quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Boca do Inferno. Ana Miranda.

Há muito eu queria saber algo a mais sobre Gregório de Matos Guerra, algo a mais do que o Boca do Inferno, simplesmente. Como já havia ouvido falar muito do livro de Ana Miranda, foi pelo seu livro que procurei o algo mais. Uma agradável surpresa. O livro Boca do Inferno é muito mais do que uma biografia. Vai para uma descrição de época, do que era a cidade da Bahia (Salvador), a capital da colônia, ao final do século XVII, especialmente a década de 1680. O livro de Ana Miranda, publicado no ano de 1989, é fruto de uma rigorosa pesquisa histórica, como dá para ver nas fontes pesquisadas, ao final do livro.
O primoroso livro de Ana Miranda. Muito mais do que uma biografia.

Além dos dados biográficos de Gregório de Matos Guerra (1636 - 1696) também encontramos dados sobre o padre Antônio Vieira (1608 -1697), o famoso e poderoso jesuíta, orador sacro, crítico dos costumes e defensor das causas indígenas e dos judeus. Os fatos narrados se passam na Bahia, onde encontraremos os dois, e os dois de um mesmo lado, ao lado da família dos Ravasco, em briga com o governador geral, Antônio de Souza Menezes e o alcaide Francisco de Teles de Menezes. O livro biográfico também é um belo romance que torna o leitor cativo até os desenlaces finais.

O livro se divide em seis partes, a saber: 1. A cidade, num único capítulo; 2. O crime, descrito ao longo de dez sub capítulos; 3. A vingança, esta descrita ao longo de onze sub capítulos; 4.  A devassa, apresentada em cinco sub capítulos; 5. A queda, que é rápida e mostrada em dois sub capítulos e 6. Epílogo - Destino, num único bloco mostrando o destino final dos principais personagens envolvidos no conflito, pelos dois lados.

"A cidade" cenário dos fatos é a cidade da Bahia, capital geral da colônia. O capítulo descreve os costumes e, especialmente, as contradições da cidade, entre o fausto da riqueza e a miséria generalizada da população. Também sobra para os desmandos do poder e os antagonismos tão próprios à disputa de poder, mesmo em tempos de poder real absolutista. O Boca do Inferno aparece na história como o "escravo das prostitutas". Farto material para sátiras!

"O crime" é o assassinato de Francisco de Teles de Menezes, o alcaide da cidade, aliado do governador, Antônio de Souza Menezes, supostamente cometido pelos Ravasco. É a briga entre as famílias Menezes e Ravasco, nos anos de 1680. O chefe dos Ravasco é Bernardo, irmão do padre Antônio Vieira. Gregório entra na história pela sua aliança com os Ravasco e por um de seus amores, Maria Berco, criada da família Ravasco e que foi envolvida no assassinato, encarregada de dar fim a mão decepada do alcaide. Entra um valioso anel na parte romanceada do livro. Neste tempo encontramos Gregório, já formado em direito, em Coimbra, exercendo função de desembargador da Relação Eclesiástica, um cargo de grande prestígio. Também aparece Anica de Melo, a apaixonada amante do poeta.

Em "A Vingança", é mostrada a reação do governador, na perseguição tenaz à família dos Ravasco. É um momento grandioso do livro. O poder é exposto em suas vísceras. Ele não conhece limites. Como tem crime envolvido, também aparecem os métodos do poder judiciário. Um horror. Vejamos uma descrição:

"Mata, quanto estão ganhando os desembargadores?
Perto de seiscentos mil réis de ordenado, senhor governador. Fora as propinas. Os emolumentos chegam a mais de cem mil réis mas eles solicitam gratificações para a festa das onze mil virgens e outras festas. Sem contar as taxas que cobram por serviços especiais e o que ganham em comissões ou visitas, pode ser que chegue a mil e duzentos. Eles pedem para receber o mesmo que recebem no Desembargo do Paço em Lisboa os desembargadores. Mas o príncipe nega.
Vamos dar mais uma propina, para a festa de Santo Antônio. Providencie uma carta ao Príncipe regente solicitando o aumento de ordenado dos desembargadores. E cópia da carta para cada um deles".

Tudo muito parecido com os dias atuais vividos pelo Brasil pós golpe de 2016. Gregório começa a ter problemas com o governo, o que faz aumentar a ferocidade de suas ironias e sátiras. Perde a sua função e fica sem remuneração. Isso aumenta a sua busca por sexo, bebida, bem como a ferocidade de sua escrita. Gregório viera de uma família abastada mas ele, em muito, já contribuíra para dissipar esta riqueza. 

Em "A Devassa" é mostrada a reação do poder real com relação aos desmandos do governador. É a influência do padre Antônio Vieira. A vingança contra os Ravasco termina e as coisas começam a se ajeitar, menos para o poeta. Ele não conhecerá os amores de Maria Berco, a quem muito ajudara, recebe apenas a sua gratidão. Perde também a companhia de Anica. As ironias e sátiras se tornam cada dia mais ferozes, contra todos os poderes estabelecidos, sobrando para padres e freiras, na dissolução de seus costumes. Conhecerá o exílio e, quando repatriado, o será para a cidade de Recife.

Em "A Queda" é mostrado o desfecho de todas as desavenças, com a queda da família dos Menezes e a ascensão de novos mandatários e no "epílogo" todos os personagens tem os seus destinos narrados. Vamos ver os dois mais famosos. O "Boca do Inferno" e o padre Antônio Vieira. Quanto ao "Boca do Inferno" lemos o seguinte: "Em Recife, o poeta foi proibido de escrever suas sátiras. Trabalhou como advogado num escritório repleto de bananas. Andava nu, assustando as pessoas. Sem recursos, doente, viveu até 1695 escrevendo sonetos e, é claro, sátiras. Jamais se afastou de suas crenças, de sua intimidade com as mulheres e com Deus. Acometido de uma "febre maligna e ardente, que aos três dias ou aos sete debaixo da terra mete o mais robusto", Gregório de Matos morreu, com cinquenta e nove anos, em Recife. Foi enterrado na capela do hospício de Nossa Senhora da Penha. A capela foi demolida, não restando nenhum vestígio de Gregório de Matos e Guerra".

Quanto ao destino final do padre Vieira, que ficara totalmente cego e parcialmente surdo, lemos o seguinte: "Pouco depois da partida do soldado, Antônio Vieira morreu. Assistiram sua morte José Soares e o reitor do colégio da Bahia, João Antônio Andreoni, o jesuíta toscano com quem travara muitas disputas ideológicas. Padre Andreoni era condescendente quanto à escravidão dos ameríndios, traduzira para o italiano um trabalho antissemita intitulado Sinagoga desenganada, e inclinava-se  a favor das nomeações de italianos e alemães para os altos cargos da Companhia. Vieira fora, acima de tudo, um português que favorecia seus conterrâneos".

Sempre as contradições. Um grande e belo livro. Gostei muito e sobrou muita vontade de conhecer muito mais.




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