sexta-feira, 30 de maio de 2025

Geografia da fome. Josué de Castro.

Creio que este livro - Geografia da fome -, de Josué de Castro, foi um dos livros que eu mais ouvia falar ao final dos anos 1960 e ao longo de toda a década de 1970. Era o tempo da minha conclusão da Faculdade de Filosofia em Viamão e o início de minha atividade profissional em Umuarama. Mas não o li na época. O adquiri num sebo, ao longo dos anos 2000, mas somente agora é que eu  fui lê-lo. Deveria tê-lo feito na época de sua escrita.

Geografia da fome. Josué de Castro. 1908 (Recife) 1973 (Paris).

Mas quando ele foi escrito? A sua primeira versão é do ano de 1946. No entanto, a versão hoje corrente e definitiva é o da 9ª edição, do ano de 1960. O próprio autor o conta no Prefácio desta edição. Vejamos a sua fala: "Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrás. Do Brasil que era então um país tipicamente subdesenvolvido, com sua característica economia de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas as suas trágicas consequências que inspirou este ensaio" (página 47). Anteriormente, mas no mesmo prefácio, ele falava de seus objetivos:

"Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econômico.

Para se compreender bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras (Opa! naquele tempo podia), é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome" (página 39).

O que mais me chamou a atenção, já logo no início da leitura foi o entrelaçamento da fome e das carências alimentares sobre a constituição fisiológica do ser humano. Os terríveis efeitos da subnutrição e as deformações fisiológicas. Aí fui ver que não era um sociólogo quem escrevia o livro. Era sim, um médico, com o seu olhar científico. O livro pode ser visto assim como um mapa, ou documentário dos alimentos existentes nas diferentes regiões brasileiras, bem como o seu oposto, o das carências. As principais doenças da fome/subnutrição são: - beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia,, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias, entre outras. O livro contem muita pesquisa, pesquisa em tempos pioneiros, quando a bibliografia era praticamente inexistente. São os tempos da FAO, da qual ele integrou o Conselho Mundial, vindo a morar em Paris.

Mas vamos falar um pouco da estrutura do livro. Começo pelas dedicatórias: A Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil e - A memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. Aí seguem três prefácios, entre eles o do autor. Segue então o cerne do livro com sete capítulos e os apêndices e entre eles uma breve biografia e uma valiosa bibliografia. Vamos aos capítulos.

I. Introdução. Nela ele apresenta um panorama da fome pelo mundo, as vinculações entre a fome e a subnutrição e as cinco diferentes regiões, que se constituem  nos próximos capítulos.

II. Área amazônica. Os alimentos da mandioca (básica), da economia de coleta, a pimenta e a juta. Depois fala das contribuições indígenas para esta alimentação e a dos nordestinos, que para lá migraram no ciclo da borracha (1870-1910). A maior parte do capítulo é, no entanto, dedicada às deficiências alimentares e as suas consequências, analisando ainda as experiências norte-americanas, da Fordlândia e de Belterra.

III. Área do Nordeste açucareiro. Quatro séculos de devastação da floresta tropical, transformada em campos abertos para o cultivo da cana-de-açúcar. Terras férteis (massapê) e de grande variedade de frutas. A desinteligência da monocultura e dos rápidos desgastes da terra. Os holandeses e a obrigatoriedade do plantio da mandioca. E como no capítulo anterior, aqui são apresentadas as contribuições dos indígenas e dos escravizados para a alimentação. E, também, mais uma vez, as principais carências alimentares e as suas consequências.

IV. Área do sertão do Nordeste. Este é o mais longo dos capítulos. Apresenta as suas terras como sendo agrofágicas, fala das misérias das epidemias da seca e do milho e a sua miséria alimentar. Divide a região em agreste, caatinga e o alto sertão, da pouca diversidade de plantas e o domínio das cactáceas. Descreve os períodos de seca e as migrações dos retirantes. Analisa as implicações entre o fanatismo religioso e o banditismo, dos jagunços e ao mesmo tempo seus traços de bom caráter. Grande ênfase é dada à pecuária, - bovinos, caprinos e muares. Carne e leite e a riqueza alimentar.

V. As áreas de subnutrição: Centro e Sul. O autor considera esta região com deficiências mais discretas, caso de subnutrição, mais do que fome. Da região centro-oeste fala da cultura do milho, da criação de porcos e alimentos típicos, especialmente os de Minas Gerais. Fala também dos efeitos de levar a capital do país para Brasília. Por sul, ele entende tudo o que está abaixo do Rio de Janeiro. Fala dos efeitos da imigração e, de maneira especial, dos japoneses e sua dedicação ao cultivo de hortaliças. Mas a região convive com subnutrição crônica. O espaço dedicado é bem menor do que ao das outras regiões.

