Na releitura das obras de Saramago, chegou a vez de A caverna, o seu livro do ano de 2000. Depois dessa releitura, não tenho dúvidas em afirmar que este é o melhor de seus livros, excetuando os dos temas religiosos. Ao menos é essa a minha escolha. É, e não podia deixar de ser - pelo título que ostenta, um livro de filosofia, mas também de psicologia, de sociologia, de compreensão dos valores humanos e de humanidade. Um livro de profunda sensibilidade, mas também de angustiantes preocupações com o futuro da humanidade. O novo século que está por se iniciar, certamente não trará perspectivas animadoras. O livro é também uma bela história de amor. Uma nova vida está a começar, quando tudo apontava para o seu fim. E o amor recria um milhão de motivos para a continuidade do viver, e viver com alegria e felicidade. Foi o que eu vi de essencial neste livro.
A caverna. José Saramago. Companhia das Letras. 2000.
O livro tem também uma peculiaridade única e insuperável. Não creio que haja paralelo que permita comparações, na relação que o ser humano estabelece com o mundo animal, com o cachorro em particular. O Achado. O cão assim foi chamado por ter aparecido na vida de Cipriano Algor, de sua filha Marta e do genro Marçal Gacho, o núcleo familiar do romance. Foram eles que acharam o cão a quem tanto se afeiçoaram. Achado se transformou em um dos motivos a mais para que o viver efetivamente continuasse a valer a pena. Mas há também Isaura Estudiosa, ou Isaura Madruga, como Cipriano Algor a preferiu chamar.
A construção do romance é belíssima e, não hesito em afirmar, que Saramago, ao escrevê-lo, o fez com grande e ímpar entusiasmo. Por óbvio, o tema Caverna nos remete a Platão. Além de óbvio, isso também está explícito na epígrafe, também repetida na contracapa: "Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros. São iguais a nós". Platão. República. Livro VII. É nesse livro que Platão relata a famosa Alegoria da caverna, na qual as sombras do real, projetadas ao fundo da caverna são vistas como a realidade e que, portanto, para se conhecer a realidade é preciso sair da caverna. Sair do mundo de sombras, de aparências. Em A caverna de Saramago também há uma caverna. Ela está localizada num Centro, um local em que estão localizadas todas as atividades de uma cidade moderna. Será desse "Centro" que, primeiramente fugirá Cipriano Algor e logo a seguir Marçal e Marta.
Mas vamos aos personagens. Cipriano Algor tem, nas imediações da cidade, uma olaria. A partir do barro produzem, de forma artesanal, louças e outros utensílios domésticos. A olaria está passando para a terceira geração. Nela trabalham Cipriano e a sua filha Marta. Esta é casada com Marçal Gacho que trabalha como guarda provisório no famoso Centro. Ele está à espera de ser promovido a guarda residente. Cipriano é viúvo, já há quatro anos. Cipriano é um dos fornecedores do Centro, com contrato de exclusividade. Só pode vender as suas mercadorias para o Centro e, não mais poderá atender aos seus antigos clientes. Um dia, na rotina de descarregar suas mercadorias, só lhe querem a metade, para logo a seguir lhe desencomendarem todo o fornecimento. E mais, lhe dão um curto prazo para retirar as suas mercadorias, encalhadas nas prateleiras. Outras peças deveriam ocupar o seu lugar. Agora são de plástico e outras matérias primas mais práticas. Metamorfoses no mundo do trabalho. O que Cipriano e Marta irão fazer, não é um problema do Centro.
Marta troca ideias com Cipriano. E... se produzíssemos, em vez de louças, bonecos. Cipriano irá ter com o chefe de compras. A ideia não lhe desagradou. Fez uma encomenda inicial de 300 exemplares. Cipriano e Marta não cabem em si de felicidade. Mas não foi fácil, foi necessária uma reinvenção. O trabalho seria muito diferente. A essa altura do romance, Saramago nos dá uma aula sobre a principal categoria da filosofia, que é o trabalho. A mente a as mãos, a habilidade dos dedos, os conhecimentos técnicos, a modelagem, o cozimento do barro, o manuseio das tintas, tudo isso precisa ser trabalhado (Isso será tema de um post especial). O chefe de compras alertara a Cipriano, que faria uma grande pesquisa entre os consumidores para ver sobre a aceitação, ou não, de seus novos produtos, frutos de tão árduo trabalho, trabalho criativo. Dias de aflição e muita angústia.
