sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O que é pós-moderno. Características.

No livro organizado por Paulo Ghirardelli Jr. (sem comentários) Infância, escola e modernidade, encontramos um precioso texto de autoria de José Carlos Libâneo, sob o título de Pedagogia e modernidade: presente e futuro da escola. Neste texto o autor apresenta as características da pós modernidade, com uma precisão de síntese maravilhosa. Publico estas características em virtude de um curso junto com um grupo que estuda a formação do pensamento ocidental. Vamos ao texto.


1). Do ponto de vista filosófico, o pós-moderno rejeita certas ideias mestras formuladas no âmbito do Iluminismo e da tradição filosófica ocidental: a existência de uma natureza humana essencial, a ideia de um destino humano global ou coletivo, a ideia de que os fatos, os acontecimentos, as opiniões, se juntam numa totalidade, a ideia de que se pode ter uma teoria condutora da nossa ação pessoal e coletiva. Em troca dessas categorias universais, haveria ações específicas de sujeitos individuais ou de grupos particulares, existências particulares e locais, diferenças culturais, étnicas, raciais. Não se contaria mais com sistemas teóricos de referência, sejam eles lastreados na ciência, na ideologia ou na religião. Por isso são rejeitadas as teorias totalizantes do marxismo, do hegelianismo, do cristianismo e de outras baseadas em noções de causalidade, em soluções totais que tudo englobam a respeito do destino humano. Os "pós-modernos" também criticam uma elite intelectual que se julga vanguarda dos movimentos sociais, como se fossem donos do destino da sociedade. Em vez desse vanguardismo, argumentam em favor de uma pluralidade de vozes e narrativas, em torno de demandas de novos atores sociais, contemplando suas diferenças culturais, a partir de configurações particulares de espaço, lugar, tempo e poder.

2). Do ponto de vista econômico,  há uma desconcentração do capital, com a internacionalização dos mercados; ocorrem transformações técnico-científicas que afetam o processo produtivo e, em consequência, a organização do trabalho, o perfil da força de trabalho, levando à expansão da força de trabalho dedicada ao trabalho não-manual; há uma internacionalização do processo de produção à base de uso mais amplo do conhecimento, da informatização, dos sistemas de comunicação, demandando mão de obra mais qualificada.

3). Do ponto de vista político, reduz-se a crença moderna no Estado-Nação, à medida que as forças de produção que conduzem a economia global estão cada vez mais se dispersando através do multinacionalismo das empresas, inclusive fora do bloco das nações industrializadas ocidentais. Há além disso, uma redução do poder de atração e convicção dos ideais da modernidade relacionados à vida pública, levando a uma atitude de desconfiança à prática política convencional ou mesmo a uma despolitização. Por outro lado, tendem a crescer os movimentos particularistas, locais, setorizados, dando à política uma conotação diferenciada.

4). Do ponto de vista cultural, há mudanças nas formas de produção, circulação e consumo da cultura dentro de um remapeamento e uma contestação dos ideais modernistas da racionalidade, da totalidade, da verdade, do progresso, de uma razão razão universal sobre o lugar do indivíduo na história e na sociedade. Segundo a interpretação de Braudillard, citado por Giroux, os signos substituem a lógica da produção e do conflito de classe. Há uma proliferação de significados, gerando uma sociedade em que imperam as simulações, num mundo de imagens e fantasias eletrônicas. É uma sociedade saturada de mensagens da mídia que não tem correspondência com conteúdos modernos tais como valores humanos, dignidade, luta política, ação do sujeito, ideologia etc. Não há nada que se assemelhe a uma apreensão da essência do real, a uma leitura em profundidade do real. Nada que requeira uma epistemologia que assegure a validade da verdade. Ao contrário, a realidade está na superfície, no espetáculo, nos simulacros, providos por novas fontes de tecnologia e informação. LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e Modernidade: presente e futuro da escola. In: GHIRARDELLI JR. Paulo. Infância, escola e modernidade. São Paulo e Curitiba. Cortez e UFPR. 1996. Páginas 127-174.

