segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A Fenomenologia Negra de Fanon. Ivo Queiroz & Ericson Falabretti.

Num de nossos já costumeiros almoços no São Francisco, recebo um presente da Suzi, uma das diretoras da DROPS EDITORA, o livro - A fenomenologia Negra de Fanon. Na capa constam como autores do livro Ivo Queiroz e Ericson Falabretti. Na verdade, o livro é o trabalho de pós doutorado de Ivo Pereira de Queiroz, sob a orientação de Ericson Falabretti. E como falamos dos autores, vamos a uma apresentação sua, contida na orelha da contracapa do livro.

A fenomenologia negra de Fanon. Ivo Queiroz e Ericson Falabretti. Kotter Editorial. 2025.

Ericson Falabretti é professor do curso e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. Pró- reitor de Desenvolvimento Educacional da universidade, é membro do GT de Filosofia da ANPOF. Pesquisa e orienta mestrados e doutorados nas áreas de Filosofia Política e Fenomenologia.

Ivo Pereira de Queiroz é professor aposentado da UTFPR, onde é membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas - NEABI e da Seção Sindical dos Docentes da UTFPR - Sindutfpr. Permanece aprendiz de filosofia por meio dos livros, da vida e das rodas de samba, no Samba do/a Compositor/a Paranaense e do Samba do Sindicatis, pelas quebradas de Curitiba.

Como o título do livro nos indica, dois temas são fundamentais: A fenomenologia e Frantz Fanon. Nunca estudei sistemática e metodicamente a fenomenologia. Já Frantz Fanon me é um pouco mais familiar, pelos estudos da descolonização, da luta pela libertação da Argélia e pela leitura de seu maravilhoso livro Os condenados da Terra

Como se trata de um livro acadêmico, um trabalho de pós doutorado, de alta densidade teórica, não vou me aventurar em uma resenha. Me limitarei a uma pequena apresentação do trabalho, daqueles elementos que numa leitura mais simples, mais me chamaram a atenção, ressaltando antes, a importância e a atualidade do tema, corroborada num poema, de autoria do próprio Ivo, como uma espécie de epígrafe - VIDAS NEGRAS IMPORTAM.

O que eu tenho a ressaltar foi o fio condutor do trabalho. Uma superação do conceito cartesiano da divisão do ser humano em corpo e mente, numa visão mecânica de partes separadas e que não interagem. Essa superação se deu pelos estudos da fenomenologia, destacando os trabalhos de Husserl e Merleau-Ponty, de Sartre e de Martin Heidegger. Merleau-Ponty foi professor de Fanon, em seu tempo de formação na Universidade de Lion. Fanon também teve fortes influências de um conterrâneo seu, Aimé Césaire, especialmente, sobre o tema do colonialismo e seus males. Césaire e Fanon nasceram na ilha de Martinica, no mar caribenho. Era um Departamento Ultramarino francês e, ainda hoje, integra As Índias Ocidentais Francesas. Tem uma população de aproximadamente 400 mil habitantes.

Fanon tornou-se médico e atuou no campo da psiquiatria. A exerceu profissionalmente na Argélia, mas por pouco tempo, por ter se integrado na luta pela emancipação do país, sendo um de seus principais teóricos. No seu livro Os condenados da Terra, ele conta, tanto da sua experiência como psiquiatra, denunciando os males do colonialismo/racismo, tanto sobre o colonizador, quanto sobre o colonizado, quanto do seu engajamento na luta pela emancipação da Argélia (1954-1962). Fanon nasceu na Martinica (1925) e morreu precocemente (aos 36 anos) nos Estados Unidos (1961), onde procurou tratamento para a cura da leucemia que o acometera. Neste mesmo ano de 1961 também é publicado seu livro Os condenados da Terra.

Mas vamos à orelha da capa, para ver a trajetória percorrida na elaboração deste trabalho: "Esta fenomenologia negra de Fanon é o resultado do reencontro intelectual de dois amigos que, durante quatro anos, desenvolveram diálogos sobre as leituras de textos de Frantz Fanon à luz da fenomenologia e da ancestralidade africana. Este livro é o registro do aprendizado alcançado nesta convivência e nos chega como celebração do centenário de nascimento de Fanon (1929 - 2025).

