terça-feira, 30 de junho de 2015

O cuidado de si, do mundo e do outro. Leonardo Boff.

Ao saber que Leonardo Boff faria uma palestra em Curitiba, numa promoção do departamento de pós graduação do curso de psicologia da Universidade Federal do Paraná, imediatamente procedi a minha inscrição. A fala ocorreria no dia 24 de junho. Cheguei cedo, antes mesmo do palestrante, dando assim tempo para ver o profeta, tanto em sua chegada, quanto em seu anúncio pela fala. O tema seria: Cuidado de si, do mundo e do outro. Já tinha lido e utilizado inúmeras vezes em sala de aula o seu livro Saber cuidar.
O profeta chegando. No rosto o sorriso da esperança.

As primeiras palavras fizeram menção ao papa Francisco e a sua primeira encíclica, Laudato si - Louvado seja, - sobre o cuidado da casa comum de todos nós. Louvou a preocupação do papa com a crise sistêmica que a tudo e a todos atinge, desde a vida humana, bem como a do planeta. Elogiou ainda, a incorporação dos princípios da Carta da Terra na encíclica como também o seu convite para um novo começo, diante da angústia profunda em que vive a humanidade, que psicanalista algum consegue curar. Essa angústia é gerada pelo desequilíbrio do sistema planetário, em que se perdeu a referência central do homem como humus, isto é, o homem como terra fértil.

A fala propriamente dita foi dividida em duas partes. Na primeira fez a denúncia e na segunda partiu para o anúncio. Na parte da denúncia fez a crítica ao paradigma existente, que se construiu junto com a modernidade, com uma visão fragmentada de mundo, fruto da ciência e a sua centralidade no homem, como um indivíduo, em prejuízo de uma visão cósmica do universo em que o homem e terra constituem uma grande unidade. No velho paradigma as bondades da terra (designação indígena) atendiam primeiro aos interesses do mercado para, apenas depois, atender as necessidades da vida, da vida dos seres humanos (daí a designação capitalista para as benesses da terra, de recursos naturais).
O profeta anunciando. Os valores de um novo paradigma.


Ainda na fase de denúncia de sua fala, anunciou a fase terminal deste paradigma, que entrou em  fase de agonia com a crise mundial do sistema capitalista em 2008. A crise se dá em função da acumulação ilimitada, em que a exploração ultrapassou todos os seus limites atingindo a fase em que o dinheiro gera dinheiro, ou seja, a fase da exploração financeira do sistema capitalista. É o tempo em que todos os fluxos da economia são controlados e comandados por apenas 723 pessoas, numa acumulação sem precedentes. É o tempo que Marx previu, em seu Miséria da Filosofia, como o tempo da grande corrupção, o tempo em que tudo será mercadoria e, como mercadoria, tudo passará a ter o seu preço. Tempo caracterizado por Karl Polanyi, em seu livro A grande transformação, como aquele tempo em que vivemos, não apenas uma economia de mercado, mas também uma sociedade de mercado, em que todos os valores éticos são por ele pautados.
A confirmação da minha inscrição para a palestra. Cuidado de si, do mundo e do outro.


A denúncia prosseguiu com a afirmação de que a ânsia e a pressa em transformar os recursos naturais, em mercadoria, não dá à terra o seu devido tempo, o seu tempo de recomposição. Os seus elementos vitais, os seus nutrientes básicos já estão mortalmente comprometidos. A base química e física da vida está em destruição e corremos o grave perigo de chegar tarde.

Na segunda parte da fala, o anúncio. O anúncio do novo paradigma, o paradigma do mundo entregue ao CUIDADO, que se expressa pela fuga da visão racional e cientificista de mundo, para contemplar a sua parte subjetiva, a relação amorosa, a carícia essencial, a finesse, a que se referia Pascal, ainda nos primórdios do estabelecimento dos parâmetros da ciência como diretriz de uma visão de mundo. Citou também Heidegger que em seu Ser e Tempo, anuncia o cuidado como a dimensão essencial do ser humano, o cuidado visto como preocupação com o humano. Cuidado que, já nos tempos dos sermões do padre Antônio Vieira adquirira um significado dramático, de que, quem tem o cuidado, quem tem a preocupação no horizonte, não dorme.
O extraordinário livro. Saber cuidar - Ética do humano - compaixão pela terra.



Também a palavra trabalho mereceu uma atenção especial. A ele foi creditado todo o processo civilizatório da humanidade, com ênfase no caráter positivo das relações humanas e que estas jamais devem ser marcadas pelo caráter de destruição. Também elas devem ser submetidas ao imperativo do cuidado. Pelo trabalho devemos construir a organização da casa, como ethos, como morada humana. E a morada humana hoje, é maior do que a casa singular que habitamos, para que ela seja vista em sua dimensão planetária. Como seria a organização das relações nesta casa sob as orientações do Cuidado? Como resposta citou Dalai Lama, quando ele aconselha tratar o outro como uma criança, para lhe oferecer todo o cuidado.
Os Franciscos. Forte simbologia na escolha do nome Francisco pelo bispo de Roma.