VI. Estudo do conjunto brasileiro. É a parte mais política do livro. Começa pela análise do espírito bandeirante e o desejo do enriquecimento fácil, do imperativo do "fique rico depressa". Fala da drenagem dos recursos públicos para as regiões sul e sudeste. Fala do subdesenvolvimento e crítica as políticas liberais que desconsideram a necessidade e o valor do planejamento econômico. O Estado é visto como indutor do desenvolvimento. Critica a direção do pêndulo em favor da política industrial e a pouca atenção à questão agrária e defende a urgência da reforma agrária. Não seria possível atingir o desenvolvimento com a permanência de uma agricultura semifeudal.

VII. Glossário. Um pequeno dicionário de hábitos que criaram os principais pratos regionais. Maravilhoso. O livro é concluído com um apêndice à oitava edição, com dados biográficos do autor e uma bibliografia, que nos fornece um belo quadro da literatura existente na época sobre este tão importante tema.

Da biografia tomo os dados finais para este post. Josué de Castro nasceu no Recife no ano de 1908 e morreu em Paris, no ano de 1973. Por que em Paris? Lá ele cumpria a sua vida de exilado político, como um condenado pelo regime civil militar instaurado no ano de 1964. Combater a fome era considerado um crime, coisa dos perigosos comunistas. Explicava as causas da fome. Sobre a sua importância deixo a parte final da biografia, na qual é citada uma reportagem do Le Figaro: "Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e duradoura".

Das orelhas de capa e contracapa tomo dois depoimentos. Da capa:"(...) um dos estudiosos mais lúcidos dos problemas do Terceiro Mundo". Rádio do Vaticano. E da contracapa: "Se foi o caloroso advogado dos pobres, Castro jamais pleiteou a piedade ou o assistencialismo. Mas a justiça é uma outra ordem no mundo. Morreu poucos dias após os acontecimentos do Chile e, sem dúvida, mais consciente do que nunca de tudo que restava por fazer. Mas porque viveu entre nós, a ignorância já não é uma desculpa. Daqui para frente nós sabemos. Como um geógrafo implacável, Josué de Castro traçou, sob nossos olhos, o mapa da fome. E o mínimo que podemos dizer dessa geografia é que ela não nos honra nem um pouco". Rémy Montour, Panorame. Simplesmente - um livro necessário.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Pró e contra. MAO. organização do texto: M. Bodino e C. Pastengo.

A China sempre foi vivo tema de meus interesses. Isso me levou a compra de livros que nem sempre foram lidos, em função de outras prioridades, especialmente a de estar em sala de aula. Um desses livros é o da coleção Pró e contra - O julgamento da história - Mao - . Edições Melhoramentos. A primeira edição do livro é de 1971 e a que tenho em mãos é de 1975. Essas datas trazem os limites do livro. Ele é valioso, na análise da Revolução chinesa, seus antecedentes e a sua consolidação. Como a centralidade desses acontecimentos gira em torno da pessoa de Mao Tse-tung, o livro, em parte é apresentado como uma biografia sua. Mao nasceu no ano de 1893 e morreu em 1976.

Pró e contra. Mao. Texto organizado por M. Bodino e C. Pastengo. Tradução: Raul de Polillo. 1975.

Digo em parte, porque ela ocupa a parte superior das páginas, enquanto que as inferiores são dedicadas à análise dos fatos históricos. O pai de Mao era militar. Sempre conseguia algumas economias de seu soldo, economias essas que lhe permitiram a condição de ser um pequeno proprietário de terras. Era extremamente autoritário. Na formação de Mao, o grande destaque vai para o seu gosto por leituras e a reflexão sobre elas. Muito cedo entrou em contato com a literatura marxista, tornando-se, inclusive, tradutor delas. Politicamente a China era um império, dominado pelas potências ocidentais, em particular pela Inglaterra. Movimentos rebeldes eram constantes.

A Revolução russa impacta profundamente a vida do país. Logo será criado o Partido Comunista Chinês, vinculado ao P.C. Soviético, o KOMINTERN, da Terceira Internacional (1919). Mao, desde logo, será um de seus militantes. Desde o início ele também será um voz dissonante. Em vez de basear a ação política na organização do proletariado, ele pretende centrar a sua organização nos pequenos camponeses, um vez que o desenvolvimento industrial ainda era muito pequeno. Ao longo dos anos 1920 surgem duas grandes forças políticas, que levarão o país a uma longa guerra civil, que começa em 1927 e termina apenas no ano de 1949. Duas grandes forças disputam o poder: O Partido Nacionalista Chinês, o Kuomintang, liderado por Chiang Kai-shek e o Partido Comunista Chinês, dentro do qual, com o tempo se afirma a liderança de Mao. A Guerra Civil se desenvolve ao longo de todos os anos de 1930. Ela é interrompida ao longo da Segunda Guerra, quando o Japão se torna o seu inimigo comum. Ao final da guerra a luta é retomada. Mao, com o seu exército de camponeses e as suas táticas de guerrilha, sai vencedor e em 1949 é proclamada a República Popular da China.

