terça-feira, 13 de setembro de 2016

Uma história natural da curiosidade. Alberto Manguel.

Se tivéssemos que escolher uma frase que simbolizasse e sintetizasse  o livro Uma história natural da curiosidade, de Alberto Manguel, certamente a frase seria esta: "Desde que comecei a ler, sei que penso por meio de citações e que escrevo com aquilo que outros escreveram, e que não posso ter outra ambição senão a de reestruturar e reorganizar" (pág. 364). Alberto Manguel faz literatura com a própria literatura. É uma característica sua. Neste livro, em particular, ele faz uma devassa pelos livros que exploraram as grandes angústias e aflições humanas, tornadas vivas pelos grandes escritores e dá para os seus leitores um raro brinde. Sempre aprendi que a grande literatura é aquela que melhor expressa a condição humana.
A capa, com o quadro - Partida para a grande viagem.

O livro tem uma data. Mondion, 5 de maio de 2.014. A data de sua conclusão. Foi editado em inglês em 2015 e lançado no Brasil em agosto de 2016. O título original é Curisity, que foi traduzido, na edição brasileira, como Uma história natural da curiosidade. A capa é uma xilogravura de Salvador Dalí, Partida para uma grande viagem, que se encontra no Museu de arte de Dallas. A imagem de uma partida, com todos os significados e simbologias da palavra é o que o move.

Já que avocamos a imagem de partida, começamos com a de Dante: "No meio do caminho em nossa vida, eu me encontrei por uma selva escura". A Divina Comédia é o grande guia para toda a história natural da curiosidade. Já no primeiro capítulo o autor questiona o que teria levado Dante a escrever a sua obra e o que ele teria lido para poder escrevê-la. Dante não inicia sozinho a sua partida. Ele tem vários guias, sendo Virgílio o principal. Virgílio vivera uma aventura semelhante. Isso pressupõe que Dante conhecia toda a literatura clássica. E como conhecia! Manguel nos faz reviver um encontro com Homero e com as aventuras profundamente humanas de Ulisses, que não voltou à Ítaca por uma linha reta, para expor ao longo de seu trajeto, toda as condições do profundamente humano. Sempre ouvi, que a Odisseia é o primeiro grande livro em que está exposta a condição humana.

Manguel também nos remete aos filósofos gregos. Afinal de contas, não foi Sócrates que nos ensinou o parto das ideias e o instrumental deste parto não era a pergunta? Manguel promove belíssimos encontros também com os sofistas, com Platão e com Aristóteles, sempre com provocações muito instigantes e vivas. Evidentemente que também não falta a mitologia.
A Divina Comédia . A grande inspiração para a escrita deste livro.

O autor passa também pela Bíblia, onde busca os inícios da linguagem, passando também, com a mesma finalidade, por Hesíodo. As angústias, incertezas e aflições humanas também estão fortemente presentes, através das Confissões de Santo Agostinho. Também Tomás de Aquino comparece com a sua Suma  Teológica. Pensadores depois de Dante também estão presentes. Os principais são Shakespeare, Goethe e Kafka, com grande destaque para este último. Dos brasileiros, está presente Sebastião Salgado com a suas fotografias e da América Latina, Garcilaso de la Vega, com o qual procura decifrar os quipos e também José Hernandes e o seu Martin Fierro.

Os grandes temas são os que afligiram a humanidade ao longo de todos os tempos e que a fizeram lançar as grandes interrogações e a buscar respostas que, no entanto, nunca satisfazem plenamente. Afinal de contas, o que é a verdade, questão trabalhada no último capítulo. Origens e destinos, comunicação e convivência, justiças e injustiças, limites e finitudes, fraquezas e forças, morte e transcendência, partidas e chegadas são as grandes questões humanas trabalhadas. Mas como a maior inspiração é Dante, também os pecados capitais estão sempre presentes. Vamos, objetivamente, especificar melhor o teor do livro, apresentando os títulos dos 17 capítulos, todos com um ponto de interrogação.

1. O que é curiosidade? 2. O que queremos saber? 3. Como raciocinamos? 4. Como podemos ver o que pensamos? 5. Como nós perguntamos? 6 O que é linguagem? 7. Quem sou eu? 8. O que estamos fazendo aqui? 9. Qual é o nosso lugar? 10. Em que somos diferentes? 11. O que é um animal? 12. Quais são as consequências de nossas ações? 13 O que podemos possuir? 14. Como podemos pôr as coisas em ordem? 15. O que vem em seguida? 16. Por que as coisas acontecem? 17. O que é verdade? Estes capítulos são antecedidos por uma introdução.


Os capítulos que mais me impressionaram foram: o primeiro, em que procura responder o porquê de  Dante ter escrito a sua obra e o que ele leu para poder escrevê-la; o terceiro, em que existe uma bela discussão sobre Sócrates e a visão dos sofistas, se ocupando bastante destes; o oitavo, em que mostra as preocupações com a ecologia e as maldições de Dante para aqueles que não preservaram a natureza, fazendo-os caminhar eternamente sobre areias quentes; o nono em que existe toda uma escalada para o humano; o décimo em que faz uma bela abordagem sobre o feminismo; o treze, em que trata de um tema muito atual, a avareza e o dezesseis, em que introduz Primo Levi em Auschwitz, quando o soldado alemão lhe diz hier ist kein warum. Aqui não se pergunta Porquê. Possivelmente eu tenha cometido pecados por omissão, nestas preferências. Escolhas são sempre complicadas.

O livro também vem acompanhado de belas gravuras, retiradas de museus e da Biblioteca Beinecke de Livros e Manuscritos Raros da Universidade de Yale. São verdadeiras preciosidades. Como viram, o livro é um verdadeiro brinde para o leitor, mas para um leitor exigente, muito exigente. Por ele você também pode fazer um testagem sobre as suas próprias leituras. Você ficará sabendo se elas foram realmente significativas ou se você precisa começar a ler agora.

Na contracapa do livro lemos, à guisa de apresentação: "A curiosidade tem sido vista ao longo dos séculos como o impulso que leva adiante o conhecimento. Ao mesmo tempo, muitas tradições a julgam como a tentação que leva a territórios perigosos e desconhecidos". Me permitam ainda duas belas frases: "Se um homem começar com certezas, ele acabará com dúvidas; mas se ele se contentar em começar com dúvidas, acabará com certezas." Francis Bacon. Página 123 e "Homens temem que mulheres riam deles. Mulheres temem que homens as matem". Margareth Atwood. Página 247.

Li este livro em função da parceria do blog com a Companhia das Letras. Por isso dou as referências do livro. MANGUEL, Alberto. Uma história natural da curiosidade. Companhia das Letras. São Paulo: 2016. 486 páginas. Preço sugerido: R$ 74,90. Ideal para presentear, mas com cuidado. É um livro com rara erudição.



2 comentários:

  1. Obrigado por seus excelentes comentários sobre o livro, dando-me a oportunidade de decidir sobre compra-lo. Nada como uma análise que nos instigue a curiosidade e vontade de aprender. Drª Regina Osório

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  2. Dra. Regina, muito obrigado pelo seu comentário. O livro é maravilhoso e o Alberto Manguel é um grande escritor. A curiosidade é, para mim, o impulso que leva para o conhecimento.

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