Para vivenciar este novo paradigma precisamos, socraticamente, nos desentranhar dos velhos paradigmas e permitir que as dimensões mais profundas, que estão dentro nós, possam aflorar. As dimensões de humanidade, de solidariedade, de sensibilidade. Nos deixou ainda duas imagens finais. A primeira negativa. Um palhaço, que de frente para o público, enxergava o incêndio que começou a se propagar pelos fundos do teatro e que não podia ser visto pelo público. Quanto mais o palhaço se esforçava para alertar o público, mais o povo ria e o aplaudia. Podemos chegar atrasados com o cuidado da nossa casa. O incêndio já poderá ter dimensões incontroláveis. A segunda, positiva. A vida não é material nem espiritual, a vida é eterna. Passou a citar o livro da Sabedoria, em que se atribui ao Criador, a criação de todas as coisas e o grande amor à vida. E que este Deus criador, não irá permitir que a sua obra, a humanidade, seja destruída.
Ao final do encontro, uma sessão de autógrafos.


Para terminar reiterou a sua certeza da superação, da superação do velho paradigma e da afirmação do paradigma do CUIDADO, pois daremos a volta por cima e viveremos irradiando e celebrando os desígnios do Criador. Dedico este post aos meus netos, Theo, Mateus e Miguel, que recentemente vieram ao mundo para alegrar as nossas vidas. Que a sua formação se dê sob os princípios do novo paradigma, Que recebam  e distribuam muito cuidado ao longo de suas vidas.



segunda-feira, 22 de junho de 2015

O Guardador de rebanhos. Alberto Caeiro.

Recebi, via e-mail, este poema do Fernando Pessoa, ou seria de Alberto Caeiro, do meu colega e amigo Rodolfo Prates. Isso foi em janeiro. Retomo-o agora, depois de uma incursão na vida do poeta e também prosador. Não é fácil ler Fernando Pessoa. Seu livro Livro do desassossego, são as suas confissões e como ele próprio diz, a sua autobiografia sem fatos. 559 páginas de existencialismo, de pessimismo puro diante da vida.

O presente poema está no livro Poesia completa de Alberto Caeiro. O poema é bem mais longo. O poema que o Rodolfo me mandou, veio trabalhado. Foi elaborada uma síntese, que por sinal foi muito bem feita. Sempre questionamentos profundos. Sem demora, segue o poema, da forma como o recebi.

Poesia completa. Já na capa a alusão ao guardador de rebanhos.

O Guardador de rebanhos.

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?





quinta-feira, 18 de junho de 2015

A meia garrafa de vinho, a fraternidade e Fernando Pessoa - ou Bernardo Soares.

Poucas vezes me atrevi ler Fernando Pessoa. Eu não tive formação para a leitura, para a literatura, e para a poesia então, nem se fala. Agora, administrando o meu tempo livre, faço as escolhas mais difíceis. Passei por um mundo de descobertas, sendo a principal, a de que a literatura é o ser humano em toda a sua complexidade. Poderia citar uma infinidade de autores, mas vou citar apenas os mais recentes. Philip Roth, Raduan Nassar, Gracialiano Ramos, Guimarães Rosa, Kafka... Na minha formação básica, era catequese e latim, exatamente nessa ordem.
Que maravilha. Livro do desassossego. Provocações de tirar o sossego.

Para entrar no mundo de Fernando Pessoa e por achar a compreensão da prosa mais fácil do que a poesia, resolvi começar por aquela, com o Livro do desassossego. Tão difícil quanto, ou mais ainda. E, seguramente, tão poético quanto. É uma espécie de autobiografia. São as suas confissões e que na voz de Bernardo Soares, o narrador, assim o descreve: "Invejo - mas não sei se invejo - aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho a dizer" (12, pág.50). Mas como tem a dizer!.

Aos leitores, do blog, poucos evidentemente, me permito dar uma tarefa. Afinal de contas, conservo o espírito de professor. Procurem o verbete existencialismo. Se você não se satisfez com o encontrado, esqueça Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, ou mesmo Sócrates e leia as 559 paginas do Livro do desassossego, que assim você nunca mais terá dúvidas com relação ao termo. É uma explosão de sentimentos de uma vida...! E de acréscimo, você terá penetrado em todo um mundo de filosofia.
Fernando Pessoa em Lisboa. Trabalhava e morava na Baixa.


Mas a tarefa que hoje me propus é muito simples. Vou me limitar a transcrever o que o organizador do livro (Richard Zenith), colocou como sendo de número 24, à pagina 57. Veja a profundidade de um, digamos, mero devaneio. Tomar uma garrafa de vinho, apenas pela metade. Com isso também pretendo homenagear os meus amigos apreciadores dessa maravilhosa bebida. Mas vejamos a rara sensibilidade e, para além do existencialismo, também o humanismo.
Este é alentejano. Quando o encontrares pela metade, já sabes o que fazer!

"Hoje,como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse: 'Até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras'.

Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em maior intimidade, impropriamente dita...

A fraternidade tem subtilezas.

Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, um César ou Napoleão, ou Lenine, e o chefe socialista da aldeia - não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho".
O meu próximo atrevimento. É nesse livro que está  O guardador de rebanhos.

Ah! Como é possível que exista gente que não goste de ler. Eu tenho para mim, que é porque nunca tentou começar.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Operário em constução. Vinícius de Moraes.

Desde 1956 um poema para formar a consciência. A consciência de classe. O Brasil teve toda uma geração de intelectuais marxistas. O trabalho como práxis.
 O ser humano e a sua construção pelo trabalho. 

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
 

Era ele que erguia casas
onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
ele subia com as casas
que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
de sua grande missão:
não sabia, por exemplo,
que a casa de um homem é um templo,
um templo sem religião.
Como tampouco sabia
que a casa que ele fazia, sendo a sua liberdade,
era a sua escravidão.

De fato, como podia
um operário em construção
compreender por que um tijolo
valia mais que um pão?
Tijolos ele empilhava
com pá, cimento e esquadria.
Quanto ao pão ele comia.
Mas fosse comer tijolo...
E assim o operário ia,
com suor e com cimento,
erguendo uma casa aqui,
adiante um apartamento;
além uma igreja, à frente
um quartel e uma prisão:
prisão de que sofreria
se não fosse eventualmente
um operário em construção.
Vinícius de Moraes (1913- 1980). Bom na poesia, bom na música.


Mas ele desconhecia
esse fato extraordinário:
que o operário faz a coisa
e a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia,
à mesa, ao cortar o pão,
o operário foi tomado
de uma súbita emoção
ao constatar assombrado
que tudo naquela mesa
- garrafa, prato, facão -
era ele quem os fazia!
Ele, um humilde operário,
um operário em construção.

Olhou em torno: gamela,
banco, enxerga, caldeirão,
vidro, parede, janela,
casa, cidade, nação!
Tudo, o que existia
era ele quem fazia!
Ele, um humilde operário
um operário que sabia
exercer a profissão.
Marx, o inspirador.


Ah! homens de pensamento, não sabeis nunca o quanto
aquele humilde operário
soube naquele momento!
Naquela casa vazia
que ele mesmo levantara,
um mundo novo nascia
de que sequer suspeitava.
O operário emocionado
olhou sua própria mão
sua rude mão de operário
de operário em construção.
E olhando bem para ela
 teve um segundo a impressão
de que não havia no mundo
coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
desse instante solitário
que, tal sua construção,
cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo,
em largo e no coração.
E como tudo que cresce,
ele não cresceu em vão.
Pois além do que sabia
- exercer a profissão -
 o operário adquiriu
uma nova dimensão:
a dimensão da poesia.
A famosa frase final do Manifesto, no original. Proletarier allerländer vereinigt euch!

E um fato novo se viu
que a todos admirava:
o que o operário dizia
outro operário escutava.
E foi assim que o operário
do edifício em construção
que sempre dizia sim
começou a dizer NÃO.
E aprendeu a notar coisas
a que não dava atenção:
notou que sua marmita
era o prato do patrão,
que sua cerveja preta
era o uísque do patrão,
que o seu macacão de zuarte
era o terno do patrão,
que o casebre onde morava
era a mansão do patrão,
que seus pés andarilhos
eram as rodas do patrão,
que sua imensa fadiga
era amiga do patrão.
E o operário disse: NÃO!
E o operário fez-se forte
na sua resolução.

Como era de se esperar,
as bocas da delação
começaram a dizer coisas
aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
nenhuma preocupação.
"Convençam-no do contrário"
disse ele sobre o operário.
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
ao sair da construção,
viu-se súbito cercado
dos homens da delação.
E sofreu, por destinado,
sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido,
teve seu braço quebrado,
mas quando foi perguntado
o operário disse: NÃO!
Em 1995, ganhei dos sindicalistas alemães da DGB. esta preciosidade. Uma coleção de cartões sobre o primeiro de maio. O dia mundial da classe trabalhadora.


Em vão sofrera o operário
sua primeira agressão.
Muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém por imprescindível
ao edifício em construção,
seu trabalho prosseguia
e todo o seu sofrimento
misturava-se ao cimento
da construção que crescia.

Sentindo que a violência
não dobraria o operário,
um dia tentou o patrão
dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
ao alto da construção
e num momento de tempo
mostrou-lhe toda a região.
E apontando-a ao operário
fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
e a sua satisfação
porque a mim me foi entregue
e dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer,
dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
será teu se me adorares.
E, ainda mais, se abandonares
o que te faz dizer não.
Viena, 1890. Um dos primeiros cartões.


Disse, e fitou o operário
que olhava e refletia.
Mas o que via o operário
o patrão nunca veria.
O operário via as casas
e dentro das estruturas
via coisas, objetos,
via tudo o que fazia
o lucro do patrão.
E em cada coisa que via
misteriosamente havia
a marca de sua mão.
E o operário disse: NÃO!
Loucura! gritou o patrão.
Não vês o que te dou eu?
- Mentira disse o operário.
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
um silêncio de prisão
um silêncio povoado
de pedidos de perdão
como o medo em solidão
um silêncio de torturas
e gritos de maldição
um silêncio de fraturas
a se arrastarem no chão.