Como as forças dos derrotados são exprimidas para o mar, Chiang Kai-shek, se refugia na ilha de Formosa (Taiwan), e em 1950, com a ajuda dos Estados Unidos funda a China Nacionalista. Ela se transforma num grande problema, pois, as potências ocidentais, apenas a ela reconhecem e negociam. Tentam isolar a República Popular, emergente do longo processo revolucionário.

Isolado e merecedor de poucas atenções de Stalin, Mao praticamente está sozinho na consolidação da Revolução. Com alguma ajuda russa ele se dedica ao empreendimento. A primeira questão a ser enfrentada será a do latifúndio, poupando as pequenas propriedades. Além da expropriação ofereceu meios de assistência e já em 1951 a reforma agrária estava consolidada. Antes de começar as demais reformas houve a Guerra da Coreia (1950-1953), gastando ali enormes energias. Conta-se que Mao teria preferido empregar estas energias contra Chiang Kai-shek. Além disso enfrentou duramente os contra-revolucionários. Como a persuasão não foi suficiente, cerca de oitocentos mil proprietários foram executados. Em 1952 é lançado o Primeiro Plano Quinquenal. Inicia a politização das massas.

Em 1954 é aprovada a Nova Constituição e é feito um grande incremento à produção industrial, agrícola e comercial. Uma abertura política interna e externa é buscada. Em 1955, os países em desenvolvimento procuram um alinhamento, em Bandung. A China procura ser protagonista no cenário mundial. Enquanto isso Estados Unidos e Rússia procuram a Coexistência Pacífica. Internamente, em função do desviacionismo, uma política de retificação é ativada. Novas repressões.

Em 1959 ocorrem crises, especialmente em função de crises climáticas.  Mao se afasta da presidência, mas não do Partido. São feitas readequações. Planos anuais. Produção de alimentos ganham prioridade sobre a indústria pesada. Em 1961 a situação se estabiliza. Mas as divergências com a União Soviética aumentam. Em 1965 retoma o poder e já no ano seguinte inicia a famosa "revolução cultural", com a qual procura moldar o "homem novo", com a destruição das "superestruturas burguesa". Este novo homem será despido do egoísmo e estará totalmente voltado ao bem-comum. Isso com modificações nos sistemas de ensino, da literatura, da arte, do teatro e a modificação dos hábitos cotidianos. Os carcomas do país, ou seja, os burgueses seriam destruídos, numa guerra sem quarteis. Os nascidos depois de 1949 foram arregimentados como os protagonistas do processo.

Já no início dos anos 1970 a Revolução está consolidada. A República Popular da China é reconhecida pelos Estados Unidos e o país  integra a Organização das Nações Unidas, ocupando inclusive uma das cadeiras permanentes no Conselho de Segurança. Estavam lançadas as bases para a grande potência mundial. Qual o seu tamanho e dimensão, o futuro, em breve, o dirá. A data inaugural está aí. O ano de 1949 e o seu líder, Mao Tse-tung, também. Em breve eu atualizo. O depois dos anos 1970.

Este post foi escrito no dia 14.05.2025. Momento de grande aproximação do Brasil com a China, após visita do presidente Lula a este país.

Como o livro  A condição humana de André Malraux também fala da Guerra Civil chinesa que levou ao 1949, deixo o link da resenha.








  

   

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog.

Começo esta resenha de - Bandeirantes e Pioneiros - paralelo entre duas culturas -, de Vianna Moog, contando a forma pela qual adquiri o livro, provavelmente em meados dos anos 1970. Após me formar em filosofia, na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, da cidade de Viamão, no ano de 1968 e, já no ano seguinte, eu me estabelecia na cidade de Umuarama (PR), como professor. Enquanto meus pais estavam vivos, uma ou até duas vezes por ano, eu ia visitá-los. E eu ia de ônibus, passando por Curitiba. Assim Curitiba - Porto Alegre, via serra, estava em meu roteiro.

Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Vianna Moog. Civilização brasileira.

Bem, numa dessas viagens, havia uma parada para almoço, na cidade de Vacaria. No restaurante havia uma banca de jornais e revistas e também alguns livros. Entre os livros, estava o próprio: Bandeirantes e Pioneiros. O dinheiro era escasso, mas não tive dúvidas em adquiri-lo. Nunca fui pão-duro para a compra de livros. Coisas daquele tempo. Creio que nos dias de hoje não encontraria o livro tão à mão. O livro teve a sua primeira edição no ano de 1954 e, o exemplar que eu adquiri foi o da 9ª edição, do ano de 1969. Vianna Moog é gaúcho de São Leopoldo, nascido no ano de 1906. Veio a falecer em 1988, na cidade do Rio de Janeiro. Integrou a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 4.