A pós-modernidade é um grande DES - de desconstrução. Vejam no campo econômico: desestatização -desnacionalização; desregulamentação - desconstitucionalização; desuniversalização - desproteção.

O desumano e o pós-moderno:

A idade do humanismo está acabando. Achille Mbembe.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2017/02/a-idade-do-humanismo-esta-acabando.html


Duas recomendações: Os dois livros acima.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo. Loyola. 1992.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo. Ática. 1997.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Reminiscências de um rábula criminalista. Evaristo de Moraes

Entrei em contato com Evaristo de Moraes através do monumental livro de Edmar Morel A revolta da chibata. É simples de entender, Evaristo de Moraes atuara na defesa dos revoltosos. A curiosidade me levou então ao notável criminalista brasileiro. É óbvio que já ouvira falar muito dele e de seu filho, Evaristo de Moraes Filho, que praticamente organizou a segunda edição do Reminiscências de um rábula criminalista, em 1989. A edição original data de 1922.
O belo livro de memórias de Evaristo de Moraes.

Evaristo de Moraes (1871 - 1939) foi um menino muito pobre, que, segundo expressão sua, ganhou quando nasceu, "como presente da sorte, um pau-de-sebo". Ele explica: "Os prêmios nos paus-de-sebo estão sempre na extremidade superior. Subir até lá é um inferno. Um inferno foi a minha vida". Ele conta mais: "Quando comecei a compreender as coisas minha casa era um grande palco de dor e de amargura. Minha mãe sofria o desprezo do marido, nós, os filhos, sofríamos o pouco caso de nosso pai. Já se passavam necessidades debaixo daquelas telhas". Mas o pai ao menos fez uma coisa boa. Matriculou-o nas aulas dos meninos pobres do Mosteiro de São Bento. Um dos monges se apiedou do menino e, ele, aos trancos e barrancos foi se ajeitando.

Algumas aulas para cursos preparatórios, artigos para jornal e a advocacia como rábula, o foram encaminhando na vida, até ganhar a fama do mais notável criminalista destes tempos. O seu livro é de, como vemos no título, reminiscências. Ele mescla fatos de sua vida e de suas convicções, junto com as principais causas que defendeu. Ficou sempre ao lado dos mais fracos, oferecendo defesa aos mais necessitados. Evandro Lins e Silva (STF), em artigo para esta edição do livro, assim se expressou: "Evaristo inquietava-se com o problema da infância abandonada, com a prostituição, com o desemprego, com a miséria, com a fome, enfim, com as causas geradoras da criminalidade".

No livro ele descreve 31 intervenções suas em julgamentos. Destas eu destaco duas. As de número 8, A mais dolorosa das minhas recordações e a 17, A casa de detenção há 21 anos, escrito em novembro de 1900. A primeira se refere ao julgamento de seu pai, apresentado pela imprensa como um poço de lodo. Basílio de Moraes foi ao julgamento já pré condenado, num esquema que lembra muito um famoso julgamento, ora em curso (2018). A condenação pela Opinião Pública, instigada pela mídia. Conta ele: "A imprensa, a turba anônima, todo o tribunal, ora reunido, estão associados nesta empresa de sugestão e intimidação ao tribunal". Ou: "Era a conspiração da justiça, aliada aos jornais, para incitar a canalha das ruas que não raciocina. É de ver a indignação desses jornais quando noticiavam que Basílio de Moraes estava na Detenção em Categoria de abastado. Pois que! Havia um filho tão infame que, vendo seu pai na desgraça, tendo contra si a opinião inteira da sociedade, ousava privar-se de 100$ para pagar-lhe um quarto na Detenção! E os apodos choviam de todos os lados".