O livro repercute reflexões e categorias desenvolvidas por Fanon, situando-as no contexto dos debates fenomenológicos e levantando articulações, com o enfrentamento do racismo no momento presente. Neste sentido, são apontadas aproximações com a filosofia afrobrasileira e do encantamento, evocando gentes conhecidas e anônimas da filosofia e do samba. Assim, além de Fanon, Merleau-Ponty, Husserl, Sartre e Marx, temos felizes companhias de Adibênia Freire Machado, Eduardo Oliveira, Renato Nogueira, Ailton Krenac, Nego Bispo e o povo do samba: Janaína Queiroz, Cláudio P, Léo Fé e o multiartista Jonas Lopes que leu Pele negra - máscaras brancas e criou a capa deste livro, presenteando-nos com um Fanon enorme, em cujo rosto a máscara branca não cabe".

O livro, de 238 páginas, contém cinco capítulos como o corpo principal, além de apresentação, introdução, considerações finais e bibliografia. Na introdução é apresentada a vida, os métodos e os escritos de Fanon. Já os capítulos, eu apresento seus títulos e subtítulos: 1. As vidas que importam: do esquema corporal ao esquematismo epidérmico: Humanismo seletivo - Do corpo objeto ao corpo próprio - O corpo objeto - O corpo próprio - Esquema corporal - Reversibilidade - Intercorporeidade - O esquematismo epidérmico - Esquematismo epidérmico-racial e o desaparecimento do esquema corporal - Racismo e cultura.

2. O esquematismo epidérmico e a linguagem: Merleau-Ponty: A linguagem no mundo da vida e a experiência da fala - Fanon e o esquematismo epidérmico-linguístico. 3. Tempos de violência: As formas da violência - Violência atmosférica - Violência atmosférica na Argélia - O reconhecimento como não violência.

4. Do esquematismo epidérmico ao humanismo não essencialista: Esquematismo epidérmico e as duas metafísicas - Tomada de consciência e engajamento - Da desobediência aos esquemas epidérmicos - Novo humanismo. 5. Filosofia da tecnologia afrodiaspórica: Reflexividade radical sobre o ser negro - Parâmetros culturais africanos à luz do ser, do agir e do fazer - A dinâmica afrodiaspórica: negação do ser versus corpos em movimento - A opção fundamental do agir e do fazer afrodiaspórico - Os modos de ser do pensar e do fazer tecnológico: ancestralidade ocidentocêntrica e condição afrodiaspórica.

Eu destacaria ainda a questão do humanismo, deste humanismo seletivo, deste humanismo eurocêntrico. A primeira vez em que eu me deparei com este conceito foi através da obra de Alejo Carpentier - O século das luzes e Necropolítica, de Achile Mbembe. Os princípios do humanismo, de liberdade e de igualdade, pregados pelo iluminismo, foram postos à prova com a independência do Haiti, em 1804. Esses princípios seriam válidos apenas para os brancos europeus e não para os povos colonizados e escravizados das colônias africanas, americanas e asiáticas.

Ao longo da leitura também me lembrei muito de Paulo Freire. Do Paulo Freire do exílio e trabalhando para o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra. Talvez esta seja uma das partes menos conhecidas da vida de Paulo Freire, mas das mais importantes, quando ele foi orientador na elaboração de práticas pedagógicas para as antigas colônias africanas de língua portuguesa, agora, países libertos, independentes. Paulo Freire, neste seu trabalho, muito levou em conta a vida e a obra de Frantz Fanon. Uma revolução na pedagogia desses países.

Deixo ainda a parte final do trabalho, seguramente palavras de alento: "O esquematismo epidérmico se manifesta nos antigos e novos discursos de ódio e morte, proclamados por supremacistas, sejam eles remanescentes de velhos tempos ou emergentes em novas formas.

O colonialismo é a sementeira da tristeza. O pai de todos os clubes melancólicos da humanidade narcísica.