A grandeza do livro começa pelo seu título e sub-título. Nada mais claro e preciso. Creio que cabe perfeitamente no imaginário de qualquer pessoa a diferença entre um bandeirante e um pioneiro, a de um explorador, de um colonizador. Essa diferença chama o sub-título: paralelo entre duas culturas. As duas culturas são as de dois países: Brasil e Estados Unidos. O livro tem um curto prefácio do autor. Nele enuncia o tema ou a grande razão de ser do livro: Como pode haver tanta diferença entre dois países, sendo os Estados Unidos, a grande potência e o Brasil sendo o que é. Quais seriam as razões para toda essa diferença. A resposta, ou as respostas estão ao longo das 361 páginas do livro

Ele está estruturado em seis capítulos, prefácio, epílogo e bibliografia. Dou os títulos dos capítulos: 1.Raça e geografia; 2. Ética e economia; 3. Conquista e colonização; 4. Imagem e símbolo; 5. Fé e símbolo; 6. Sinais dos tempos. Mais uma vez, observamos que conquista e colonização. Estas palavras também nos remetem ao título. A conquista é obra do bandeirante, da exploração predatória e a colonização é fruto do trabalho, do árduo trabalho do pioneiro. Concepções de vida totalmente diferentes. Mas há também outros fatores, bem visíveis, nos outros capítulos. Ainda no prefácio, o autor nos adverte sobre as polêmicas que o tema provoca. Mas ele diz topar o mexer nos marimbondos.

Dou em pequenos tópicos, alguns itens básicos sobre cada capítulo. Assim, no primeiro, veremos o racismo, a escravidão e a miscigenação nos USA e no Brasil, a questão da disposição das cadeias montanhosas nesses países e, também da mesma forma, os rios. Teriam esses fatores facilitado ou dificultado a ocupação do continente? São analisadas algumas experiências. O segundo capítulo, provavelmente o que mais bibliografia e estudos acumula, mostra o Brasil como um país católico e os USA como um país protestante. Protestantes calvinistas. Isso importa, pois eles tem uma visão muito particular sobre o trabalho. Trabalhar é a melhor forma de orar e engrandecer a Deus. Também são mostradas as implicações da visão calvinista com a teoria agostiniana da predestinação e desta, com a prosperidade. Há muitas referências a Max Weber.  A ética protestante e o espírito do capitalismo. Outra parte do capítulo é destinada à análise das riquezas de solo e subsolo dos dois países e suas influências, ou não, no desenvolvimento econômico.

Em conquista e colonização, o tema do terceiro capítulo, a abordagem passa pela análise dessas palavras e suas implicações. As influências religiosas e suas concepções sobre o trabalho são vistas pelos olhos de pioneiros e de bandeirantes, além do espírito prático e inventivo do pioneiro, contra o espírito aventureiro e o desejo de enriquecimento fácil e rápido do bandeirante.  Os desdobramentos dos temas desses três primeiros capítulos são o material para os outros três. No quarto capítulo são mostrados os fatores que marcaram a passagem do pioneiro para o ianque e à Guerra da Secessão. É mostrada ainda a figura de Lincoln e a sua ação na pacificação e na manutenção da unidade do país. Já do Brasil, vamos ver as primeiras experiências de colonização pela imigração no sul do país.

No quinto capítulo é observada a não permanência dos princípios pioneiros e fundadores e o seu rompimento com o plasmar da grande nação, quando no Brasil só se vislumbra pessimismo em seu futuro. A miscigenação piora as raças misturadas.  Dois personagens fantásticos são apresentados nessa visão. Babbit, de H.S. Lewis e José Dias., o personagem de Dom Casmurro, do grande Machado de Assis. Babbit representa o comerciante ianque, que se torna grande, já despido das virtudes do pioneiro. Enquanto isso, persiste em José Dias o desejo do enriquecimento fácil e sem trabalho penoso.

Em Sinais dos tempos, no sexto capítulo, mais dois personagens nos são apresentados. Lincoln pelos Estados Unidos e o Aleijadinho pelo lado brasileiro. Um belíssimo capítulo. Figuras míticas, muito veneradas. Da orelha da capa e contracapa do livro tomo mais algumas referências:

"Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, é uma primeira tentativa séria de interpretação comparativa.

O segundo capítulo, intitulado Ética e economia, é dos que mais estimulam o debate. Nele se coloca, paralelamente, o desenvolvimento de dois tipos de capitalismo: a progressão geométrica norte-americana, no quadro do protestantismo, a progressão aritmética brasileira, no quadro do catolicismo. Trabalho de erudição e pesquisa, equivale a um verdadeiro ensaio que, sozinho, justificaria prolongada e frutífera polêmica.

Polêmico, aliás, é o livro todo. Vianna Moog suscita o diálogo com a crítica, já que admite - em seu prefácio - ter abordado 'um tema essencialmente dinâmico, com um número quase ilimitado de incógnitas, todas a variarem umas em função das outras'. um tema, em suma, que 'não é propriamente dos que comportam pronunciamentos definitivos ou julgamentos isentos de erros de observação, de emoção e de interpretação'".

Um livro que, embora a sua data de publicação seja de 1954, continua sendo muito atual e que explica muito das diferenças entre os dois países. As grandes interpretações de Brasil são bem tardias e uma visão positiva de nosso país ocorre apenas a partir de Gilberto Freyre, com Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933.