Quanto a descrição da Casa  de Detenção, a situação também é semelhante aos dias atuais, de serem locais supostamente correcionais, chamando também a atenção para a formação das organizações criminosas. "Que adiantam regulamentos mais ou menos bem cuidados, cumpridos, quanto possível, por pessoal trabalhador e honesto -, se, para sua execução, não há meios materiais, não há espaço, não há os primeiros elementos? Como geralmente se sabe, em toda a prisão o principal problema é evitar-se a formação da sociedade criminosa, a obra nefasta do contágio do crime".

Também merece destaque nestas reminiscências a última intervenção, a de número 32 que é o discurso proferido pelo autor, na ocasião de se bacharelar, aos 45 anos (1916). O discurso é uma memorável peça em favor do advogado como meio de defesa dos direitos do cidadão. Me chamou particular atenção a questão da inexistência dos cursos de Direito na época. Depois do 11 de agosto de 1827, com a criação dos cursos de São Paulo e do Recife, um terceiro curso veio a ser criado apenas em 1891, já na República. Esta é a razão da intensa atuação de rábulas, diga-se, de brilhantes rábulas, autodidatas, dos quais Evaristo é, talvez, o maior exemplo. Até hoje é ele uma das referências nos estudos do Direito Penal. Logo após a sua formatura passou a ser também professor. Também é o momento em que o rábula para de contar as suas reminiscências.
Evaristo de Moraes, o rábula criminalista.


O livro, além da republicação do texto original tem uma introdução escrita pelo filho. De sua autoria é também o pequeno posfácio, no qual apresenta diversos adendos, como entrevistas concedidas, crônicas, artigos em revistas, discursos em solenidades, todas referentes ao cultivo da memória do pai. Entre eles destacaria duas páginas, de autoria de Evandro Lins e Silva, ministro do STF, lhe fazendo uma apologia.

O livro é também um belo retrato de época e o jurista não esteve ausente dos grandes momentos da história de nosso país, como republicano, civilista, organizador de movimentos em favor dos trabalhadores, tendo colaborado com a fundação de partidos de natureza trabalhista. O livro não se limita apenas a estudiosos do direito. Um grande livro, um livro referência.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Calúnia. Elisa Lynch e a guerra do Paraguai.

Cheguei a este livro pela leitura de A Pátria Educadora em Colapso, de Renato Janine Ribeiro.  Pode até parecer estranho, mas não é. Eu explico. Como Ministro da Educação ele pretendia abrir os arquivos da Guerra do Paraguai e priorizar bolsas de estudo que investigassem a fundo os horrores da maior guerra que envolveu a América do Sul. Em conversa com a presidente Dilma, esta lhe fez referências a este livro. Isso despertou a minha curiosidade.
O livro Calúnia - Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai.

Calúnia - Elisa Lynch e a Guerra do Paraguai é de autoria de dois pesquisadores irlandeses, conterrâneos, portanto, de Elisa Lynch, a toda poderosa "rainha" irlandesa do Paraguai. Era a companheira de Francisco Solano López, com quem teve sete filhos, sem nunca ter sido casada com ele. Se conheceram em Paris e ela o acompanhou antes e durante todo o período da longa guerra (1864-1870). Além de companheira preferida, era também a sua grande confidente e responsabilizada por muitos detratores e de modo todo especial, pelas damas da sociedade de Assunção, como responsável pelas atrocidades cometidas pelo ditador, que aumentavam na exata medida em que o final da grande guerra se aproximava.

A curiosidade se aguçou e encontrei o livro com relativa facilidade. A narrativa vem num crescendo, que te envolve por completo, ao longo de seus treze capítulos. Dou os títulos: Em busca de Elisa Lynch; Monsieur e Mrs. Quatrefages; Seria uma cortesã?; Entra Panchito; Paraguai - o Paraíso de Maomé; A rainha do Paraguai; Triunfo; Desastre; Inferno; Cerro Corá; Nos tribunais de Edimburgo; A última traição: A volta a Assunção e, por último, Um coração tornou-se frio. Além disso, há um prólogo sobre os passos da pesquisa  e um apêndice com uma declaração pública de Elisa.