Enquanto não retomarmos, através de uma luta ativa no campo do Lebenswelt político, a ancestralidade originária dos corpos e a amorosidade radical da vida, fonte do encantamento e das confluências que desembocam na festa. na alegria e na vontade de viver, o racismo continuará a subsistir triunfante como um pilar central de antigas e novas formas de desumanização, calvário e domesticação".

Deixo ainda com vocês, a resenha de Os condenados da Terra.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/03/os-condenados-da-terra-frantz-fanon.html


terça-feira, 23 de setembro de 2025

SATIRCON. PETRÔNIO.

Recentemente reli o belo romance de Scott Fitzgerald, O grande Gatsby. No livro que li, da coleção Clássicos, da Penguin & Companhia, há uma introdução, de Tony Tanner, que começa assim: "De início, não era para se chamar O grande Gatsby. Numa carta [...] Fitzgerald escreveu: 'Decidi que vou insistir com o título que dei ao livro - Trimalchio em West Egg'". Logo depois especifica quem foi este tal de Trimálchio. "Trimálquio é o novo-rico vulgar e de imensa fortuna do Satyricon, de Petrônio; um mestre das alegrias gastronômicas e sexuais que oferece um banquete de luxo inimaginável, do qual indiscutivelmente participa - ao contrário de Gatsby, que é um espectador sóbrio e isolado das próprias festas".

Satiricon. Petrônio. Abril Cultural. 1981. Tradução: Marcos Satarrita.

Isso me bastou para ir a um sebo e procurar pelo livro, o que se tornou uma tarefa muito fácil. O que tenho em mãos? Um livro escrito por um romano, do século I, por volta do ano 60, já depois de Cristo. Seu título é Satiricon, numa referência absolutamente precisa à sátira, o principal componente do livro. Uma sátira aos hábitos, costumes e crenças da época. Como a sátira é vizinha da comédia, podemos dizer que se trata de uma comédia satírica, com um particular a acrescentar. Roma vivia sob as barbas do imperador Nero. Muita Gula e muita volúpia, ou luxúria, se preferirem essa palavra. É tido como um dos primeiros romances da história. Ele mistura a narrativa à poesia.

Não há uma sequência lógica. Vejamos a apresentação do autor e do livro em suas orelhas: "Romano do século I, d. C., Petrônio viveu na corte do imperador Nero, distinguindo-se como governador da Bitínia e cônsul. Famoso pelo comportamento hedonista e pelo gosto requintado, recebeu o título não oficial de árbitro da elegância. Satiricon, a primeira novela da Europa Ocidental, é hoje identificada com esse Petrônio - poeta de talento e homem voluptuoso, segundo a descrição do historiador Tácito. O clima da obra, além de outras evidências, sugere claramente o período neroniano e nos faz duvidar de que dois homens com o mesmo nome e o mesmo caráter bizarro possam ter vivido exatamente na mesma época. Em Satiricon - talvez um décimo da obra completa - o autor relata, de maneira burlesca e amoral, a vida errante e as façanhas de um trio de aventureiros: o narrador Encólpio, seu amigo (ou nem tanto) Ascilto e o garoto Gitão. Uma enorme quantidade de contos e de variados estilos formam a estrutura livre e desconexa da narrativa. Há passagens, por exemplo, em que se misturam a prosa e o verso, além das digressões onde o autor expõe suas próprias opiniões, sem muita ligação com o enredo de uma maneira geral. Petrônio morreu no ano 66 d. C., quando, acusado de conspiração contra o imperador, foi obrigado a cometer suicídio, cortando os pulsos. A obra de Petrônio serviu de inspiração ao filme Satiricon, levado às telas, em 1969, pelo diretor italiano Federico Fellini".

Eu consegui ver na obra, quatro partes mais ou menos aglutinadas: A primeira é a festa, ou o banquete oferecido aos três jovens e demais convidados pelo abastado Trimálquio. Comida, bebida e luxúria se complementam. Bem ao estilo dos romanos. Uma segunda, em que os três encontram Eumolpo e se refugiam num navio, comandado por antigos desafetos. Intrigas, traquinagens e algumas safadezas se misturam. A terceira, toda escrita em versos, tem por título - Guerra Civil. São poemas em louvor a heróis do passado e de exaltação ao patriotismo, além de lamentos pela situação em que se encontra a humanidade. Finalmente, mais uma vez os três, mais Eumolpo, se encontram em Crotona. De novo, riqueza fácil, mulheres licenciosas, luxúria e ciúmes formam o enredo. Também, ao longo de todo o livro, Encólpio e Ascilto disputam os favores sexuais do garoto Giton. O livro tem 141 capítulos, sempre em torno de uma página, ou um pouco mais. Ao todo são 208 páginas.