E o operário ouviu a voz
de todos os seus irmãos.
Os seus irmãos que morreram
por outros que viverão.
Uma esperança sincera
cresceu no seu coração
e dentro da tarde mansa
agigantou-se a razão
de um homem pobre e esquecido.
Razão porém que fizera em operário construído
o operário em construção".



segunda-feira, 15 de junho de 2015

Devassos por natureza. Provocações sobre o sexo e a condição humana. Jesse Bering.

O acesso que eu tive a esse livro ocorreu por dois motivos. Em primeiro lugar, uma promoção da Jorge Zahar, repito, da Zahar, com preços realmente incríveis e, em segundo lugar, fui movido pela curiosidade. O título é extremamente provocativo e aguçador. Adoro a palavra provocação - de pro e vocare, isto é, chamar para... Provocar é uma das palavras fundamentais para o estudo, para a filosofia, para a ciência. Ao lê-lo tive uma rara surpresa e se confirmou uma das frases de sua contracapa: "Um livro acessível, provocador e cheio de vida. Para todos os interessados em saber o que significa ser humano".
O livro de Jesse Bering. Uma visão científica da sexualidade e suas implicações humanas.


O livro é agradabilíssimo de ser lido. Em momento algum ele abre mão do rigor científico. Apenas torna o linguajar mais popular, sem o extremo rigor da pesquisa científica, pesquisa essa presente da primeira à última página do livro, a de número 300. Também está presente o humor, a ironia e a satírica irreverência, já a partir dos títulos ou das perguntas que formula. Em outras partes o livro assume um caráter absolutamente sério e austero, o que ocorre, especialmente, quando trata dos estudos sobre o suicídio. 

Quem é o autor desse Livro. Jesse Bering é apresentado, na orelha do livro, como doutor em psicologia, tendo sido diretor do Instituto de Cognição e Cultura na Universidade Queen's, em Belfast e professor na Universidade de Arkansas. É um cidadão nascido nos Estados Unidos. É assíduo colaborador de revistas científicas, onde comparece com os seus ensaios, dos quais 33 comparecem nesse livro.
Jesse Bering se define como "um cientista psicológico gay, ateu, com uma queda por teorias evolucionárias".


Ele se autodefine como "um cientista psicológico gay, ateu, com uma queda por teorias evolucionárias". Muito provocador. Na orelha do livro temos mais uma informação adicional. "Vive em Ithaca, no estado de Nova York, com seu parceiro, dois terriers hiperativos e um gato com problemas de peso". Isso significa que ele não tem uma visão religiosa de mundo (desculpem a obviedade), ignora a ditadura heteronormativa e em sua visão científica, segue os padrões do evolucionismo darwiniano. Esta visão me foi particularmente interessante.

O livro inicia por um "um convite à impropriedade", à guisa de introdução, seguida de oito partes, cada uma com uns três ou quatro ensaios, num total, como já vimos, de 33. Os temas estão distribuídos nas oito partes, sendo os seguintes: Parte I. "Uma visão darwiniana do que pende", onde aborda questões como o por que de eles (os testículos) estarem pendentes, sobre a autofelação, sobre o formato do pênis, sobre a ejaculação precoce e sobre as propriedades medicinais do sêmen. Como podem ver, temas bem intrigantes.
 Como o livro não traz ilustrações, busquei algumas. Lilith, a anti Eva. A insubmissão feminina.

Na parte II, que tem por título "Corpos generosos" aborda a questão dos pelos pubianos, a história natural do canibalismo e a afecção da pela humana com a acne. Já na parte III, "Mentes indecorosas" os temas tratados se referem ao despudoramento da mente, sobre o como o cérebro adquiriu nádegas, sobre o sonambulismo e as ereções noturnas e sobre a masturbação, que comprova ser muito praticada, e de ser uma exclusividade dos humanos. 

A parte IV, "Estranhos companheiros de cama" os temas abordados são os pedófilos, hebéfilos e efebófilos (não se preocupe, ele explica), a zoofilia, sobre os assexuados, a podofilia e sobre as bonecas de borracha. Já na parte V, "A noite das damas" os temas versam sobre a ejaculação feminina, sobre as fag hags (ele também explica), sobre o orgasmo feminino e a agressividade das adolescentes. 
Um psicólogo com tendências evolucionistas.

A parte VI, " a gaia ciência, cada vez mais gay: há algo estranho aqui" trata da dificuldade de orientação espacial dos gays, onde aconselha nunca pedir informações a um gay, sobre a homofobia como desejo reprimido, particularmente interessante, sobre o poliamor, sobre os cientistas bem dotados e se o seu filho é um "pré-homossexual". A parte VII, "Como diz a Bíblia", prova que os cristãos são bons, mas só aos domingos, sobre os coelinhos de deus e sobre as cerimônias fúnebres.