Deixo ainda duas resenhas de livros abordados nas análises. Babbitt, o comerciante ianque.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E também o A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html


terça-feira, 13 de maio de 2025

ESCRAVIDÃO. Laurentino Gomes. Os três volumes. Mais - O abolicionismo e Ser escravo no Brasil.

A finalidade deste post é agrupar as três resenhas dos livros de Laurentino Gomes sobre a escravidão no Brasil. Os três livros, sem favor, se constituem na grande pesquisa brasileira sobre tema. Um esforço inaudito e sob um olhar perspicaz  e de um posicionamento de indignação diante dos horrores praticados. Os seus livros certamente se integram no esforço de, no dizer de Joaquim Nabuco, nos levar também, não apenas à abolição, mas também à sua obra. A obra da escravidão.

O livro indicado por Antônio Cândido, como o grande livro de referência. Ser escravo no Brasil.

Deixo também a resenha do livro que o grande Antônio Cândido indica como o grande livro de referência sobre o tema, o livro de Kátia de Queirós Mattoso, nascida na Grécia e professora da Universidade Federal da Bahia, Ser escravo no Brasil. 

Reúno estes posts na data de treze de maio - 2025, com a intenção de facilitar o acesso. Com certeza, a escravidão brasileira teve as suas peculiaridades, sem deixar de ter, por um único momento que seja, a sua grande característica de perversidade moral. Deixo ainda a obra de Joaquim Nabuco, um pensador monarquista e liberal, que no meu entender foi a voz mais lúcida e propositiva desta página de nossa história. A sua grande obra foi O abolicionismo.

Então vamos lá. Ao primeiro volume. Escravidão - Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/escravidao-volume-1-laurentino-gomes.html

O segundo volume. Escravidão - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/10/escravidao-volume-ii-laurentino-gomes.html

O terceiro volume. Escravidão. Da Independência do Brasil à Lei Áurea.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/09/escravidao-volume-iii-da-independencia.html

O livro Ser escravo no Brasil. Kátia de Queirós Mattoso.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/ser-escravo-no-brasil-katia-de-queiros.html

E Joaquim Nabuco com o seu O abolicionismo. O livro foi escrito no calor da campanha abolicionista.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/o-abolicionismo-1883-joaquim-nabuco_29.html

Que estes posts possam estimular novas leituras. É a minha intenção.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

LEÃO XIV. Robert Prevost. O primeiro papa Estadunidense.

A eleição de um novo papa me afeta profundamente. Mexe muito com as minhas memórias e com a minha formação. O tema não me é novo. Já passei pelas escolhas de João XXIII (outubro de 1958), Paulo VI (1963), João Paulo I (1978), João Paulo II (1978), Bento XVI (2005), Francisco (2013) e agora, em 2025, Leão XIV. Creio que a indicação mais distante é a que me traz a mais viva de todas as memórias e, também a que, seguramente, mais profundamente marcou a minha formação.

Leão XIV. Foto divulgação CNBB - Sul.

Era outubro de 1958. Eu me encontrava no seminário São João Maria Vianney, na cidade gaúcha, mais alemã do que gaúcha, de Bom Princípio. Tinha 12 anos e cursava o meu primeiro ano do ginásio. Sem entender de muita coisa, recebíamos as informações através dos padres do seminário. Chorei e rezei com toda a devoção possível. Do mesmo ano, alguns meses antes, ouvi distantes informações sobre Pelé e sobre a primeira conquista brasileira no futebol mundial. Era na Suécia.

Reconstituindo um pouco a história, nomino os papas que antecederam a João XXIII, para logo a seguir entrar nos feitos de João XXIII e também entender um dos fatores, se não o mais importante, que levou o cardeal Robert Prevost, à escolha do nome de Leão XIV. Então vamos lá. Leão XIII teve um longo pontificado de 25 anos (1878-1903). Foi sucedido por Pio X (1903-1914), Bento XV (1914-1922), Pio XI (1922-1939) e Pio XII (1939-1958). Então o escolhido foi João XXIII. Os Pios, talvez não tão pios assim, ou talvez pios demais, centravam suas preocupações mais com os aspectos doutrinários da Igreja. Foram papas que viveram os tormentosos cinquenta primeiros anos do século XX. Duas Guerras mundiais, entremeadas por crises econômicas e políticas, como a ascensão dos regimes autoritários do fascismo e do nazismo e do comunismo na União Soviética.

Leão XIII foi marcado pela publicação da Encíclica Rerum Novarum, a primeira manifestação da Igreja católica sobre os problemas surgidos com o mundo moderno, especialmente pelo surgimento da industrialização e os conflitos decorrentes no mundo do trabalho. Luta ou conciliação de classes. De que lado se posicionar. Me lembro bem, - foi uma das disciplinas que estudei, - agora já no seminário São José de Gravataí, onde terminei os meus anos de ginásio e onde fiz também o meu ensino médio. A disciplina - Doutrina Social Cristã, retornou depois no curso de filosofia, feito na Faculdade de Filosofia N.S. da Imaculada Conceição, em Viamão. 

