segunda-feira, 1 de junho de 2020

O homem medíocre. José Ingenieros.

Sou facilmente induzido a leituras, dependendo das pessoas que me indicam livros. Devo também dizer, que o contrário também se dá. Se admiro uma pessoa e esta me indica leituras, compro e leio os livros recomendados; se não as admiro, simplesmente esqueço a sugestão recebida. Devo confessar também, que esse meu método pode induzir a erros. Foi o que aconteceu com o livro O homem medíocre, do ítalo-argentino José Ingenieros.
A edição de O homem medíocre. Editora do Chaim.

O título do livro também contribuiu para essa espécie de aversão inicial ao livro. O homem medíocre me induziu a uma ideia de sermão, de lições de moral, de pregação ou de catecismo a ser seguido. No meu imaginário vi desfilarem as virtudes a serem seguidas, exemplos a serem imitados e vícios a serem evitados. Nada mais falso. O livro, acima de tudo, é um convite à formação, à formação permanente, uma busca incessante pelo mais, pela transposição de obstáculos. É a inquietação do gênio.

Na última vez em que o professor João Wanderley Geraldi esteve em Curitiba, para participar de trabalhos de formação, ele me deixou o texto de sua participação no Congresso Internacional - 50 anos depois da Pedagogia do oprimido, promovido pelo Instituto Paulo Freire de Portugal, na Universidade do Porto. O texto tem por título: Sala de aula: espaço de "inéditos viáveis". O texto tem duas frases em epígrafe. Uma, de José Ingenieros e outra, por óbvio, de Paulo Freire. Apresento as duas.

"Seria possível a continuidade social, sem essa compacta massa de homens puramente imitativos, capazes de conservar os hábitos rotineiros que a sociedade lhes infunde, mediante a educação?" (José Ingenieros. O homem medíocre.  Vamos a segunda:

"Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens no mundo para transformá-lo, que é o diálogo, estejamos caindo numa ingênua atitude, num idealismo subjetivista. Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e classes oprimidas. O que pretende a revolução autêntica é transformar a realidade que propicia este estado de coisas, desumanizante dos homens". Paulo Freire. Pedagogia do oprimido.

Busquei esse texto para dizer que a citação de Ingenieros que o professor Wanderley fez, me motivou definitivamente para ler o livro. Indicações do professor Wanderley estão sempre, para mim, no primeiro caso, no caso dos livros a serem lidos. Também quero dizer que a frase em epígrafe não é uma crítica ao escritor ítalo-argentino, mas uma contestação que o mesmo faz aos sistemas educacionais. Aliás, possivelmente, no livro de Ingenieros, a maior crítica ou definição do que seja um medíocre, seja esta de "homens imitativos". São eles a essência da mediocridade.

Mas, já que temos as duas citações, devo dizer que ao longo da leitura de O homem medíocre, por várias vezes me lembrei de Paulo Freire, especialmente, no que se refere ao "ser mais" como o objetivo essencial da educação e da própria vida dos seres humanos. Bem, acho que já entramos no terreno das sempre necessárias contextualizações. José Ingenieros é bem anterior a Paulo Freire. Ele nasceu em Palermo, na Sicília em 1887 e faleceu em Buenos Aires em 1925, com apenas 48 anos de idade. O livro foi escrito em 1913. Em sua biografia lemos que se tornou farmacêutico e médico e que na medicina se destacou como neurologista e psiquiatra. Tornou-se professor nessas áreas, que foram também o seu campo de estudos e de trabalho: a neurologia, o comportamento de alienados, a psiquiatria e a criminologia. A partir de 1920 deixou a docência e se dedicou à política, combatendo o imperialismo, militando no socialismo, se decepcionando com o "socialismo de Estado", abraçando então o anarquismo.

Isso transparece fortemente em sua obra, especialmente no último capítulo de O homem medíocre,  em que fala do clima da genialidade e de sua admiração pelo presidente argentino Sarmiento. Mas o grande tema do livro é um tratado sobre a mediocridade. Ele o escreve com o chicote na mão, fustigando os homens medíocres, o comum da humanidade. No prólogo do livro, da editora do Chaim, lemos sobre a origem do livro. São as suas lições (aulas) sobre psicologia do caráter, ministradas na Faculdade de Filosofia da Universidade de Buenos Aires, ao longo do ano de 1910, ganhando depois forma de livro. Tomo ainda um parágrafo desse prólogo:

"O autor deste livro pretende tratar sobre os defeitos morais que se chamam rotina, hipocrisia e servilismo, denunciando-os com a intenção de ser útil aos jovens que estão na idade de evitá-los, para que possam formar ideais e enobrecer sua vida. O autor já possui suficientes provas de que o seu esforço não foi estéril, porém, mais, mais do que na eficiência da palavra, acreditou no seu exemplo: desde que ministrou na Faculdade essas lições, terminando sua "carreira" exterior - a uma idade em que todos se preparam para iniciá-la -, viveu de acordo com seus princípios, renunciando aos benefícios de privilégios e costumes que considera nocivos. Dizem, com rigorosa verdade, que indivíduos mais desprezíveis são os predicadores de moral que não ajustam sua conduta a suas palavras. O autor sabe que só poucos moralistas poderiam escrever  o mesmo livro sem que tremessem as mãos".