Eu grifei algumas passagens: A primeira é sensacional. Lembra demais a safadeza e a sacanagem dos dias atuais. As artimanhas para se aproximar, especialmente, de pessoas inocentes. Encólpio explica a razão pela qual se hospedaria numa casa: "Escolhi-a para alojar-me não tanto pelo conforto das acomodações, como pela maravilhosa beleza do filho do dono. Recorri a esse expediente para que o bom pai não suspeitasse da viva paixão que o garoto me inspirava. Assim, todas as vezes em que se abordava, à mesa, a questão do amor delicado por certos homens a rapazes bonitos, eu me expandia em invectivas tão violentas contra esse infame costume, pedia de modo tão severo que poupassem meus ouvidos de tais conversas obscenas, que todos, sobretudo a mãe de meu amiguinho, me encaravam como um dos sete sábios" (Página 113). Olha, eu sei em quem vocês estão pensando!

A segunda é em verso e fala da decadência dos Estados Unidos, opa, desculpe, de Roma:  

"Ademais, o povo afunda no duplo lodaçal
Da horrenda usura e dos débitos devoradores.
Não há um lar a salvo, nenhuma alma livre
Da hipoteca; a lenta decadência medra
Em silêncio no coração, e logo se alastra impiedosa
Pelos membros em grande alarido. Os romanos
Recorrem às armas, como desesperados,
E procuram agora, nas feridas abertas,
Os bens que dissiparam na luxúria. Imersa nessa torpeza,
Nesse sono doente, que remédio poderia despertar Roma,
Senão o terror, a guerra e o aço lascivo?" (Página 167).

E, se por acaso, alguém tiver necessidade de uma oração para Priapo, o filho de Afrodite e Dionísio, aqui vai a súplica de Encólpio, diante de um estado de impotência: "- Amigo das ninfas e de Baco, eleito por Diana, a bela, para deus das florestas abundantes, adorado em Lesbos e na verde Tasos, pela Lídia dos sete rios, que construiu para ti um templo em Hipepa: vem, ó mestre de Baco, guardião dos prazeres das dríades, e ouve minha modesta prece. Não me aproximo de ti coberto de amargo sangue, nem ergui mãos profanas contra um templo, mas necessitado e desvalido eu pequei, porém não com todo o meu corpo. O homem que peca por deficiência é menos culposo. Ouve minha prece, eleva meu coração, perdoa minha leve ofensa, e quando a fortuna, em sua hora, me servir de novo, tua mercê não ficará sem recompensa. A teu altar virá uma cabra de chifres, a melhor de seu rebanho, a teu altar virá uma ninhada de pequenos porcos, à mãe roubados. O vinho deste ano espumará nas taças, e a juventude ébria circundará por três vezes, alegre, o teu templo" (Página 191).

Na contracapa temos uma informação interessante: "No primeiro romance realista da literatura universal, um quadro detalhado da vida cotidiana de Roma no século I d. C. As orgias e os pantagruélicos banquetes de uma nova classe em ascensão: a dos escravos libertos". Enfim, um agradável mergulho no primeiro século (d. C.) da Roma depravada e devassa.



quinta-feira, 11 de setembro de 2025

UTOPIA AUTORITÁRIA BRASILEIRA. Carlos Fico.

Um livro simplesmente extraordinário. Mais atual, impossível! Estou me referindo ao Utopia autoritária brasileira - Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje, do renomado e rigoroso historiador, Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um relato histórico denso e rigoroso, acompanhando a interferência dos militares na política brasileira, desde os tempos que antecederam a proclamação da República, até a instauração da ditadura civil-militar de 1964. Na conclusão, algumas incursões sobre o momento atual da política brasileira, momento ímpar, em que militares estão sendo julgados pela Poder Judiciário, um fato inédito em nossa história.