Depois, já no exercício de professor, em Umuarama, retomei o tema em algumas aulas do ensino médio, numa disciplina chamada - estudos sociais. Guardo comigo, até hoje um livro, um livro monumental, que tomei como referências. - Cristianismo, sociedade e revolução, do padre Paul-Eugène Charbonneau. O livro é da Editora Herder. Charbonneau já examinava mais de perto as encíclicas posteriores como a Gaudium et Spes e a Populorum Progressio, ambas de Paulo VI, sem deixar de focar nos documentos originários.

Voltando às memórias. João XXIII foi Revolução Pura. Aggiornamento era a palavra de ordem. Atualizar a Igreja aos novos tempos, às grandes transformações do mundo moderno. Para não assumir sozinho tão grande responsabilidade, convocou os bispos e os reuniu em concílio, em assembleia, para deliberar, para modernizar, para aggiornar. Coisas simples, - uso de língua vernácula, missa de frente para os fieis, abertura para leigos, ecumenismo. As aberturas não pararam mais. Novas inovações foram feitas e continuarão a ser feitas. Visões abertas para a pluralidade do mundo e seus anseios.

Pelo Concílio Vaticano II o olhar também se voltou mais para a América Latina e para as suas peculiaridades, para os seus problemas. Em Puebla os bispos definiram sua opção preferencial pelos pobres, na França surgiram os padres operários. Também na América Latina surge e se afirma a Teologia da Libertação. Tudo isso me marcou profundamente em meus anos de formação inicial.

Uma palavra sobre Francisco. Apenas uma. Um atributo que lhe foi dado por Umberto Eco. "Francisco é um jesuíta paraguaio". O que isso quer dizer? Que o papa Francisco é um papa missioneiro. Quem conhece a fantástica experiência das Missões sabe da força dessa atribuição. Um papa missioneiro.

Vendo o cerimonial magnífico desses dias entre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV, me lembro de um dos últimos fatos de minha vida no seminário. Isso já ao fim da filosofia, em Viamão. Nos dizia o padre reitor, posteriormente também bispo e cardeal. -"Vocês pertencem a maior instituição do mundo e é ela que pensa por vocês". Tudo dentro da perfeita lógica da hierarquia, da hieros - archei. Da ordem ou do governo sagrado. Me familiarizei com uma linguagem mais leiga. Mas aos padres devo a minha formação. Luto pela preservação do humano. Só trago comigo agradecimentos.

Quanto a Leão XIV, assim como Francisco, o simples nome já é um indicativo de caminhos. Meu filho me apontou para um postagem de direita, referente ao tema, nas redes sociais. Ela dizia. "Duas coisas me preocupam. A TL e a proximidade com Francisco". Já para mim - afirmo bem alto. - É o que me anima, é a utopia que me faz andar, e andar em transcendência - de trans - scandere, de travessia em escalada. Em ascensão. Da leveza. Na preservação do humano e da humanidade, ao lado de Francisco, dos dois Franciscos, de Leão, dos dois Leões - dos abridores de caminhos.

E, uma pequena lembrança de sua primeira mensagem; "Permitam-me dar sequência àquela mesma bênção (De Francisco): Deus nos quer bem, Deus nos ama a todos. O mal não prevalecerá. Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, mão na mão com Deus e entre nós, sigamos adiante. Somos discípulos de Cristo. Cristo nos precede"... "SEM Medo". "A todos".

terça-feira, 6 de maio de 2025

BABBITT. Harry Sinclair Lewis. 1922. Nobel de Literatura - 1930.

 A cultura dos Estados Unidos no divã. Isso é Babbitt, o romance de Harry Sinclair Lewis, datado do ano de 1922. Babbitt é o sobrenome do comerciante George Babbitt, da fictícia cidade de Zenith. Ele é do ramo imobiliário. H.S. Lewis foi o primeiro Nobel de Literatura das Américas, laureado no ano de 1930. É ele e a sua família que estão no divã da psicanálise. Hipocrisia, falsidade, mentiras e camuflagens, humor ácido e ironia são os seus grandes ingredientes. Creio que o primeiro dado importante a observar é o ano de sua publicação, o ano de 1922. Depois da Primeira Guerra Mundial, serão os Estados Unidos que estarão no rumo da construção da maior potência mundial, ao mesmo tempo em que se prenunciam graves crises.

Babbitt. Sinclair Lewis. Abril Cultural. 1972. Tradução: Leonel Vallandro.

Observemos também os principais personagens. Em primeiro lugar os de sua família: Myra, ou a senhora Babbitt e os filhos Verona, Ted e Tinka.  Seguem-se os amigos, especialmente os do tempo de escola, com grande destaque para Paul Riesling e a esposa Zilla, os vizinhos e as instituições. Ah! As instituições! As instituições e os seus valores. O conservadorismo. O Partido Republicano e a Igreja Presbiteriana. Para além dos diversos clubes, que tem nos "cidadãos de bem" os seus sócios.

