segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Triste fim de Policarpo Quaresma. Lima Barreto.

"O 'triste' fim do major Quaresma, coroando uma triste vida, constitui o entrecho de uma novela à qual a imprensa do país não fez ainda  a devida justiça, porventura pela simples razão de ser a imprensa quem menos lê. Já lhe basta, dirá ela, ter que fornecer o que ler". Esta frase ácida foi escrita por Oliveira Lima, em 1916, em O Estado de S.Paulo. A frase dura contra os jornalistas e à crítica literária se refere ao livro de Lima Barreto Triste fim de Policarpo Quaresma. O livro fora lançado em 1915, às expensas do próprio escritor. O autor dava indícios de que alimentava grandes expectativas com relação ao livro, o que, pela crítica vista, parece que não ocorrera.
Edição da Penguin&Companhia das Letras. Introdução de Lília Schwarcz e prefácio de Oliveira Lima.

O livro é memorável e grandioso, a começar pelo seu título, que contém um nome e uma constatação.
Policarpo Quaresma e Triste fim. O triste fim será relatado no último capítulo, um capítulo de uma ternura e sensibilidade sem par. Ricardo Coração dos Outros, chega a triste constatação: "O mundo lhe parecia vazio de afeto e de amor", depois de procurar ajuda para salvar o seu amigo, o major Quaresma. Quanto ao nome, Lília Schwarcz nos diz, na introdução ao livro, que "Policarpo, segundo o dicionário, significa aquele 'que tem e produz muitos frutos'. Por outro lado, o verbo 'carpo' (de carpir, chorar, lamentar) parece introduzir [...] uma dupla referência ao título da obra. 'o triste fim'". Schwarcz também nos fala do sobrenome escolhido.
Bela introdução ao livro, feita por Lilia Schwarcz.

Neste caso, Quaresma é a referência aos quarenta dias que antecedem à Páscoa, dias de roxo, de jejum e de abstinência. Não por acaso, que Olga, a afilhada de Policarpo, em seu desespero na busca de ajuda para salvar o padrinho, brada a Deus: "Ele tinha que ir para o posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição". No outro sentido, nos aponta Schwarcz "Quaresma é também um tipo de coqueiro, essa árvore presente na representação do Brasil desde as primeiras imagens e mapas seiscentistas". Como se vê, tudo com muito cuidado.

Com relação ao triste fim, vejamos a voz do narrador, no capítulo final. "Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; [...] não brincara, não pandegara, não amara". E um pouco mais adiante: "Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira".
Capa em verde amarelo traduzindo o nacionalismo da obra.

O que fora então a vida deste homem de um triste fim. A história é narrada em três partes. Na primeira encontramos o major Policarpo Quaresma, um subsecretário do Arsenal de Guerra, dedicado e metódico e que morava em São Januário. Tinha uma vasta biblioteca e esta tinha uma característica bem peculiar. Só tinha livros de escritores nacionais. Vale até a pena olhar sob este aspecto da nossa historiografia. Os vizinhos se perguntavam meio incomodados, com o fato de ele ter tantos livros, se nem formado era. Os vizinhos também observavam um rapaz que vinha à sua casa com um violão, um instrumento popular. Era o Ricardo Coração dos Outros.

O major Quaresma, como era popularmente chamado, era um patriota e só gostava das coisas nacionais. Assim pesquisava o nosso folclore para contrapô-lo aos costumes importados da Europa e chegou ao cúmulo de enviar uma petição para a Câmara, para que fosse feita uma emenda à Constituição, que declarasse a língua Tupi Guarani como a língua nacional, em substituição à língua portuguesa. Depois deste hilário fato, o major Quaresma é internado e um antigo vizinho seu, imigrante italiano e compadre, que tendo alcançado a prosperidade, já morava em Botafogo, mas que lhe dedica grande afeição e que vai cuidar de sua aposentadoria. O compadrio se dá em virtude de Olga, filha do próspero Vicente Coleoni, ser afilhada do major, numa relação inversa dos apadrinhamentos no geral. A afilhada mantém com o padrinho uma relação muito afetuosa.
Capa com enfoque na cidade do Rio de Janeiro, no início do século. Houve uma grande reforma urbana que empurrou a população pobre para os subúrbios.

Na segunda parte do livro, o major Quaresma já curado da loucura, mora num sítio onde se dedica à agricultura. Aí o seu patriotismo continua mas ocorre a troca de livros. Estuda os nossos produtos agrícolas e as técnicas de seu cultivo, sem a necessidade de adubo, em virtude da natural fertilidade de nossos solos. As formigas são um caso à parte. Com muita dedicação coloca a sua produção no mercado, em negócios que não rendem quase nada. Por sua neutralidade na política local, recebe incômodos por parte das autoridades locais. Neste período elabora um memorial, que pessoalmente entregará ao presidente da República, oferecendo as contribuições de seus estudos para a redenção da agricultura brasileira.
Oliveira Lima apresenta o prefácio da edição da Penguin&Companhia das Letras.


Neste período é movido por novos ideais. A República recém formada tem dificuldades de manter a ordem. O marechal Floriano Peixoto assume o poder e sofre a Revolta da Armada, que ameaça a serenidade da República. Se alista no batalhão de voluntários e participa ativamente dos tiroteios contra os marinheiros rebelados. Ele e também o seu amigo Ricardo Coração dos Outros. A difícil vitória vem. Mas aí vem também o contratempo final a que alude o título da obra. O triste fim.

Depois da vitória o Marechal Floriano instituiu o arbítrio, a ditadura. Ele vê e denuncia injustiças, em carta mandada ao presidente. É preso e, como ocorre em situações sob o arbítrio, não sabe do seu destino. O amigo Ricardo Coração dos Outros se mobiliza em sua defesa. Procura todos os amigos influentes e de todos recebe a resposta de que não se metem nesses assuntos. Finalmente lembra de procurar a doce afilhada do major. Esta, mesmo sob censura do marido, sai em defesa do padrinho, procurando o marechal presidente. É nessa hora que ela clama que o mundo lhe parecia vazio de afeto e amor. Como dá para perceber o livro se constitui numa pesada crítica ao marechal Floriano Peixoto e as críticas também são estendidas ao positivismo, a doutrina que ele e tantos outros homens do poder professavam. Também merece atenção especial a visão que Lima Barreto apresenta sobre o casamento, com atenção especial para a inteligente Olga e para  a infeliz Ismênia, que morre, vestida de noiva, à espera do ou de um noivo.
O escritor Lima Barreto, sempre autobiográfico.

Quando li Recordações do Escrivão Isaías Caminha deparei com uma elogiosa comparação de Lima Barreto com Émile Zola e o seu Germinal. As Recordações do Isaías Caminha seria o Germinal brasileiro. Agora, lendo O triste fim de Policarpo Quaresma vi uma comparação mais elogiosa ainda, comparando Lima Barreto com Miguel de Cervantes. Assim O Triste fim de Policarpo Quaresma seria o D. Quixote brasileiro. Olha o nível. Um escritor realmente maravilhoso. Tentou a Academia Brasileira de Letras, por três vezes. Numa, desistiu e nas outras duas, não foi acolhido, certamente por falta de mérito.Ah! Essa meritocracia!



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