Estes títulos permitem uma viagem do imaginário, linearmente estabelecida. O encontro de Francisco Solano López com Elisa, numa viagem diplomática do filho do presidente paraguaio e o encontro com Elisa em Paris. Elisa, que era irlandesa, casara-se com um militar francês Guatrefages, mas tudo indica que não viviam bem. Elisa devia ser de uma beleza estonteante e suspeitava-se, ser ela uma cortesã. Panchito é o tratamento que Elisa reservava para o futuro presidente e ditador paraguaio. Panchito e Elisa entram em cálida lua de mel e ela engravida, já neste primeiro relacionamento. Entraves burocráticos de seu casamento com Quatrefages, para posteriores desresponsabilizações, retardam o casal em Paris.

O Paraíso de Maomé é um interessante capítulo sobre os costumes paraguaios, especialmente, no que diz respeito aos casamentos, do afrouxamento moral e dos "bons costumes". Os filhos eram de responsabilidade de suas mães, deixando os maridos livres para novas aventuras. O fato de os filhos serem criados essencialmente por suas mães é tido como um dos fatores responsáveis pela fala do guarani, como a língua do cotidiano paraguaio. A esta altura o livro entra na questão da geopolítica da Bacia do Prata e das difíceis relações entre os países a ela pertencentes. As ambições de Solano López, sem dúvida, em muito contribuíram para a deflagração e continuidade do conflito.

No início, o Paraguai leva vantagens. Ele havia se preparado para a guerra. Mas, do triunfo parte-se rapidamente para o desastre, quando a guerra sai do distante e ermo Mato Grosso e se estende para a região sul. As forças da Tríplice Aliança logo se impõem aos paraguaios, mas Solano López não se intimida. Além da guerra ele precisa controlar as cisões internas, o que ele faz com extrema violência. Cerro Corá será o palco da tragédia final da triste guerra. O ditador morre mas não se rende. Junto com ele morre o filho mais velho de López e de Elisa. Elisa, ao longo de sua permanência no Paraguai, acumulara uma fortuna sem proporções. A narrativa daqui em diante, se ocupa da defesa destes seus bens, inclusive, a traz de volta a Assunção, depois de uma estada na Europa, cuidando de seus bens nos tribunais ingleses. O convite para voltar a Assunção, veio do presidente Gil, que, ao que tudo indica, fazia parte de um plano de seu assassinato, mas a proteção inglesa não permitiu que isso ocorresse.

Em suma, um livre muito interessante, profundamente ilustrativo sobre o conflito, para além de sua especificidade, que é a de contar a história de Elisa Lynch. Ela era odiada pela elite paraguaia e amada pelos mais simples. Era muito elegante e a sua beleza só fazia crescer o ódio das senhoras "de bem" de Assunção. Ela foi tema de farta literatura difamatória que se transformou em best sellers editoriais. Quero ainda destacar a inacreditável longevidade da guerra (1864-1870), a retirada de Caxias da mesma, o espírito sanguinário do Conde D'Eu e o ódio visceral do Imperador brasileiro ao ditador paraguaio. E uma curiosidade final. O livro é dedicado pelos autores irlandeses ao comandante Rolim Amaro, da TAM, morto em acidente de helicóptero na região de Ponta Porã - Cerro Corá, quando ia ao encontro destes pesquisadores. O comandante era apaixonado pelo tema da Guerra do Paraguai e por esta história mais especificamente.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Úrsula. Cap. IX. Susana. Sobre a liberdade e os valores civlizatórios dos povos africanos, pré escravidão.

