quarta-feira, 24 de abril de 2013

"Há de nascer, de crescer e de se misturar". Viva o Povo Brasileiro.

"No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta e vária, se estende e ramifica no Tabuão, nas portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa dos Sapateiros, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas e no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original". Assim começa o grande romance de Jorge Amado, o seu preferido. O livro é defesa de tese, o valor e a originalidade da miscigenação.
O povo e a cultura brasileira são frutos da mistura. Da mistura!

Esta defesa de tese, encontra na descrição da menina Rosa, um de seus mais lindos argumentos. Trata-se do encontro do já velho Pedro Archanjo com Rosa Alcântara Lavigne. Vejamos o argumento: "Os olhos gastos fitam a morena que o ampara. Beleza sua conhecida, íntima, familiar. Ah!, só pode ser a neta de Rosa! A doçura, o dengue, a ânsia, a sedução, a extrema formosura, ele a reconhece inteira:
- Você é a neta de Rosa? A filha de Miminha? - a voz infinitamente cansada porém alegre.
Como sabe? 
Tão igual e tão diferente, quantos sangues se misturaram para fazê-la assim perfeita? Os longos cabelos sedosos, a pele fina, os olhos azuis e o denso mistério do corpo esguio e abundante.
- Fui amigo de sua avó. Assisti ao casamento de sua mãe. Como é seu nome?
- Sou Rosa, como ela. Rosa Alcântara Lavigne.
- Estuda medicina?
- Estou no terceiro ano.
- Pensei que nunca fosse ver mulher tão bonita quanto sua avó. Rosa Alcântara Lavigne... - olhou a moça nos olhos azuis francos e curiosos, herança dos Lavigne. Ou dos Alcântara? Olhos azuis, pele morena:
- Rosa de Oxalá Alcântara Lavigne.
- De Oxalá? De quem o nome?
- De sua avó.
Rosa de Oxalá... Uma beleza, acho que vou adotar...".

O livro Tenda dos milagres é todo ele defesa da miscigenação. Os embates se dão entre alguns professores puristas, das teorias da eugenia, da Faculdade de Medicina da Bahia ( a primeira do Brasil) e o bedel da mesma faculdade e ojoubá do candomblé, Pedro Archanjo. Os doutores são puristas, enquanto Pedro Archanjo é sincretista, defensor da síntese das misturas de pele e de culturas. O cenário dos embates remontam aos anos de 1930. Vamos colocar um pouco de história no meio. O livro tem um precioso posfácio. Coisa de um bom doutor em história. João José Reis é o seu nome. Ele identifica alguns personagens de Jorge Amado, tornando-os reais. Assim, os argumentos do Dr. Nilo Argolo são buscados em Nina Rodrigues, para quem mestiços fatalmente eram degenerados. Pedro Archanjo, por sua vez, é construído em cima de vários personagens, especialmente , em Manoel Querino, líder popular e autor de livros sobre a influência  negra nos costumes e alimentos da Bahia. Estes são também os escritos de Pedro Archanjo.
Na universidade Popular do Pelourinho, a Fundação Jorge Amado.

Também é personagem do livro o abade D. Timóteo Amoroso Anastácio, do Mosteiro de S. Bento, que fora invadido naqueles anos "de cotidiano melancólico e intranquilo". É uma referência à ditadura militar. O professor João José Reis, identifica no engenheiro Tadeu o brilhante estudante, que fazia provas de engenharia com versos de poesia. Coisa que é sabida de Marighella. Mas voltando ao abade D. Timóteo, este coloca nas mãos de Pedro Archanjo a obra de Franz Boas, que foi professor de Gilberto Freyre nos anos 1920 na Universidade de Colúmbia. E é este fato que eu quero destacar. Gilberto Freyre, o grande autor de Casa Grande e Senzala. O pernambucano, além de ter exercido influências sobre Jorge Amado, eles foram muito amigos, além de deputados constituintes, em bancadas diferentes, obviamente. Gilberto Freyre era um pensador profundamente conservador. Em Navegação de Cabotagem, Jorge conta como conseguiu aprovar na Constituição de 1946 a emenda da Liberdade religiosa, que ainda figura tal e qual, na atual Constituição de 1988. Como religião não faz parte das coisas de comunistas, jamais a sua bancada concordaria com a apresentação desta emenda. Jorge buscou apoio entre os conservadores e Gilberto Freyre teria comentado: "Como eu não tive esta ideia antes". É que Jorge era do meio. Ele sabia das perseguições policiais e da difamação da imprensa sobre o candomblé. E agiu inteligentemente e não obtusamente.

Mais uma palavrinha sobre Casa Grande e Senzala. Apesar das muitas teorias racistas da época, Freyre sustenta que não existem impedimentos de povos miscigenados se desenvolverem, teoria comum na época, fruto das teorias da eugenia. De uma maneira geral, na visão das elites, o Brasil era um país condenado ao subdesenvolvimento por causa da miscigenação de povos e de culturas, aqui havido. O Brasil assim não tinha futuro, pois o seu povo era um povo de condenados. Assim o Brasil seria um eterno país coadjuvante no desenvolvimento mundial. As elites se beneficiavam disto tirando proveito da situação e governavam atendendo os ditames de fora. Os nossos governantes se faziam cônsules dos interesses das potências mundiais. Se aliavam a estes potências e que se danasse o nosso povo. Os governos eram claramente contra os interesses do povo.
O livro que derrubou dois mitos: o geográfico e o racial. Por este livro não mais nos considerávamos inferiores. Livro fundamental para entender o Brasil.

A reversão desta mentalidade, que ainda é muito forte, não nos iludamos, muito se deve aos trabalhos de Gilberto Freyre. Jorge Amado, Darcy Ribeiro, e já antes, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Celso Furtado empenharam o engenho de suas inteligências para remover preconceitos e afirmar bem alto o valor do povo brasileiro, mas que para afirmá-lo precisa transformar os seus governos e a ação de seu Estado em ações de construção de uma Nação. Jamais teorias de mercado, marcadas pela competição darão conta da construção da Nação Brasileira. Gilberto Freyre sofreu muitas críticas, muitas delas merecidas, mas é de uma grandeza incomparável. 

Como são apaixonantes os temas relativos a construção do Brasil como uma Nação e ver que este processo está apenas no seu começo e é por isso que a participação política se constitui num dever ético, ainda mais, que esta nervura ética está se quebrando no cotidiano da política brasileira. Ontem fui na audiência pública, que marcou o início dos debates preparatórios da CONAE (eu falo disso em outro post) aqui no Paraná, numa iniciativa do deputado prof. Lemos. A CONAE tem um eixo de debate em cima desta questão, o eixo dois, que diz: Educação e diversidade: Justiça social e direitos humanos.  Jorge Amado é - apenas-  um dos pioneiros nestes debates.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.