O último capítulo, o VIII, "Rumo às profundezas: trabalho existencial em laboratório", o tema tabu é o suicídio. Nele encontramos dois ensaios sobre o ser suicida, sobre o livre arbítrio e sobre a hilaridade no mundo animal. Por ter lido muito pouco sobre o suicídio, achei muito interessante a abordagem do tema, especialmente o segundo ensaio, no qual descreve as características do suicida. Um mundo de descobertas.

A minha experiência com o livro me diz que não mudei a minha maneira de ser (continuo um judaico cristão ocidental heterossexual), mas que aprendi muito, muito mesmo, e não tenho vergonha de dizer. A vergonha deveria ser exatamente da cultura que tenta ocultar tanto sobre o humano, sobre o demasiadamente humano, e termino reafirmando o escrito na contracapa do livro. "Um livro acessível, provocador e cheio de vida. Para todos os interessados em saber o que significa ser humano".
Outro símbolo que busquei. Símbolos masculinos e femininos juntos.

Um livro especial para quem trabalha a diretriz de número dez do Plano Nacional de Educação, e para os que militam e estudam as relações homoafetivas. Acima de tudo um livro muito sério, apesar do humor, da ironia e da sátira. Quero ainda apresentar dois destaques finais. O primeiro para você ver o quanto você é normal e o segundo é para os homofóbicos, que estão se revelando novamente em plenitude, quando estão sendo elaborados os Planos Municipais e Estaduais de Educação, quando é abordada a questão da diversidade, na diretriz de nº dez. São duas frases.

O primeiro destaque: "...No último incidente (a sua quarta prisão), ele havia matado cruelmente uma égua por ciúmes porque pensava que ela estava dando bola para um certo garanhão. (E você pensava que tinha problemas)". Observem que o entre parêntesis é do autor. O segundo destaque: "Se há uma coisa que aprendi sobre a natureza humana, é que sempre que a sociedade esbraveja sobre um demônio ou outro, ela provavelmente acabou de surpreender uma visão especialmente alarmante de si mesma no espelho". Que os Malafaias e Felicianos  se expliquem.




quinta-feira, 11 de junho de 2015

Um rio chamado tempo - Uma casa chamada terra. Mia Couto.

Ler Mia Couto é sempre desafiador. A sua leitura não é uma tarefa tão simples e exige uma atenção redobrada. A sua literatura, seja no conto, seja no romance vai sempre muito além da narrativa. A sua linguagem é poética, mística e envolvida de mistérios. Cada frase sua é uma provocação, a exigir reflexão. É impressionante a sua capacidade de trabalhar com as palavras e lhes criar significados. Sempre é um grande ato de prazer, a sua leitura.
O espetacular romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Mia Couto.

Desta vez a leitura recaiu sobre um romance. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Já no título o significado e as suas vinculações, o rio com o tempo e a terra como a casa ou a moradia. Para lê-lo é fundamental saber que Mia Couto é natural de Moçambique, pois, os temas africanos estão onipresentes em sua obra. Assim ocorre com suas raízes e tradições, lutas e frustrações, bem como as inquietações futuras. É um escritor comprometido com a sua origem tempo/espaço e preocupado com o futuro de seu povo, numa perspectiva coletiva. Hoje é um ativista da questão ambiental. Nada melhor do que o título do livro para explicar a sua militante preocupação.

"Meu neto, 
Agora sabe onde me visitar. Já não necessito de lhe escrever por caligrafada palavra. Falaremos aqui, nesta sombra onde ganho dimensão, corpo renascendo em outro corpo. Você, meu neto, cumpriu o ciclo das visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse rio uns chamam de vida". Esse texto explicativo você encontra ao final do livro, quando as páginas já rolaram até o último capítulo, o de número 22. Aí você encontra ainda outras explicações.

"Lhe contei tudo sobre a sua família, desfiei histórias, desfiz o laço da mentira. Agora, já não arrisco ser emboscado por segredo. O caçador lança fogo no capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o passado. O tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás de mim, sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos já revirados". E um pouco mais adiante, ainda no mesmo capítulo final, o desvendar por completo, junto com o que você já colheu pelo caminho.
Mio Couto, o grande escritor moçambicano.

"Chamo-o assim de "meu neto" mas é uma fraqueza de expressão. Você é meu filho. Meu maior filho pois nasceu de um amor sem medida. Por isso, não o escolhi para cerimoniar a minha passagem para a outra margem. Você se escolheu sozinho, a vida escreveu  no seu nome o meu próprio nome". Efetivamente, o romance gira em torno de dois personagens, ambos chamados de Mariano. O avô e o neto. A ambientação da história se dá na ilha Luar do Chão. O enredo envolve o tempo da família do avô Mariano, a quem o neto, depois de longa ausência da ilha, vem para a realização de seu funeral.
Mia Couto em minha casa.