Recentemente fiz uma viagem de turismo para São Luís do Maranhão. Fui eu e minhas curiosidades. Além de São Luís, fui também para Alcântara. Me causou forte impressão o polo agrícola que se formou no estado do Maranhão, ao longo do Segundo Reinado, no auge do período da escravidão. O tema me interessou e na volta já li Os tambores de São Luís e agora, Úrsula. Dois romances maravilhosos. Os autores são maranhenses, Josué Montello e Maria Firmina dos Reis, respectivamente.
Este romance ainda será objeto de muitos estudos.

Úrsula conta em seu favor o tempo em que foi escrito, 1859. O livro tem como peculiaridade ter sido escrito por uma mulher, e mulher de descendência negra. Estes dois elementos impregnaram profundamente a obra. Úrsula tem uma apresentação e um posfácio maravilhosos. Ambos são de autoria de Eduardo de Assis Duarte. A apresentação situa a autora em seu tempo histórico e o posfácio analisa o romance sob a ótica da Crítica da razão negra de Achille Mbembe, confrontando-a com a razão ocidental. Tem por título, Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental.

O fundamento desta desconstrução se situa no capítulo IX do livro, que versa sobre a Mãe Susana, que vivera a liberdade na África, os horrores do aprisionamento e o transporte e a sobrevivência no navio negreiro. Susana explica para Túlio, o outro personagem negro do romance, o significado da liberdade que viveram na África e lhe descreve os valores que organizavam o seu viver coletivo, ou, no dizer de Assis Duarte: "É mãe Susana quem vai explicar a Túlio, alforriado pelo Cavaleiro, o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a de um alforriado num país racista". A análise é extraordinariamente linda.  Vejam bem: o significado da liberdade - de um negro livre - num país racista. Meu Deus! Quanta atualidade. Mas vejamos o capítulo, o mais precioso do livro, em sua íntegra.

 
IX - A preta Susana:

Estavam já feitos os aprestos da viagem, e Túlio, entanto no meio de sua felicidade parecia às vezes tocado por viva melancolia, que se lhe debuxava no rosto, onde uma lágrima recente havia deixado profundo sulco. Era por sem dúvida a saudade da separação, essa dor que aflige a todo o coração sensível que assim o consumia. Ia deixar a casa de sua senhora, onde senão ledos, pelo menos não muito amargos tinha ele passado seus primeiros anos. O negro sentia saudades.

E aí havia uma mulher escrava, e negra como ele; mas boa e compassiva, que lhe serviu de mãe enquanto lhe sorriu essa idade lisonjeira e feliz, única na vida do homem que se grava no coração com caracteres de amor - única, cuja recordação nos apraz, e em que... (se extraviou uma linha do original).

Susana, chama-se ela; trajava uma saia de grosseiro tecido de algodão preto, cuja orla chegava-lhe ao meio das pernas magras e descarnadas como todo o seu corpo: na cabeça tinha cingido um lenço encarnado e amarelo, que mal lhe ocultava as alvíssimas cãs.

Túlio estava ante ela com os braços cruzados sobre o peito. Em seu semblante transparecia um quê de dor mal reprimida, que denunciava seu profundo pesar.

A velha deixou o fuso em que fiava, ergue-se sem olhá-lo, tomou o cachimbo, encheu-o de tabaco, acendeu-o, tirou dele algumas baforadas de fumo, e de novo sentou-se: mas dessa vez não pegou no fuso.

Fitou então os olhos em Túlio, e disse-lhe:
- Onde vais Túlio?
- Acompanhar o senhor Tancredo de*** - respondeu o interpelado.
- Acompanhar o senhor Tancredo! - Continuou a velha com acento repreensivo. - Sabes tu o que fazes? Túlio, Túlio!