Antes de mostrar a estrutura do livro queria expressar ainda algumas vivências que eu tive ao longo da leitura. Em primeiro lugar eu senti a presença de Nietzsche. Aquele "torna-te quem tu és", é realmente o extremo oposto para a vida medíocre. Não tenha mestres, não copie ninguém, forjar o ser que se pode ser. Teria também restrições a fazer, como o capítulo sobre a velhice niveladora. Também o seu conceito de igualdade. Sei que é um tema de difícil abordagem. Igualdade jamais poderá ser sinônimo de uniformidade. Sei também o quanto é difícil conciliar o termo singularidade com o da igualdade. Para mim Marx foi preciso quando falou: para cada um, de acordo com as suas necessidades e de cada um de acordo com as suas possibilidades. Entre essas diferenças, creio ser possível construir a igualdade. Para mim também o livro foi um grande manual de leituras. Quanta erudição: Anotei, no mínimo, uma meia dúzia de livros para posterior leitura. Mas não se trata apenas de um guia de leitura, o livro pode ser positivamente visto como um guia para a própria vida, sem cair nos nivelamentos, tão combatidos.

O livro tem uma pequena apresentação, afirmando o valor atemporal e universal das lições, um pequeno prólogo, que contextualiza o livro. e uma introdução maravilhosa. Segue o corpo da obra, com oito capítulos. Cada capítulo tem o seu título, subtítulos e um quadro ilustrativo de cada tema. Essas ilustrações tem a sua representação junto ao capítulo e, ao final do livro, a indicação de sua fonte. Eis a introdução: - A moral dos idealistas. Seis tópicos são abordados: 1. A emoção do ideal; 2. o idealismo baseado na experiência; 3. O caráter idealista; 4. O idealismo romântico; 5. O idealismo estoico; 6. Símbolo. Seguem os capítulos.

Capítulo I. O homem medíocre: 1. "Aurea mediocritas"; 2. Homens sem personalidade; 3. O homem medíocre; 4. Conceito social de mediocridade; 5 O espírito conservador; 6. Perigos sociais da mediocridade; 7. A vulgaridade. Capítulo II. A mediocridade intelectual. 1. O homem rotineiro; 2. Os estigmas da mediocridade intelectual; 3. A maledicência: uma alegoria de Boticelli; 4. O caminho da glória. Capítulo III. Os valores morais. 1. A moral de Tartufo; 2. O homem honesto. 3. Os desertores da honestidade. 4. A função social da virtude. 5. A pequena virtude e o talento moral; 6. O gênio moral: a santidade. Capítulo IV. O caráter medíocre. 1. Homens e sombras; 2. A domesticação dos medíocres; 3. A vaidade; 4. A dignidade.

Capítulo V. A inveja. 1. A paixão dos medíocres; 2. A psicologia dos invejosos; 3 Os roedores da glória; 4. Uma cena dantesca; seu castigo. Capítulo VI. A velhice niveladora: 1. Os cabelos brancos; 2. As etapas da decadência; 3. O fracasso dos gênios; 4. A psicologia da velhice. 5. A virtude da impotência. Capítulo VII. A mediocracia. 1. O clima da mediocridade; 2. A pátria; 3. A política dos corruptos; 4. Os arquétipos da mediocracia; 5. a aristocracia do mérito. Capítulo VIII. Os forjadores de ideais. 1. O clima da genialidade; 2. Sarmiento; 3. Ameghino; 4. A moral do gênio.

Lembrando, o livro tem a sua construção entre 1910 e 1913. O clima mundial, após as euforias da virada do século, com a relativa distância das guerras, da crença na diplomacia e no progresso, mergulha em profunda depressão com o vislumbrar da proximidade das guerras, causadas pelo imperialismo. No meu imaginário também consegui ver José Ingeniores preparando as suas lições para os jovens de 2020, em meio a um clima de niilismo, de hedonismo individualista sem precedentes e os valores morais afirmados em cima do ter. O que ele não teria a dizer? O imaginário é o grande antídoto à mediocridade.

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