Estes só não foram maiores, porque a tão aguardada promoção de Marçal a guarda residente finalmente saíra. Se nada desse certo, Cipriano iria morar como a filha e o genro no tal do Centro. Mas, havia um problema. O pai e a mãe de Marçal queriam o mesmo e, por isso o atormentavam insistentemente, enquanto Cipriano, ao contrário, resistia à ideia. Em meio a esses acontecimentos, Cipriano encontrou-se com Isaura Estudiosa, ou a Isaura Madruga. Ela era viúva. Cipriano lhe promete e lhe leva um cântaro. Mas, isso não era tudo. Marta, para profundo incômodo do pai, constantemente trazia o tema à baila. Também é desse tempo o aparecimento do cão, o Achado. Repito, - são das mais belas reflexões que se possa encontrar na literatura - das relações de profunda amizade e compreensão entre o ser humano e o animal, no caso, o cão. Quanta sensibilidade! Quanto entendimento de sentimentos mútuos! Seria o Achado um dos motivos pelos quais Cipriano não queria ir morar no Centro? Lá os animais não eram tolerados.
Já quase ao final do livro, os três irão morar ao Centro. Cipriano faz as suas investigações. Marçal ganhara uma missão especial. Trabalharia em turnos especiais e seria dispensado da farda. - Sem farda, não há guarda, há, isso sim, espionagem - observa o perspicaz sogro. A guarda especial era no local chamado de caverna. O seu turno era de madrugada. Cipriano, após alguns dias, irá visitá-lo, invocado com o que lá se passava. O que viu foi o suficiente para abandonar imediatamente o Centro, mesmo sem saber que destino tomar. Alguns dias depois, o casal, que estava à espera do primeiro filho, segue o seu caminho. Enquanto houver vida, haverá futuro e haverá esperança. Já é muito saber o que não se quer!
Cenas lindas ocorrem ao final. Cipriano na sua volta, passa pela casa de Isaura, a quem havia confiado o Achado. Lá não está ela, nem ele. Então toca-se para a sua casa. La encontra os dois. Achado fugira, já no primeiro dia. Voltara para a casa de Cipriano, esperando pela sua volta. Cenas de comovente sensibilidade e felicidade descrevem esse encontro, não mais dado a separações. Dias depois, já junto com a filha e o genro, deliberam que esse mundo não lhes serve e vão em busca - não sabem exatamente do que, - mas sabendo muito bem em que mundo não mais querem viver. Enquanto isso, Saramago anuncia a mais nova atração do centro, na frase que encerra o seu romance: BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRAÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA.
Para não ficar apenas nas impressões da minha leitura deixo o relato de Benedito Nunes que encontramos nas orelhas do livro:
"O que singulariza a ficção de José Saramago é o ajustamento da narrativa romanesca a uma parábola. Neste novo romance a parábola já começa nos desiguais papéis dos personagens, o oleiro e o guarda, estampados nos seus próprios nomes. Algor o do primeiro, significando o frio prenunciador da agitação febril, e Gacho o do segundo, significando o lugar do pescoço que suporta a canga. A agitação do oleiro vem de seu desconforto moral: quando a louça que fabrica é rejeitada pelas instâncias decisórias superiores de um mega Centro econômico que atua como a "mão da Providência", Algor oferece-lhe bonecos de barro, representando diferentes tipos de gente que as mesmas instâncias lhe encomendam em grandes quantidades. A anulação do trabalho manual ou artesanal pela tecnologia tal poderia ser o resumo desse aspecto destrutivo do capitalismo em seu acme, convertido pelo romance numa parábola social, a que o romancista contrapõe, em sutil paródia, o mito dos que creem nas sombras. Mas quando o oleiro, o guarda e sua mulher ganham o mundo luminoso e real da estrada na companhia do amável cão Achado, em sua humana animalidade à altura da cachorra Baleia de Graciliano Ramos, do cavalo Colomer de Tolstoi e do cãozinho Karenin de Milan Kundera, a parábola social é contestada pelo mito, muito embora venha a ser este, como verá o leitor, neutralizado e reapresentado, em seu puro valor cênico, pela sociedade de espetáculos (ou de massa), que se funda no poder da tecnologia".
Para os leitores deixo também a alegoria da caverna, a de Platão, que serviu de mote para Saramago.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2014/04/a-alegoria-da-caverna-republica-de.html
E ainda, a resenha de Ensaio sobre a cegueira, o livro anteriormente resenhado.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2024/09/ensaio-sobre-cegueira-jose-saramago.html
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