Depois de pausa ajuntou:
- Não sentes saudades desta casa, ingrato?
- Não, mãe Susana, não me alcunheis de ingrato. Quantas saudades levo eu de Vós! Oh só Deus sabe quanto me pesam elas.
- Tu? Exclamou ela procurando ler-lhe o fundo do coração os sentimentos que o animavam. - Tu não levas saudades algumas. Túlio; se as levas, que te obrigaria a deixar-nos?
- A gratidão - respondeu ele com presteza.
- A gratidão? E não a deves à senhora, que para ti tem sido quase que uma mãe? Não a deves à menina? E por que as deixas? É que não sentes saudades delas.
- Oh! Sinto-as, sinto-as, e muitas, e muitas, mãe Susana!
- Então não procures ir ir com esse homem, que apenas conheces! Olha, ainda há pouco vi uma lágrima pender dos olhos dessa boa menina, essa lágrima, creio que lhe arrancou do coração a notícia da tua partida... e tu vais-te? Quando voltarás aqui?
- A nossa separação, disse-me o senhor Tancredo, será por pouco tempo. Volto para junto de vós, mãe Susana, e a senhora não reclamará em vão os meus serviços.
- A senhora! - Replicou a velha com mágoa - essa, meu filho, jamais reclamará os teus serviços; ou eu me engano, ou tu vais dizer-lhe o o último adeus!
- Túlio - continuou - não sabes quanto sofro quando recordo-me de que a nossa querida menina vai tão breve ficar só no mundo! Só, Túlio" Quem a acompanhará? Quem poderá consolá-la! Eu! Não. Pouco poderei demorar-me neste mundo. Meu filho, acho bom que não te vás.  Que te adianta trocares um cativeiro por outro! E sabes tu se aí o encontrarás melhor? Olha, chamar-te-ão, talvez, ingrato, e eu não terei uma palavra para defender-te.
- Oh! Quanto a isso não, mãe Susana - tornou Túlio - A senhora Luísa B... foi para mim boa e carinhosa, o céu lhe pague o bem que me fez, que eu nunca me esquecerei de que poupou-me os mais acerbos desgostos da escravidão, mas quanto ao jovem cavaleiro, é bem diverso o meu sentir; sim, bem diverso. Não troco cativeiro por cativeiro, oh não! Troco escravidão por liberdade, por ampla liberdade! Veja, mãe Susana, se devo ter limites à minha gratidão: veja se devo, ou não, acompanhá-lo, se devo, ou não provar-lhe até a morte o meu reconhecimento!...
- Tu! Tu livre? Ah não me iludas! Exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre?...
- Iludi-la! Respondeu ele, rindo-se de felicidade - e para quê? Mãe Susana, graças à generosa alma deste mancebo sou hoje livre, livre como o pássaro, como as águas; livre como o éreis na vossa pátria.

Essas últimas palavras despertaram no coração da velha escrava uma recordação dolorosa; soltou um gemido magoado, curvou a fronte para a terra, e com ambas as mãos cobriu os olhos.

Túlio olhou-a com interesse; começava a compreender-lhe os pensamentos.
- Não se aflija - disse - Para que estas lágrimas? Ah! Perdoe-me, eu despertei-lhe uma ideia bem triste!.

A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou:
- Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade...ah! Eu a gozei na minha mocidade! - Continuou Susana com amargura - Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria as descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em que me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: - uma filha, que era a minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar a nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!

Estava extenuada de aflição, a dor era-lhe viva, e assoberbava-lhe o coração.
Ah! Pelo céu! - Exclamou o jovem negro enternecido - sim, pelo céu, para que essas recordações!?
- Não matam, meu filho. Se matassem, há muito que morrera, pois vivem comigo todas as horas.
Vou contar-te o meu cativeiro.
Tinha chegado o tempo da colheita e o milho e o inhame e o mendubin eram em abundância nas nossas roças. Era um desses dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu vê-la...

Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira - era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava - pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar!...

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes de nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais parca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!

Muitos não deixavam chegar esse último extremo - davam-se à morte.

Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.

A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.

Não sei como resisti - é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.

O Comendador P... foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos por que passaram, doeram-me até o fundo do coração! O comendador P...  derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se davam a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.