Utopia autoritária brasileira. Carlos Fico. Crítica. 2025.

Num dos primeiros parágrafos, na apresentação do livro, o autor nos afirma categoricamente que "O Exército brasileiro sempre desrespeitou a democracia. As Forças Armadas violaram todas as constituições da República. Rebeliões contra decisões legítimas: sublevações motivadas por corporativismo; golpes de Estado e tentativas de golpe. Indisciplina e subversão marcam a trajetória dos militares no Brasil. Eles foram responsáveis por todas as crises institucionais do país desde a Proclamação da República e jamais foram efetivamente punidos. Esse intervencionismo militar expressa a fragilidade institucional da democracia brasileira até hoje - como ficou evidente nos anos recentes" (Página 8).

A comprovação dessa afirmação é o teor do longo livro do historiador. Ao todo ele tem 448 páginas, sendo as primeiras 379 dedicadas à análise dos fatos e as restantes, à bibliografia e notas das fontes trabalhadas. Vamos a um esboço, ou sumário do livro. Os capítulos não são numerados, mas são oito no total, mais a apresentação, conclusão, bibliografia e notas. Vejamos os capítulos e os seus tópicos: Vou enumerá-los: Capítulo I. Deposição de Pedro II: "Banco aceita transação". A guerra e o ressentimento contra os civis. Questão militar. O pecado original da República. Predomínio militar na nova Constituição. Capítulo II. A mocidade militar se revolta: Um golpe militar durante a Revolta da Vacina. A revolta da escola da Praia Vermelha. Punição e anistia.

Capítulo III. Fraudes, indignação e voluntarismo militar: Em busca da verdade eleitoral. O tenentismo. A glorificação dos tenentes. A "Reação Republicana" e as cartas falsas. 1922: tentativa de golpe no Rio de Janeiro. 1924: tentativa de golpe em São Paulo. Capítulo IV. Militares, revolução e ditadura: A deposição de Washington Luís. O autogolpe do Estado Novo. 1945: Deposição de Getúlio Vargas. Capítulo V. Cinco presidentes e dois golpes: General democrata ou sedicioso. O segundo governo Vargas. Contra a posse dos eleitos. Duplo golpe.

Capítulo VI. Voos turbulentos: Militarismo na aeronáutica. Jacareacanga. Aragarças. Capítulo VII. O pior da história do Brasil: A renúncia inesperada. Veto militar e imposição do parlamentarismo. Capítulo VIII. Deposição de João Goulart: Uma memória controvertida. Desestabilização e conspiração. Antecedentes. O golpe de 1964.

Depois da explanação desses temas, ainda no primeiro parágrafo da conclusão lemos: "Neste livro, eu quis enfatizar a obviedade de que o intervencionismo militar por meio de pronunciamentos, golpes e tentativas de golpes se fundamenta na força das armas. Não se constitui apenas em ação política equívoca, mas no recurso à violência contra aqueles que confiaram aos militares a defesa da nação. É um crime grave" (Página 367). Depois o autor afirma que essas intervenções sempre foram encobertas pelo mito da "história incruenta", isto é, sempre ocorreram sem o derramamento do "sangue generoso do povo brasileiro", para a seguir afirmar: 

"Entretanto, descrevi uma série de episódios em que houve confronto armado: nas fracassadas tentativas de golpe de 1904, 1922 e 1924; na vitoriosa mobilização de 1930 e nas duas tentativas malsucedidas contra JK em 1956 e 1959. Além disso, embora não tenha havido confronto, houve movimentação de tropas na Proclamação da República, nas deposições de Vargas, durante os golpes de Lott, no pronunciamento de 1961 e no golpe de 1964" (Página 368). No dizer de Eduardo Gomes a justificativa era a regeneração dos costumes políticos. 