A história também envolve o seu pai, Fulano Malta e a sua mãe, Mariavilhosa. O pai fora um guerreiro revolucionário. Lutara pela independência e estava decepcionado A mãe se fez água, suicidando-se no rio. Envolve ainda a avó Dulcineusa e os tios Abstinêncio, Ultímio e a tia Admirança. Destaque especial é dado ao tio Ultímio. Uma frase o sintetiza, "uns possuem, outros são possuídos pelo dinheiro". Ou ainda: "Porque esse meu tio, sua mulher e seus filhos se guiavam por pressas e cobiças. Queriam muito e depressa". Ultímio se rendera à ganância. Ao seu redor só grassavam desgraças e desavenças na família. Tudo queria comprar.

A fortuna de Ultímio é envolta em mistério, especialmente a origem de sua fortuna. Um pó branco que envenenara a terra. A terra que se transforma em rocha dura e se fecha como sepultura do avô Mariano. As chuvas também haviam cessado e o Dr. Amílcar Mascarenha, o único médico do local, não lhe prescreve o óbito. O mistério se avoluma com as misteriosas cartas que o dito defunto avô escreve para o neto, que na verdade eram ditadas pelo avô para o neto que as caligrafava. Estas cartas é que vão revelando a verdadeira história. Avô Mariano se recusava a partir antes da mulher de número cem e do desvendar de toda a história, cujo final, em essência, já transcrevemos. O resto está escondido nas curvas do rio e nos cantos da casa.
Frase de epígrafe do último capítulo.


Além da beleza e da provocação de cada frase, o livro é também uma bela história de amor. Esta ganha força, como podemos ver na simbolização de uma relação amorosa entre o neto e Nyembeti, "Não há quente como o da boca. Não há incêndio que chegue à febre dos corpos se amando", e quando descobre que Nyembete era a terra de Luar do Chão, a sua ilha natal. E... na minha linha linha do tempo futuro descortino novos livros e novas leituras de Mia Couto, o grande nome da literatura africana e da língua portuguesa.

sábado, 6 de junho de 2015

O Irmão Alemão. Chico Buarque.

Assombros familiares já fizeram muita literatura. E que literatura! De primeiríssima qualidade. Estamos diante de mais uma situação dessas. Chico Buarque de Holanda escreve sobre a sua família em O irmão alemão. O livro é uma fantástica mistura de realidade e ficção, de memória e de imaginação. Os dados, tanto os da memória, quanto os da ficção são maravilhosos. Chico nos dá uma oportunidade de penetrar no seu universo familiar, quando se lança em busca de seu irmão alemão. A busca também abrange o seu irmão brasileiro.
O Irmão Alemão. - O mais novo livro de Chico Buarque.

A orelha do livro nos dá a origem da busca de Chico pelo irmão alemão. Ele soube da existência desse seu irmão, aos 22 anos, numa conversa com Vinícius de Moraes e Tom Jobim, na casa de Manuel Bandeira. (Olha as companhias!) Sérgio Buarque de Holanda, ou o Sérgio Hollander viveu na Alemanha nos anos de 1929 e 1930, mais precisamente, em Berlim, onde, numa aventura amorosa teve um filho que nem sequer chegou a conhecer. O nome do irmão alemão do Chico foi Sérgio Ernst, nascido em 1930. Ernst era o sobrenome da mãe do menino. O livro tem a seguinte dedicatória: Para Sergios.

A busca pelo irmão desvenda o universo familiar da família Buarque de Holanda. O pai era um ser impenetrável. Uma carta vinda da Alemanha o define muito bem. Esta carta está em meio aos seus inúmeros livros. Ela diz assim: "Pelo teu silêncio adivinho que estás como sempre nos teus livros imerso". A carta parece ser da mãe de Sergio, como tudo indicava, mas não era. Era de Walter Benjamin, que lhe escreve para desejar um feliz ano de 1932. Na verdade, isso procede da imaginação, pois, a carta é mesmo de Anne, como pode ser visto nas páginas iniciais do livro. Sérgio morou em Berlim, onde foi correspondente de órgãos da imprensa brasileira, além de entrevistar Thomas Mann.
Foto de Chico na orelha do livro. A sua apresentação como escritor.

Os muros da casa eram feitos de livros, nos conta Chico, ou o narrador, que também passo a chamar de Chico. Eram mais de 20.000, passando ao final, para mais de 25.000. Era a maior biblioteca particular do estado de São Paulo. Sérgio também era um bibliófilo. Salários e herança foram gastos com a aquisição de livros, muitos deles raridades, com belas encadernações e, primeiras edições. O pai, pela descrição do Chico, era uma figura inacessível, trancafiado em sua biblioteca. Apenas a mãe tinha acesso, para lhe por em mãos os livros solicitados.
A preciosidade dos livros da biblioteca de Sergio Buarque de Holanda.

Depois de sabido do ocorrido com o pai na Alemanha, Chico inicia a busca do irmão, começando pelas furtivas entradas na biblioteca do pai. Entre as páginas dos livros encontrou algo a mais do que cinzas dos inúmeros cigarros fumados. Havia também cartas, que, ao menos no início se constituíam nas únicas pistas. Por essa correspondência, Chico soube que o irmão foi entregue aos cuidados do Estado, que o pai procurou pelo filho, que quis trazê-lo ao Brasil ou lhe mandar uma pensão, se esse fosse o desejo da mãe. Também soube que a mãe arrumou um outro namorado e aí é que a mistura entre a realidade e a ficção passa a pender mais para o lado da ficção. O namorado da mãe de Sérgio Ernst era músico, pianista famoso. Chico o encontra no Brasil, frequenta a sua família e depois de muita insistência fica sabendo que ele era realmente o namorado, mas que a mulher com quem vivia não era a mãe de Sérgio. Porém, Chico fica muito amigo de Christian, o filho do casal.