Pouco depois casou-se a senhora Luísa B..., e ainda a mesma sorte: seu marido era um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor.

E ela chorava, porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros escravos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do anjinho, do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultava vivos, onde, carregados de ferros, como malévolos assassinos acabavam a existência, amaldiçoando a escravidão; e quantas vezes aos mesmos céus!...

O senhor Paulo B... morreu, e sua esposa e sua filha procuraram em sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço; mas a dor que tenho no coração, só a morte poderá apagar! - Meu marido, minha filha, minha terra... minha liberdade...

E depois ela calou-se, e as lágrimas, que lhe banhavam o rosto rugoso, gotejaram na terra.

Túlio ajoelhou-se respeitoso ante tão profundo sentir: tomou as mãos secas e enrugadas da africana, e nelas depositou um beijo.

A velha sentiu-o, e duas lágrimas de sincero enternecimento desceram-lhe pela face: ergueu então seus olhos vermelhos de pranto e, arrancou a mão com brandura e elevando-a sobre a cabeça do jovem negro, disse-lhe tocada de gratidão:

- Vai meu filho! Quero que o Senhor guie os teus passos, e te abençoe, como eu te abençoo.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Genealogia da Moral. Nietzsche. Posfácio.

Genealogia da Moral é  uma das mais ácidas, ou mais libertadoras, obras de Nietzsche. Paulo César de Souza, em curto mas preciso posfácio, nos fala de sua importância, na edição da Companhia das Letras. Este post se destina, de modo especial, para os participantes do grupo de leitura: Formação do Pensamento Ocidental. Vamos ao texto:
Um dos mais instigantes e provocadores livros de Nietzsche.

"Escrito originalmente para "complemento e clarificação de Além do bem e do mal", segundo constava no frontispício da primeira edição, Genealogia da moral tornou-se um dos mais influentes e controversos livros de Nietzsche. Foi redigido em julho e agosto de 1887 e publicado logo depois, às expensas do autor, como a maioria de suas obras.

Não é difícil perceber os motivos para a sua duradoura repercussão. Alguns dos temas e dos slogans mais candentes da filosofia nietzschiana comparecem neste livro: o ressentimento, a má consciência, a "besta  loura", a oposição entre moral de senhores e moral de escravos, o mundo como hospício, etc. Além disso ele constitui, entre as obras da maturidade do autor, o seu maior esforço de reflexão contínua sobre um tema.

E esse tema não poderia ser mais relevante: trata-se de uma inquirição sobre como o ser humano chegou à condição atual, o que implica sondar os primórdios da cultura, os processos que envolveram a "hominização" e o posterior desenvolvimento das instituições humanas. Esta Genealogia recorre a conjecturas no âmbito da história e da antropologia. Ela é, em boa parte "antropologia especulativa", na  expressão de Arthur Danto. Mas Nietzsche não se contenta em simplesmente diagnosticar. Ele pretende ser médico e salvador, e assume este papel com a paixão que lhe é peculiar. Assim se explica a ocasional estridência do tom, não obstante o brilho da prosa.

Ser humano é ser antes de tudo moral. Por isso o primeiro ensaio (ou "dissertação: Abhandlung, no original) trata da origem da noção de "bem" e "mal". Ele se liga diretamente a Além do bem e do mal, em particular à seção 260, em que Nietzsche diferencia entre a moral dos senhores e a dos escravos, e à seção 195, onde ele toca na inversão dos valores, a "revolta escrava na moral", que teria sido uma realização judaico-cristã. O segundo ensaio, sobre "culpa", "má consciência" e quejandos, desenvolve a percepção, já explicitada no $ 229 de ABM, segundo a qual todos os impulsos cruéis se relacionam profundamente às conquistas culturais: arte, direito, religião e organização política seriam impensáveis sem eles. Mais que isso, a própria consciência - sinônimo da "má consciência" - é produto do jogo dos instintos (processo de "interiorização do homem", II 16). Uma genealogia da moral implica, inevitavelmente, uma psicologia do conhecimento.