O tema é fascinante. Sempre me aguçou muita curiosidade. Dou os livros de maior destaque: O de um dos meus primeiros contatos com o tema -  Bandeirantes e Pioneiros - Paralelo entre duas culturas, de Vianna Moog, o clássico Da democracia na América, de Alexis de Tocqueville, o extraordinário Antiintelectualismo nos Estados Unidos, de Richard Hofstadter, o necessário A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber e, já que entramos no campo religioso, os muitos livros que analisam a cultura americana e a sua visão de celebração de uma Nova Aliança e suas implicações, que resultaram nas tais - teologias da prosperidade. Não poderia deixar de citar aqui a fantástica e incomparável obra de Philip Roth.

Mas, a obra em análise é Babbitt, de H. S. Lewis (1885-1951). Após as primeiras manifestações vamos a estrutura da obra. O livro que eu li é a da coleção Os Imortais da Literatura Universal. A obra tem 441 páginas, divididas entre 34 capítulos, todos eles divididos em pequenos tópicos, sem títulos. Já vimos que o tempo do livro é dos antecedentes da década de 1920 e o cenário é o da cidade de Zenith, uma fictícia cidade média dos Estados Unidos, com uma população média em torno de 350.000 habitantes, rumo a um progresso sem par, aspirando a figurar entre as maiores cidades do país. Babbitt é um comerciante do ramo imobiliário, lidando com seguros, aluguéis e compra e venda. Ele vive confortavelmente, com um padrão de vida de classe média alta. A sua rotina é atordoante e agradar a pessoas intoleráveis é o seu ofício. Já que nada produz, ele praticamente vive de relações públicas das quais busca tirar proveito. Isso o obriga a transgressões alheias à sua vontade. E, lembrando, é tempo de Lei Seca. Bebidas obrigam a mais e novas transgressões. 

Babbitt é absolutamente conservador e fervoroso combatente do comunismo. Pertence ao casmurro Partido Republicano e à puritana igreja presbiteriana. Este conservadorismo emoldura sua vida, seus hábitos e práticas diárias. Enquanto frequenta regularmente as instituições e pratica a ética prescrita pelas mesmas, ele obtém clientes preferenciais e avança em seus negócios. O seu combate ao comunismo, por óbvio, o opõe, a todas as lutas dos trabalhadores pelos direitos mais fundamentais. Por óbvio, também prega a conciliação de classes.

A convivência e os dramas vividos pelo seu amigo Paul afetam profundamente a sua vida. O casal vive uma grave crise conjugal, que termina em tiros e prisão. E Babbitt passa a viver também ele a sua crise, a crise da monotonia do casamente monogâmico. Começa a duvidar de seus valores e relaxa na sua prática. A economia passa a preceder a ética. Frequenta a casa de uma amiga, Tanis e frequenta um novo clube, denominado de A Turma. Ali se sente bem, ao contrário do que ocorria em casa e no escritório. Até "teve horror à obrigação de lhe mostrar afeto", referindo-se à sua esposa, a senhora Babbitt. A presença dos rigores da ética ou da moral em que fora educado o levam a arrependimentos e promessas, sempre descumpridas quinze minutos depois de feitas. A sua vida passa a ser observada e a sua presença ou companhia, evitada. Até os negócios que exigiam influência de indicações começaram a minguar.

A vida, ou os negócios da vida passaram pela exigência de uma volta e de reconciliações. Volta a sua antiga vida de conformidades.  Após um internamento e cirurgia da esposa, o antigo George estará de volta à cena da vida de Zenith. Passa a frequentar a Liga dos Bons Cidadãos, uma liga daquilo que hoje conhecemos sob o nome de "Cidadãos de Bem", ao menos assim autodenominados. Volta a ser um ardoroso combatente do comunismo. Volta a sua vida de hipocrisia plena. Vejamos o parágrafo final em que o vemos num diálogo com Ted, o filho:

"Bem... - Babbitt atravessou a sala devagar, pesadamente, com o caminhar um tanto envelhecido. - Sempre quis ver-te formado. - Tornou a cruzar a peça meditativamente. - Mas eu nunca... Pelo amor de Deus, não vás repetir isto à tua mãe., porque é capaz de me arrancar o pouco de cabelo que ainda me resta, mas o fato é que em toda a minha vida nunca fiz nada do que desejava fazer! Fui simplesmente vivendo como me permitiam. Calculo que, de cem quilômetros que podia ter andado, não avancei mais que meio centímetro. Bem, talvez tu vás mais longe.  Não sei. Mas sinto uma espécie de satisfação furtiva por ver que tu sabias o que querias, e o fizeste. Essa gente vai procurar intimidar-te. Manda-os para o inferno! Eu te apoiarei. Aceita o emprego na fábrica, se quiseres. Não tenhas medo da família. Não, nem de toda Zenith. Nem de ti mesmo, como eu tive. Avante meu filho! O mundo é teu!

