segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lavoura Arcaica. Raduan Nassar.

"Torna-te quem tu és" (Nietzsche). "Segundo minhas experiências, na escola como em casa faziam de tudo para apagar nossa peculiaridade" (Fellini).

"- Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci para viver aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não aguento mais a vida parada desta fazenda imunda". Lula, o irmão mais novo de André em Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.
Na literatura brasileira, um de seus maiores monumentos. Lavoura Arcaica. Raduan Nassar.

André é o protagonista do romance Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, um dos livros mais plenos de ternura da literatura brasileira, mas a ternura e o afeto também podem transformar uma casa, em casa de perdição, como ele afirma. O tema do livro é o processo de socialização. O livro me fez lembrar o grande escritor Philip Roth, especialmente, dois de seus livros, O complexo de Portnoy e Indignação. Estes livros são um acerto de contas do autor com a sua socialização, dentro da rígida cultura judaica. São iconoclastia pura. Raduan Nassar também faz um acerto de contas de sua socialização, não com a cultura judaica, mas com a cultura libanesa cristã. Qual delas seria mais rígida? qual delas oprimiria mais? Qual delas procuraria mais fendas?
Raduan Nassar, ao final dos anos 1980 abandona a literatura. Uma pena. Devia ter seus motivos!


O livro, dividido em duas partes, a partida e o retorno, inicia com André recebendo a visita de Pedro, o irmão mais velho e uma espécie de olhos do pai, em missão a ele confiada: trazer André de volta para casa e reconstituir a unidade da família, na velha fazenda. O encontro permite uma volta no tempo para reconstituir a infância e os motivos da partida. A narrativa se aproxima mais de um monólogo de André, metabolizando a sua amargura, do que um diálogo com o irmão. André tem verdadeiras explosões de paixão em suas reminiscências de uma adolescência contida. Os sermões do pai contrastavam com o afago e a ternura da mãe. A sexualidade irrompe numa paixão incestuosa com a Ana, a irmã. O trabalho se transforma na monotonia e repetição do cotidiano. Pedro apenas reproduz a voz do pai, no seu desejo de volta. A volta para o arcaico, para um mundo de valores arcaicos, contidos numa fazenda.
Tradição X Liberdade. Os conflitos de André, o principal personagem da obra. No cinema foi interpretado por Selton Mello.

Pedro obtém êxito em sua empreitada. André consente em voltar. O filho pródigo à casa torna. A unidade em torno da família estará reconstituída. A autoridade do pai está refeita, os seus sermões poderão ter continuidade.  Os verdadeiros valores, os da paciência, da hierarquia e da unidade familiar estão preservados. Haverá festa, a festa de André. Mas, mal e mal está ele de volta, quando então, tudo começa a implodir. Os primeiros a se manifestar serão Lula, o irmão mais novo e Ana, a que não saía da capela.

Lula vê no irmão um fraco e promete não repetir suas fragilidades. Abandonará o lar ao meio dia, no dia da festa de André. Ana explode num ritual de sensualidade, num violento ímpeto de vida, contida pelas horas de aflição e de rezas na capela, "era a comunhão confusa de alegria, anseios e tormentos, ela sabia surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua dança, embeber a sua carne, castigar a minha língua no mel litúrgico daquele favo..." Mas o pai recompõe a ordem, interceptando tudo:
Lavoura Arcaica, numa edição da José Olympio. O livro ganhou outra dimensão após a republicação pela Companhia das Letras.


"o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava - ...".

Os sermões e as "verdades" neles contidas é que eram insuportáveis ante os anseios de liberdade de um tempo novo. Essa contradição está presente até as últimas palavras inscritas no livro, com as quais homenageia o pai: "e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço". Ah, o tempo!
Dionísio encarna no corpo de Ana. Implosão da autoridade paterna e explosão de sensualidade, sexualidade e vida. Cena do filme.


Torna-te que tu és. Se isso for possível, ante o peso insuportável da manutenção das tradições, da lei e da ordem, mesmo causando ela, a mais absoluta desordem, do mais desordenado dos mundo. Diques represam torrentes de águas em busca de vazão.

Vejam ainda, Alceu Amoroso Lima, na contra capa do livro, comentando a obra: "Drama tenebroso, em estilo incisivo, nunca palavroso ou decorativo, da eterna luta entre a liberdade e a tradição, sob a égide do tempo. Livro impressionante, magistral". Ah, o tempo! Se Philip Roth é um iconoclasta de seu processo de socialização, Raduan Nassar escreve prosa feita poesia, entremeada de uma ternura muito triste e reflexiva sobre o mesmo tema.


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