segunda-feira, 25 de maio de 2020

Hamlet. Shakespeare.

Há muito que eu queria ter lido. De tanto ter ouvido falar da obra, de sua importância, de seus significados, fiquei com receio. Em meio a uma fila de livros, o pus na frente. Sobre a sua importância e significados, tudo é verdadeiro. Quanto a sua leitura, não é preciso ter medo, não é difícil. É óbvio que não é para principiantes. Uma boa contextualização histórica é fundamental. Estou me referindo a Hamlet, uma das obras primas de William Shakespeare. Li a edição da L&PM Pocket, com tradução de Millôr Fernandes. Essa tradução é muito elogiada.
A edição de Hamlet da L&PM Pocket, com a elogiada tradução de Millôr Fernandes.

Vamos a uma pequena contextualização. O dramaturgo inglês nasce em 1564 e morre em 1616. O teatro atravessa grande esplendor e Shakespeare será o seu maior nome. O Bardo será o artífice que melhor conseguirá expressar a condição humana. É nisso que reside toda a sua grandeza. Expressa a condição humana em uma nova era, a era do Humanismo e do Renascimento. Maquiavel (1469-1527) já arrebatara o poder aos céus e o confiara aos humanos, em toda a sua grandeza e miséria. Marca a passagem de uma era centrada no teocentrismo para o antropocentrismo. O homem voltará a ser "a medida de todas as coisas". Ganhará vida própria, autônoma.

Shakespeare será o grande cronista do exercício do poder, destes novos tempos. O dramaturgo tanto se coloca ao lado desse poder, como o criticará asperamente, como o será, no caso específico de Hamlet. Logo depois virá o Iluminismo e surgirão os Estados/Nação modernos. Hamlet era o rei da Dinamarca. A peça se desenvolve em cinco atos. Ela gira em torno do assassinato do rei, pelo seu irmão. Esse tomará, tanto o poder, quanto a rainha viúva, tomando-a como esposa. Hamlet, filho do rei assassinado e da rainha que toma o novo rei como esposo, tramará a vingança.

O primeiro ato tem cinco cenas. É uma espécie de introdução, que conta sobre a vitória do rei dinamarquês sobre Fortinbrás, da Noruega. Conta também sobre o assassinato do Rei. Este aparece a Hamlet sob a forma de fantasma, queixando-se que perdera a Coroa, a rainha e a vida. Entram em cena os demais personagens importantes: o rei, a rainha, Polônio, o principal dos cortesões, Laertes e Ofélia (filhos de Polônio), os amigos alemães de Hamlet, Rosengrantz e Guildenstern e, ainda, o amigo e confidente, Horácio. Preste atenção nesses personagens.

O segundo ato se desenvolve em duas cenas. Os personagens mais importantes serão Polônio e os filhos, junto com Hamlet. Chega uma companhia de teatro alemã para encenações na corte. Hamlet dá visíveis sinais de loucura. A companhia encenará uma peça sob o título de "O assassinato de Gonzaga". Hamlet está em busca de provas do assassinato de seu pai. As quatro cenas do terceiro ato certamente são a parte central ou nuclear da peça. Os atores iniciam a sua apresentação. As cenas certamente surpreenderão o leitor. O rei manda suspendê-la. Na segunda cena está a famosa passagem do "ser ou não ser - eis a questão". Na cena quatro, se me permitem, eu destaquei uma frase de Hamlet para Polônio, sobre a subserviência: "Ser prestativo demais - tem seus perigos".

Sete cenas rápidas marcam o quarto ato. A loucura de Hamlet cresce em intensidade. Há um novo assassinato e um suicídio. Rei e rainha, além de Hamlet, também tramam vingança. O cerco começa a se fechar. Isso ocorrerá nas duas cenas do quinto ato. Mais não posso narrar, a não ser, dizer que se trata de uma tragédia. Mas a peça vai para muito além da sua narrativa trágica, a força maior está nos monólogos de Hamlet, onde estão expressos os dramas do homem moderno, reflexos da condição humana, em que os porões profundos do ser humano começam a emergir, buscando vasão.

