terça-feira, 9 de junho de 2020

A bibliotecária de Auschwitz. Antonio G. Iturbe.

Um dia, ao postar no Facebook, uma chamada para a resenha no blog do notável livro de Éric Vuillard, A ordem do dia, sobre a adesão dos grandes líderes da indústria alemã ao nazismo, recebi, nos comentários, a indicação para esse livro sob a forma de pergunta: Você conhece A bibliotecária de Auschwitz? A pergunta/comentário tinha a autoria de Marina Machado, ex aluna do curso de Direito e amiga no face. Como sempre considero muito as indicações de leitura e como não conhecia o livro, fui à compra e à leitura.
Deixo a resenha do livro de Vuillard: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/05/a-ordem-do-dia-eric-vuillard.html
A bibliotecária de Auschwitz é uma dádiva para a humanidade.

Uma surpresa e uma estranheza. Como eu não conhecia este livro! Tenho algumas hipóteses. Fiquei também surpreso ao não encontrar nenhuma referência para ver se o livro foi, ou não, levado ao cinema. Ao que tudo indica, não.  O livro é magnífico, apesar de toda a tragédia do tema. E, ainda, para ficar no campo das surpresas, a narrativa do livro não termina em Auschwitz, mas em Bergen-Belsen. Eu conheci esse campo de concentração em 1995. Essa visita me perturbou muito. Foram várias noites sem dormir direito. Em 2019 eu conheci Dachau em visita guiada. O guia teve que chamar a atenção dos turistas, em algazarra, sobre o significado dessa visita.
1995. Em frente a Bergen-Belsen. Carl, um funcionário aposentado da VW, nos proporcionou essa visita. Nesse campo morreram as irmãs Anne e Margot Frank.

Sobre Auschwitz, li dois dos livros de Primo Levi. É isto um homem e Os afogados e os sobreviventes. Duríssimas reflexões sobre o maior e mais trágico dos campos - com a característica, para além do campo de concentração, ser também um campo de extermínio, para a execução da "solução final", adotada na Conferência de Wansee. Também uso à exaustão o texto de Adorno, contido no livro Educação e emancipação, "Educação após Auschwitz". É intrigante a questão que Adorno levanta, já na primeira frase do texto: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação". E lamenta que tão poucos se preocupem com o tema.

Bem, vamos ao livro A bibliotecária de Auschwitz - um romance baseado numa história real, do jornalista cultural espanhol, Antonio G. Iturbe. A primeira edição data de 2012. A edição que eu li é da Harper Collins, de 2020. A tradução é de Dênia Sad e tem publicação, como lemos na orelha do livro, em onze países.

Começo a resenha pela frase de abertura do livro: "Enquanto durou, o bloco 31 (no campo de extermínio de Auschwitz) abrigou quinhentas crianças  e vários prisioneiros conhecidos como "conselheiros", e, apesar da estrita vigilância a que estava submetido, contou, contrariando todos os prognósticos, com uma biblioteca infantil clandestina. Era minúscula: consistia em oito livros, entre eles Uma breve história do mundo, de H. G. Wells, um livro didático russo e outro de geometria analítica [...]. Ao final de cada dia, os livros, com outros tesouros, tais como remédios e alguns alimentos, eram confiados a uma das meninas mais velhas, cuja tarefa era escondê-los toda noite num lugar diferente". Alberto Manguel, A biblioteca à noite. Essa frase do livro de Manguel foi o mote para o livro. A partir daí, Antonio Iturbe começa o seu trabalho de pesquisa, que mistura à ficção e nos dá esse maravilhoso presente que, apesar dos horrores da narrativa, é uma grande história de amor, uma história de amor aos livros e à leitura. É também uma história de profunda solidariedade humana.