Os dois Babbitt, pai e filho, entraram abraçados na sala e fizeram frente à família ameaçadora". Uma confissão da prisão em que vivera, prisão das inúmeras convenções às quais sempre se submetera. Um grito em busca de um pouco de autonomia.

Mas vamos a outras considerações. Tomo como guia o livro de notas biográficas que acompanha a coleção. Vejamos a referência a Babbitt: "Utilizando-se de uma cidadezinha, Lewis denuncia o modo de vida de um lugarejo de classe média da América provinciana. A sátira presente no romance rompe com a ficção americana anterior, que sempre procurou descrever a vida de uma pequena cidade como boa e inocente, se comparada às grande metrópoles, além de supervalorizar o papel da classe média.

Lewis costumava citar o ensaísta Thoreau (1817-1862) como influência permanente em toda a sua obra. [...] Assim ele fez para escrever seu próximo romance. Viveu algum tempo em Cincinnati, Ohio, onde pode observar o comportamento dos habitantes, suas expressões mais comuns e sua gíria. Todo esse trabalho de 'laboratório' resultou em Babbitt, cuja ação se passa na cidade fictícia de Zenith. Em Babbitt, exceto os primeiros sete capítulos, onde ele descreve vinte e quatro horas - 'de toque de despertador a toque de despertador' - da vida de sua personagem, todos os outros restantes constituem uma sociologia da classe média americana. Cada um desses capítulos trata de um assunto específico, como política, prazeres, vida em clubes, a barbearia, o botequim. (Também uma greve).

Babbitt retrata o mundo do pequeno homem de negócios. Sendo comerciante, ele não é um produtor; portanto, seu sucesso financeiro depende de um bom trabalho de relações públicas. O livro é uma sátira ao grupo dos mesquinhos e ridículos pequenos comerciantes. O protagonista não consegue romper o círculo que o envolve, porque não consegue imaginar uma vida diferente do seu mundo corrupto e competitivo. Quando Babbitt denuncia contradições ou divergências do grupo, faz isso apenas para continuar nele. Na verdade, ele age em função das relações públicas, e não das relações humanas.

Publicado em 1922, Babbitt despertou uma onda de polêmicas que o escritor não poderia ter imaginado. Em algumas regiões, Lewis era visto como um 'deformador da vida americana'. Todos os jornais reservavam espaço para comentar o livro. O New York Times aprovava Babbitt, ao mesmo tempo que tentava confortar os habitantes do meio-oeste, dizendo que os Babbitts poderiam ser encontrados em qualquer lugar, e que o escritor apenas se teria inspirado no meio-oeste porque essa região lhe eram bem mais familiar.

As críticas variavam muito e iam de extremo a extemo. Afinal, por suas origens, Lewis era também um Babbitt. E, assim, o sucesso do romance poderia ser atribuído ao fato de que grande parte do público via no escritor um aliado e não um inimigo. Inclusive, muitos dos ótimos comentários que a obra recebeu partiram de jornais de pequenas cidades - semelhantes a Zenith do romance - que se sentiam orgulhosas de terem servido de modelo a um livro.

Lewis divertia-se com todas as controvérsias. As suas mãos chegavam cartas de conteúdos diversos. Numa delas, o escritor Somerset Maugham (1874-1965) dizia: 'Nunca um certo tipo ou uma certa classe tinham sido delineados com tanto êxito; a objetividade tão fria e impiedosa com a qual você escreveu causa uma sensação muito estranha; a não ser que as pessoas não se reconheçam nele, devo dizer que você será um dos homens mais desamados da América. Li Babbitt com as mãos tensas, com o pensamento de que eu me sentiria muito intimidado se as encontrasse na vida real.

No entanto, a maioria dos europeus passou a julgar a nação americana composta somente por Babbitts. Revoltados, os americanos diziam que o escritor não apresentava um panorama mas uma caricatura da América. Além do mais, ele não era um sociólogo, e sim um jornalista malicioso.

Mas nada adiantava agora: Babbitt havia-se transformado num arquétipo, tal como acontecera com Dom Quixote, Hamlet ou Fausto, e iria permanecer como o tipo representativo não só de uma classe, mas também de uma nação e de uma época". Vejam toda a importância deste livro.

E ainda, uma observação perspicaz. Estou a reler Bandeirantes e pioneiros, de Viana Moog. Quando ele fala dos Estados Unidos, dos Estados Unidos após a Primeira Guerra Mundial, ele fala das mudanças ocorridas no país: "A América de Wilson cede lugar à América de Coolidge, Calvin Coolidge. Agora a América não está particularmente interessada nos que pensam construir melhores mundos, mas nos que anunciam a possibilidade de dois carros na garagem e outros confortos consideráveis que suas linhas de montagem vieram possibilitar. O símbolo da América já não é o Tio Sam. O símbolo da América é Babbitt, um novo tipo engendrado pelo ianque para substituir o símbolo do pioneiro". Página 224.