Qual seria a origem desse espírito de intervenção, uma espécie de poder moderador permanente atribuído às Forças Armadas, presente em todas as Constituições brasileiras? Já na Constituição de 1891 estava inscrito, sob a influência de Rui Barbosa, que o Exército devia ser "respeitável e respeitado dentro dos limites da lei". Isto é: se os governantes transgredissem a lei, as Forças Armadas teriam o direito de intervir. Convenhamos, um princípio totalmente subjetivo. Isto ainda está presente na Constituição de 1988, por uma cláusula inegociável, segundo o autor, no confuso artigo 142. Pela sua importância, no atual momento, eu o nomino em seu caput: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Espaço para a famosa GLO.

E o título: Utopia autoritária. O autor assim o explica: "Tendo estudado os diversos aspectos da ditadura militar nos últimos trinta anos, desenvolvi algumas hipóteses. Creio que a principal foi a que eu chamei de utopia autoritária: o entendimento militar de que os problemas brasileiros seriam superados e o Brasil se tornaria uma 'grande potência' na medida em que fossem eliminados os obstáculos - chamados de 'óbices' pelos militares - que impediriam essa ascensão. Os principais seriam  a 'subversão comunista' e a 'corrupção dos políticos" (Página 377). A eliminação destes óbices gerou a chamada "linha dura" e justificou a censura, a tortura e as medidas excepcionais. As chamadas medidas "saneadoras". Nisso tudo também havia uma "dimensão pedagógica", assim descrita: "Em sua dimensão 'pedagógica', tal utopia considerava que os brasileiros eram despreparados e seria preciso educá-los, o que se verificava muito claramente, por exemplo, na propaganda política da ditadura, na censura das diversões públicas ou nas disciplinas de 'moral e cívica' que havia no período. Uma pedagogia obviamente autoritária" (Página 378).

E qual seria a utopia que almejavam construir? Quais seriam as suas perspectivas? "Ambas as dimensões compartilhavam, entretanto, algo fundamental: o futuro grandioso do "Brasil Potência" justificaria eventuais rupturas constitucionais, desde as ilegalidades criminosas e brutais praticadas pelos órgãos de repressão até os desvios menos notáveis, mas igualmente ilegais, da tentativa de doutrinação ideológica feita pela propaganda política ou da 'proteção' da sociedade com a censura moral que coibia 'abusos' como a nudez e o palavrão" (Página 378). Vejamos mais um parágrafo:

"Essa hipótese analítica orientou meus estudos sobre a ditadura militar. Entretanto, quando analisamos o período anterior e posterior, verificamos que aspectos dessa utopia autoritária têm longa duração e são persistentes. É o caso, por exemplo, da visão elitista do 'povo despreparado' e da classe simplista de que a corrupção é a causa fundamental de nossos males. De acordo com a perspectiva autoritária, se o povo é despreparado e o sistema político está comprometido, os desvios da Constituição se justificam, sendo o principal a tentativa de tomada do poder pela violência, o golpe de Estado, para o qual as Forças Armadas são indispensáveis. Note-se que muitos outros indícios de leniência com a ruptura da legalidade constitucional poderiam ser elencados, mas isso daria outro Livro" (Página 379).

Outro livro, com certeza, mas que o autor não está predisposto a escrever. Ele afirma que Utopia autoritária brasileira é o seu último livro. Uma pena, se ele cumprir ao que se propõe. Quanto a importância do livro, creio que todos já a perceberam. Vejamos ainda a orelha da capa:

"Neste que considera o último livro de sua carreira, o premiado historiador Carlos Fico examina, com rigor e profundidade, as principais intervenções militares que moldaram a história do Brasil: da Proclamação da República, em 1889, ao golpe de 1964, chegando ao intervencionismo militar dos anos recentes. Além de reconstruir esses momentos críticos, o autor desmonta a crença equivocada de que as Forças Armadas seriam as mais qualificadas para atuar como um  Poder Moderador republicano, à semelhança da prerrogativa imperial prevista na Constituição de 1824.

Utopia autoritária brasileira resgata, em ordem cronológica, mais de uma dezena de golpes e tentativas de golpes desde a proclamação, investigando os padrões recorrentes do intervencionismo militar: Ao longo dos capítulos, personagens reaparecem em diferentes momentos da história - golpistas persistentes, legalistas que mudam de lado, juristas coniventes - compondo um retrato multifacetado da política brasileira. Embora explore a 'melancólica trajetória nacional', como define o autor, esta obra cativante fascina a todos que se preocupam com os rumos do país". Nunca houve um momento tão oportuno, tanto para a publicação, quanto para a leitura desse livro, como o momento atual. 