Na contracapa da edição da L&PM Pocket lemos: "Hamlet, de William Shakespeare é uma obra clássica permanentemente atual pela força com que trata de problemas fundamentais da condição humana. A obsessão de uma vingança onde a dúvida e o desespero concentrados nos monólogos do príncipe Hamlet adquirem uma impressionante dimensão trágica". Ninguém precisa se assustar com a grandeza de Shakespeare. Ele apenas nos apresenta o melhor relato do que é a condição do humano em todas as suas dimensões. Seria a própria condição humana uma grande tragédia?


Um adendo. 20 de novembro de 2024. Dia da consciência negra, pela primeira vez, feriado nacional. Do livro O último leitor, de Ricardo Piglia. No capítulo primeiro - O que é um leitor, encontramos o maravilhoso texto que segue: O caso Hamlet,

" Agora eu gostaria de voltar a Hamlet, o dândi epigramático e enlutado que, como Scharlach, também deseja vingar-se (seria melhor dizer que é obrigado a vingar-se).

Depois do encontro crucial com o fantasma do pai, Hamlet, como dissemos, entra com um livro na mão. Era muito raro que Shakespeare fizesse marcações de cena, mas desde as primeiras edições consta a especificação: 'Hamlet entra lendo um livro'.

É claro que nos perguntamos se ele está mesmo lendo ou se finge que lê. O fato é que ele se apresenta com um livro. O que significa ler naquele contexto, na corte? Que tipo de situação está implicíta no fato de alguém se apresentar lendo um livro no quadro das lutas de poder?

Não sabemos que livro ele lê, e não vem ao caso. Mais adiante, Hamlet descarta a importância do conteúdo. Polônio lhe pergunta o que está lendo. 'Palavras, palavras, palavras', responde Hamlet. O livro está vazio; o que importa é o próprio ato de ler, sua função na tragédia.

Essa ação une os dois mundos em jogo na obra. De um lado, o vínculo com a tradição da tragédia, a transformação da figura clássica do oráculo, a relação com o espectro, com a voz dos mortos, a obrigação de vingança que lhe vem dessa espécie de ordem transcendente. De outro lado, o momento antitrágico do homem que lê, ou finge que lê. A leitura, como dissemos, é vista como isolamento e solidão, como outro tipo de subjetividade. Nesse sentido, Hamlet é um herói da consciência moderna porque é um leitor. O que está em jogo é a interioridade.

A cena em que Hamlet entra lendo é um momento de transição entre duas tradições e dois modos de entender o sentido. Bertolt Brecht - que era, evidentemente, um grande leitor, um dos maiores -, em O pequeno Organon para o teatro, escrito em 1948, observa que Hamlet é 'um jovem, embora já um pouco entrado em carnes, que faz um uso extremamente ineficaz da nova razão, de que teve notícia durante sua passagem pela Universidade de Witenberg'. Hamlet vem da Alemanha, vem da universidade, e Brecht vê nesse fato a primeira marca da diferença. 'No seio dos sentimentos feudais, em que se encontra ao regressar, aquele novo tipo de razão não funciona. Diante de uma prática irracional, sua razão se mostra absolutamente não prática, e Hamlet cai, vítima trágica da contradição entre aquela forma de raciocinar e a situação imperante.' Brecht vê na tragédia a tensão entre o universitário que chega da Alemanha com ideias novas e o mundo arcaico e feudal. Essa tensão e essas ideias novas estão encarnadas no livro que ele lê, simplesmente um signo de um novo modo de pensar, oposto à tradição de vingança. A legendária indecisão de Hamlet poderia ser vista como um efeito da incerteza de interpretação, das múltiplas possibilidades de sentido implícitas no ato de ler.

Existe uma tensão entre o livro e o oráculo, entre o livro e a vingança. A leitura se opõe a outro universo de sentido. A outra maneira de construir o sentido, melhor dizendo. Habitualmente, o que o sujeito está deixando de lado é um aspecto do mundo, um mundo paralelo. E o ato de ler, de ter um livro, costuma articular essa passagem. A letra tem algo de mágico, como se convocasse um mundo ou o anulasse.

Seria possível afirmar que Hamlet vacila porque se perde na vacilação dos signos. Se afasta, tenta afastar-se, de um mundo para entrar em outro. De um lado parece estar o sentido pleno, embora enigmático, da palavra que vem do Além: do outro está o livro. No meio está o palco" (páginas 35-37).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo comentário. Depois de moderado ele será liberado.