Da orelha, tomo o indicativo da narrativa, sem contudo entregá-la: "Hirsch e Dita são personagens reais em meio a um relato digno de filmes de terror. São pessoas que não permitiram que o medo e a incerteza tirassem das crianças o direito  de aprender que 'abrir um livro é como abrir uma janela à liberdade'". É evidente que Dita e Hirsch são os personagens do romance, escrito entre a realidade e a ficção. Na contracapa lemos um pouco mais: "Uma garota de 14 anos. Um professor. Oito livros. Esperança. Em plena Segunda Guerra Mundial, no maior e mais cruel campo de concentração do nazismo, cerca de quinhentas crianças convivem todos os dias com a morte e com o sofrimento. No pavilhão 31, de vez em quando uma janela é aberta para férias. Obra de Fred Hirsch, o professor que consegue convencer os alemães a deixá-lo entreter as crianças. Desta forma, garante ele aos nazistas, seus pais - judeus - trabalhariam bem melhor. Os alemães concordam, mas com uma condição: seria terminantemente proibido o ensino de qualquer conteúdo escolar no local. Mal sabiam eles o que a jovem Dita guardava na barra da saia: livros. Baseado na história real de Dita Dorachova, A bibliotecária de Auscwitz é o registro de uma época triste da história, mas também o relato de pessoas corajosas que não se renderam ao terror e se mantiveram firmes na luta por uma vida melhor, munindo-se de livros".

A narrativa transforma a menina Dita num amor de criança, com sua dedicação à causa, raramente encontrada em pessoas adultas. Ela está no Bloco 31 de Auschwitz-Bierkenau, ou Auschwitz II. O 31 é o bloco das crianças, dentro do campo familiar. Ele existiu como fator de propaganda ou de contrapropaganda, caso os nazistas fossem obrigados a receber os observadores da Cruz Vermelha. O mundo desconhecia o que se passava nesse campo de morte. Muitas fugas eram empreendidas para que os fatos fossem dados ao conhecimento do mundo. Dita procurava fugir dos olhos, sempre atentos, do doutor Mengele, que vivia a observar as crianças, selecionando algumas, que considerava  mais interessantes para os seus "experimentos científicos". Ela descuidava dessa vigilância quando se tratava de zelar pela guarda dos livros a ela confiados. Dita estava presa junto com o pai e a mãe. Embora separados, havia a possibilidade dos encontros. Dita somava a esperança com a sua força de vontade e determinação. E uma constatação: a esperança faz parte do ser humano, integra a sua natureza. Quando se vislumbrava, nem que fosse apenas um minuto de futuro pela frente, o ser humano coabitava com a esperança. Que força extraordinária e deslumbrante, que nem a escuridão conseguia apagar.

Dita e Hirsch eram jovens de famílias judias checas. Moravam em Praga. De Praga foram levados ao gueto de Terezín e, depois, para o campo de extermínio. Ali eram submetidos constantemente aos registros e ao controle para ver - se iam para a fila dos que ainda tinham forças para o trabalho - ou, já sem essa força, para então serem encaminhados para as filas da morte. O livro está estruturado em 32 capítulos, que ocupam 366 páginas. Além dos capítulos tem um epílogo, dois adendos, sob os títulos "etapa final" e "que fim levaram". O "etapa final" é profundamente revelador.

Acabo de ver um comentário de um livro sob o título A cultura inculta, na tradução brasileira e "o fechamento da mente americana", no inglês original, de Allan Bloom. O comentário atribui muito das tragédias atuais à ausência de leituras significativas, de livros seminais. A bibliotecária de Auschwitz, com certeza, é um livro que preserva o humano em nós.

Eu volto com outro post para apresentar Auschwitz, a partir do livro. Não havia apenas um campo em Auschwitz. As empresas alemãs auferiram enormes lucros nesses campos, como pode ser visto no livro de Vuillard. O livro fala de Auschwitz I e de Auschwitz-Birkenau ou Auschwitz II. O livro também tem muitas reminiscências, tempos de lembranças, de tempos felizes. E como se trata de um livro de amor à leitura e aos livros, retiro dele uma frase, selecionada com pinça de ouro. Dita lembra da leitura de A montanha mágica. Lá, Hans Castorp se encanta com uma jovem russa, Madame Chauchat. Aproveita o carnaval para vencer sua timidez e conversar com ela. Dela recebe uma resposta fulminante que talvez ajude a explicar algo da "essência" alemã: "Vocês, alemães, amam mais a ordem do que a liberdade. A Europa inteira sabe disso". (página 144).

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