Eu também tenho uma outra proposta de leitura. Ela versa sobre a ideologia que impregna as Forças Armadas, especialmente após a sua participação na Segunda Guerra Mundial, sob o comando dos Estados Unidos. É A ideologia da Segurança Nacional, do padre belga, Joseph Comblin.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/11/a-ideologia-da-seguranca-nacional-padre.html

ADENDO: DIA 11 de setembro de 2025. 15horas e quarenta e um minutos. A ministra Carmen Lúcia sela o destino de Jair Bolsonaro e seus asseclas golpistas. CONDENADOS. Inédito na história do país como lemos nesse magnífico livro. Que coincidência!. Publiquei o post no dia da condenação.


 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

MORTE DE UM DISSIDENTE. O envenenamento de A. Litvinenko e a volta da KGB.

Mais um dos livros que ficou à espera de leitura por um bom tempo. Quase quinze anos. Comprei-o no ano de 2011, em promoção. O tema e a confiabilidade na editora certamente moveram a compra. Trata-se de Morte de um dissidente. O envenenamento de Alexander Litvineko (Sacha) e a volta da KGB. Os autores são Alex Goldfaber e Marina Litvinenko, sendo essa a esposa do morto, num dos muitos assassinatos atribuídos a Putin, ao seu grupo instalado no Kremlin. O crime aconteceu em Londres, em fevereiro de 2007.

Morte de um dissidente. Alex Goldfarb e Marina Litvinenko. Companhia das Letras. 2007


Este assassinato por envenenamento serve de pretexto para examinar a política da Rússia, após o esfacelamento da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Assim os temas centrais são a ascensão de Boris Iéltsin ao poder e as reformas de Estado por ele praticadas, a atuação das antigas instituições do Estado, especialmente as ligadas as investigações, como a KGB, agora respondendo sob a sigla de FSB e especialmente a sucessão de Iétsin, com a passagem do poder a Vladimir Putin, um antigo membro da KGB, a tão temida KGB, e, como nos sugere o subtítulo do livro, a sua volta aos círculos do poder. Os fatos relatados vão até fevereiro de 2007. 2007 é também o ano da publicação do livro, um lançamento certamente mundial, uma vez que a edição brasileira também é desta data.

Uma frase fantástica sintetiza bem o que foi esta passagem de poder. Ela foi retirada de uma reportagem da revista Time, que "comparou o confronto entre Putin e Boris Berezovski ao de Stalin com Trótski". O título do livro nos dá a posição do mote da dissidência. Litvichenko (mais tratado pelo apelido - Sacha) também foi um integrante da antiga KGB, mas adversária de Putin. Alex Goldarb, o autor, também pertencia ao grupo dissidente, uma vez que estava umbilicalmente ligado a Berezovski. Mas o tema que mais espaço ocupa no livro é o dos conflitos da guerra com a Tchetchênia, tão comentada na época e ao mesmo tempo, muito pouco conhecida. Ela merece um olhar mais particular. Ela é também a grande marca dos personagens deste livro. Vejamos:

"De uma forma ou de outra, a guerra na Tchetchênia tornou-se o contexto definidor da vida de Sacha e Marina, de Boris e Putin, de Akhmed Zakaiev, minha, e de todos que faziam parte dos nossos círculos coletivos. A Tchetchênia foi o cemitério da democracia russa e o motivo final que levou a Rússia a se afastar do Ocidente. O confronto de Boris com o Partido da Guerra e seus conflitos com o FSB, que arrastaram Sacha para o torvelinho das lutas pelo poder no Kremlin, começaram com a Tchetchênia. Para Putin, a Tchetchênia passou a ser uma interminável disputa de judô e a liga que cimentou sua destrutiva relação de dependência com George Bush" (Página 361). Para compreender bem esta situação, vejamos mais alguma coisa.

