos anos - seus lábios úmidos pousaram na face do neto num beijo chocho.

- Deus te abençoe, meu filho - balbuciou ela.

Licurgo inclinou-se, encostou uma das faces na cabeça da avó e rompeu a chorar como uma criança. Bibiana arrastou-o para o vestíbulo e depois para o escritório, cuja porta fechou apressadamente. Não queria que os convidados vissem aquele acesso de nervos de seu rapaz.

- Que é isso, Curgo? Vamos, enxugue as lágrimas. Ora, já se viu?

Licurgo passava o lenço nos olhos e nas faces e fungava, furioso consigo mesmo por ter fraquejado, e já com uma vaga vontade de brigar. Mas brigar com quem e por quê?

- Vamos botar essa gente na mesa! - exclamou de repente. - Devem estar morrendo de fome.

Puxou bruscamente a avó pelo braço, e sempre fungando, com vontade de dizer nomes feios a seus convidados e ao mesmo tempo de abraçá-los, voltou para a sala, exclamando:

- Vamos comer, minha gente! Vamos pra mesa! esta casa é de vassuncês!". Páginas 354-356.

Deixo também a resenha do vol. 2:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/03/o-tempo-e-o-vento-parte-i-o-continente.html

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.