A busca pelo irmão alemão também aproxima Chico de seu irmão brasileiro, também sempre distante. Dois fatos vão ganhando consistência no não encontro ou desencontro com os irmãos. O irmão alemão pode ter sido vítima do regime nazista alemão e o irmão brasileiro pode ter desaparecido sob a ditadura militar brasileira, instaurada em 1964 e que recrudesceu em 1968. Um campo enorme se abre assim, para a imaginação.
A troca de cartas, pistas em busca do irmão alemão.


No último capítulo, Chico parte para a Alemanha, na busca mais efetiva do irmão. Segue todas as pistas, bancando um verdadeiro detetive. A mais consistente das pistas virá de um taxista, que ouve música e ao ouvi-la chama atenção do  Chico investigador e assim vão se revelando novos detalhes, mas sem um desfecho. Este só vem por nova nota explicativa ao final do livro. Eis o seu teor:

"Sergio Günther, filho de Sérgio Buarque de Holanda e Anne Ernst (...), nasceu em Berlim, em 21 de dezembro de 1930. Em 1931 ou em 1932, foi entregue pela mãe à Secretaria de Infância e da Juventude do distrito de Tiergarten, Berlim. Em 193?, Arthur Erich Willy Günther e sua mulher, Pauline Anna, adotaram o menino Sérgio Ernst, que seria criado com o nome de Horst Günther. Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber da identidade de seus pais naturais, optando por retomar  o prenome Sergio. Entrou para o exército da RDA em 194? e no fim dos anos 50 foi admitido na televisão do Estado, onde desenvolveu múltiplas atividades. Gravou um número incerto de discos, hoje fora de circulação. Morreu de câncer em 12 de setembro de 1981".
Uma foto do arquivo familiar.


Em outra nota Chico diz que esteve em Berlim, com a filha Sílvia Buarque, em 2013 para as entrevistas com a filha de Sergio, Kerstin Prügel, a neta, Josepha Prügel, a ex-mulher, Monika Knebel, e os amigos Werner Reinhardt e Manfred Schmitz. Também dá o nome das pessoas responsáveis pelo desvendar de toda a história. O livro obviamente transcende a mera linha da busca do irmão e entra na construção de uma refinada obra literária.
Olhe para a marcado cigarro. Sergio era um fumante inveterado.


Quero destacar duas passagens do livro. A primeira está relacionada com o imenso amor que o pai tinha para com os livros. Chico diz que o velho ateu, até relativizaria este seu conceito com uma possível visão do inferno. "Contudo, posso até conceber que ao se ver à beira do inferno, que em seus pesadelos talvez fosse uma eternidade sem livros, ou uma livraria infinita com livros em brasa, ele fraquejasse". A outra demonstra erudição e mostra como se faz literatura com literatura. É uma citação de Victor Hugo sobre o significado da vida. "A vida não passa de uma longa perda de tudo o que amamos".


segunda-feira, 1 de junho de 2015

COMPATRIOTAS. Como os judeus da Dinamarca fugiram dos nazistas e o surpreendente papel da SS.

Acabo de ler mais um livro, da parceria que o blog mantém com a Companhia das Letras. Trata-se de Companheiros - Como os judeus da Dinamarca fugiram dos nazistas e o surpreendente papel da SS., do historiador e diplomata Bo Lidegaard. O livro é um lançamento do mês de abril deste ano de 2015. Creio que convém observar um detalhe do título, em sua segunda parte. E o surpreendente papel da SS. Eu o observei, mais precisamente, já quase ao final da leitura, quando a questão é tratada de forma específica. E uma grande questão se levanta. Usando uma palavra brasileira, quando a Folha de S.Paulo usou a palavra Ditabranda, faço a analogia. Teria havido um nazismo brando?
Compatriotas. O relato da fuga dos judeus dinamarqueses para a Suécia.

O livro é formado por 444 páginas, distribuídas em 14 capítulos, de raro humanismo. Nele são narrados os acontecimentos ocorridos na Dinamarca entre os dias 26 de setembro e 9 de outubro do ano de 1943. O país já sofria uma intervenção do nazismo alemão, - é difícil encontrar um termo apropriado, - meio consentida a partir de 9 de abril de 1940. A correlação de forças nos dá indicativos para a compreensão do fato. Se houvesse resistência, o pequeno, mas estratégico país seria subjugado em questão de horas. A Alemanha, por sua vez, mais do que necessitava os alimentos ali produzidos. Coisas da realpolitik.