A Tchetchênia hoje integra a Federação Russa, mas mantém um forte sentimento de autonomia. Os conflitos tem sua origem na desintegração do Império Soviético. Houve duas guerras. A primeira, entre 1994 e 1996 e a segunda, na verdade, uma continuação da primeira, entre 1999 e 2009. Ela tem apenas 1,5 milhão de pessoas, sendo que a maioria pratica o credo muçulmano. São uma província autônoma, com Constituição e idioma próprios. Se situa na região do Cáucaso e a sua importância é enorme, devido aos dutos de petróleo e gás, que ligam o Mar Cáspio ao Mar Negro, donde atingem os mercados globais. A região, ainda hoje não está inteiramente pacificada. Persistem os movimentos de guerrilha. A atuação da FSB, mais contribuiu para agravar os problemas do que para pacificar a região. É, "o cemitério da democracia".

O livro está dividido em cinco partes e quinze capítulos. As partes são: I. Como se faz um dissidente (Sacha); II. Briga pelo Kremlin (A sucessão de Ieltsin entre Boris Berezovski e Putin e o posicionamento do Ocidente); III. Os tambores da guerra (Tchetchênia); IV. Como se faz um presidente (À moda russa). Putim emerge dos quadros da KGB; V. A volta da KGB (As transformações de Putin no Poder). Alex Goldfarb, o co-autor, em nota do autor, nos adverte: "Esta é uma história sobre a vida e a morte de um homem, mas é também uma narrativa de eventos históricos e de realizações e iniquidades de líderes mundiais". Destaca que são testemunhos seus, baseados em fatos e que "A verdade final pode ser revelada pela História".

O livro cresce em suspense ao seu final, com a narrativa do envenenamento de Sacha, em Londres. Venenos radioativos que provocam morte lenta. O último capítulo é sobre as investigações. O autor implica este assassinato às forças do Estado, por implicações óbvias. A sofisticação e o acesso ao veneno, apenas seria possível às forças do Estado. O Estado terrorista é uma das marcas do livro. Os atos maldosos e de terror, são sempre praticados pelo FSB, mas sempre recaem, ou são atribuídos aos opositores. Leitura atraente e que flui espontaneamente.

Vejamos a contracapa: "Em 2006, o dissidente russo Alexander Litvinenko (Sacha) foi envenenado e, diante das câmeras do mundo todo, anunciou que o responsável era ninguém menos que o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Morte de um dissidente é a história desse crime, típico dos tempos da KGB, e também um retrato detalhado da Rússia atual, de sua nova dinâmica política e da subida de Putin ao poder.

Quem narra o caso é o ativista (e também dissidente) Alex Goldfarb, que ajudou Litvinenko a fugir da Rússia e cujas relações com o magnata Boris Berezovski - um dos protagonistas desta intrincada trama de espionagem - resultam num ponto de vista único dos acontecimentos, com a colaboração de Marina Litvinenko, viúva do espião, o que Goldfarb oferece neste verdadeiro Thriller político é uma visão privilegiada dos motivos que levaram a esse crime". 

Mas, o que Litvinenko anunciou em seu leito de morte? Ele ditou o seguinte:"... Por isso, acho que chegou a hora de dizer uma ou duas coisas ao responsável por esta minha doença.

Talvez o senhor consiga me silenciar, mas esse silêncio tem um preço. O senhor mostrou que é tão bárbaro e implacável quanto afirmam os seus críticos mais ferozes. Mostrou que não tem respeito pela vida, nem pela liberdade, nem por nenhum valor civilizado. Mostrou-se indigno do seu cargo, indigno da confiança de homens e mulheres civilizados.

Talvez o senhor consiga silenciar um homem. Mas um urro de protesto, no mundo todo, há de reverberar em seus ouvidos, sr. Putin, pelo resto de sua vida.

Que Deus perdoe o que o senhor fez, não só a mim, como também à amada Rússia e ao seu povo" (Páginas 413-4).

Putin reagiu falando da insignificância do assassinado. E o povo russo se dividiu sobre Litvinenko, entre o herói dissidente ou o traidor da pátria russa. Essa última versão é a que predominou.