O livro nos dá uma bela descrição da social democracia dinamarquesa, ou danesa e a construção de uma grande unidade nacional em torno da Constituição e do rei Cristiano X. Uma frase de legenda para uma charge, explica a realidade. Na charge  Stauning, o primeiro ministro, pergunta ao rei Cristiano. "O que faremos, majestade, se Scavênius disser que os nossos judeus também têm de usar a estrela amarela?" "Então provavelmente todos nós usaremos a estrela amarela", teria respondido o rei Cristiano. Na verdade, na Dinamarca ninguém foi obrigado a se identificar com a estrela amarela ou a estrela de Davi. Esta charge virou um mito, símbolo da unidade do povo.
A charge com Stauning e o rei Cristiano X. Todos a usaremos. Todos somos iguais. O mito.

O livro traz um minucioso estudo sobre os judeus dinamarqueses e os divide em três grupos. Havia os descendentes de famílias que ali chegaram desde o século XVII. Estavam perfeitamente integrados, cosmopolitas, e pertenciam às camadas economicamente mais elevadas da sociedade. Outro grupo foi formado pelos chamados judeus "russos", oriundos da parte oriental da Europa e que tinham migrado no início do século XX. Praticamente todos haviam melhorado de vida. Uma leva mais recente, veio já com as perseguições iniciais do regime nazista. Ao todo formavam em torno de 7 a 8 mil pessoas. 

Quando as relações com a Alemanha nazista se complicaram e veio a ordem de prisão aos judeus e o consequente confinamento em campos de concentração, a maioria conseguiu fugir para a Suécia, que continuava um país livre e que mantinha com os alemães boas relações econômicas, mas que fez de tudo para bem receber os judeus fugitivos. A ordem de prisão aos judeus chegou no dia 28 de setembro de 1943, quando começa o grande pânico. Eles seriam levados para a Polônia, se enquadrarem nos processos seletivos para a morte ou para o trabalho e terem os bens confiscados. No entanto, foram presos, em torno de 300 judeus, sendo 202 pessoas de um asilo de idosos.
A estratégica posição da Dinamarca e a proximidade com a Suécia.

Os mais visados eram os judeus puros. Os casados com outras etnias e especialmente com os "arianos", deveriam ser poupados. É difícil a compreensão dessa química ou matemática. Em todos os casos, a operação foi considerada como um grande fracasso dos nazistas. Em torno de sete mil judeus fugiram para a vizinha Suécia, atravessando os vigiados mares. Daí é que surge a especulação da segunda parte do título do livro. Os judeus presos também não foram levados para a Polônia e sim para a Checoslováquia de então, para Theresienstadt.
Charge de jornal clandestino. Cara amarrada. A má vontade dos dinamarqueses para com os nazistas.

A narrativa se ocupa da descrição das dramáticas e traumáticas fugas, de seus custos, de seus medos e de suas chegadas e acolhidas e das transcrições desses mesmos fatos, relatados em diversos diários. O que mais me chamou a atenção dessas descrições é o comportamento humano quando este chega às chamadas situações limite. Uns expressam os melhores sentimentos de solidariedade e de ações concretas de ajuda, mesmo pondo em risco suas vidas, enquanto que, em outros aflora a besta humana ensandecida contra os seus semelhantes. Segundo os relatos, prevaleceu a solidariedade. As travessias, embora custassem caro, todas foram realizadas, com ou sem dinheiro para o pagamento.

O que houve afinal de contas? O autor do livro exalta a unidade e o sentimento de igualdade do povo dinamarquês, fortalecido pelo mito do rei. Mas é importante observar a data. Setembro e outubro de 1943. Estaria a Alemanha já à deriva? Poderiam os alemães se expor a ainda maiores hostilizações a esta altura e terem os dinamarqueses como inimigos declarados ou teriam mesmo os encarregados alemães na Dinamarca afrouxado as normas de vigilância? O livro procura responder a essas questões. Depois de 14 capítulos, o epílogo trata do destino dos principais atores envolvidos nesse difícil momento da história, tanto a mundial, quanto a nacional dinamarquesa. Os comunistas, pela narrativa, foram presos desde o início das hostilidades.
O quartel general alemão em Copenhague. A Dagmarhus.

Termino com um poema de resistência da época. A autoria é de Poul Hennigsen, intelectual, escritor e arquiteto dinamarquês que viveu e sentiu a época:

"Eles nos acorrentam as mãos e a boca,
mas não conseguem atar nossas ideias,
e ninguém é prisioneiro enquanto o espírito corre solto.
Nós temos cá dentro uma fortaleza
que se revigora por si só,
enquanto lutamos pelas coisas em que cremos.
Quem mantém a alma ereta jamais há de ser escravo.
Ninguém pode governar aquilo
que nós mesmos determinamos.
Prometemos com a boca e a mão,
na escuridão que precede a aurora,
que o sonho da liberdade nunca morrerá".  

Um complemento muito valioso.


PS. 4 de fevereiro de 2019. A respeito ver - ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo. Companhia das Letras. 2018. Capítulo X. - Deportações da Europa Ocidental - França, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Itália.  Páginas 180 a 199. Sobre a Dinamarca, especificamente, páginas 189 a 194.