Conclusões dos dois primeiros ensaios são levadas para o terceiro, o mais longo e o mais ambicioso dos três. O sacerdote ascético dirige o ressentimento dos "escravos" para dentro de si mesmos; daí a ânsia do nada, o ideal ascético. O sacerdote encarnaria esta suprema contradição: um ser hostil à vida revelando-se como fator de preservação da vida. O ideal científico, apresentando-se como o rival do ideal ascético, na verdade procederia dele, por ainda acreditar na verdade, por não possuir uma "fé", uma "meta" própria. Neste terceiro ensaio nota-se algo mais que atrai neste livro: o gosto em lidar paradoxalmente com paradoxos, em discernir identificações paradoxais onde acreditávamos perceber oposições.

No conjunto, ele parte de pressupostos tácitos e muito problemáticos, como a distinção demasiado segura entre sadios e doentes, entre agressividade sadia e patológica, ou a identificação de dureza com saúde, de poder com estar bem. Nessa ótica, apenas os pobres, "escravos", seriam miseráveis, existencialmente falando; os poderosos "senhores", não sofreriam tanto por ser gente. E os sentimentos de uns e de outros teriam apenas o nome em comum: a compaixão dos nobres seria essencialmente diferente da compaixão dos plebeus.

Nietzsche joga com noções imensas, de contornos imprecisos: "dor", "doença", "decadência", "vontade", "verdade", "vida". Há ocasiões, por exemplo, em que "decadente" parece se referir apenas ao moderno "animal de rebanho", e em outros momentos se aplicaria ao próprio ser humano - de modo que o desenvolvimento da humanidade após o neolítico, digamos, já seria decadência.

Por trás do jogo percebemos a visão grandiosa e trágica de duas forças que se opõem através dos tempos, o duelo entre as forças da criação e da destruição, entre a vida e a morte. Algo que lembra a mitopoética freudiana de Eros em luta contra a Morte, expressa em Além do princípio do prazer e O mal-estar na civilização. De fato, pode-se dizer que Genealogia da moral é o mais "psicanalítico" dos textos de Nietzsche. Seria proveitoso um estudo comparativo sobre a Genealogia e o Mal-estar. Tal como o sacerdote, o psicanalista - num determinado sentido sucessor dele - é um especialista em sofrimento. Os dois livros se ocupam principalmente do sentimento de culpa, a tal ponto que os seus títulos são intercambiáveis. A semelhança é clara, por exemplo, na discussão dos três expedientes para lidar com o desprazer: a religião, o entorpecimento, o trabalho (romanticamente, Nietzsche ressalta neste o elemento desumanizador, maquinal; Freud, mais realista, dá ao trabalho um lugar eminente na "economia" da vida).

O ponto de contato fundamental, porém, está na visão do conflito entre instintos e cultura, dos mecanismos psicológicos envolvidos nessa trama, nesse drama. Entre eles, o da agressividade que se dirige para fora, que depois viria a se chamar "sadismo", e o daquela que se volta para dentro, agora denominada "masoquismo". (Na mesma época em que Nietzsche escrevia, um outro precursor de Freud, Machado de Assis, publicou o conto "A causa secreta", talvez o melhor estudo sobre o sadismo que há na literatura mundial.)

É impossível, num breve posfácio, discutir as inúmeras observações de uma obra dessa natureza, assim como o vasto edifício teórico que elas sustentam (supondo que este posfaciador tivesse a competência para fazê-lo). O problema - um dos problemas - com que se defronta qualquer leitor de Nietzsche é a enorme concentração dos argumentos, a riqueza de "saques" (para usar um coloquialismo equivalente ao inglês insight). O exemplo que ele dá do que entende por interpretação, no final do prólogo, pode ser aplicado ao próprio livro: de tão instigante e concentrado Genealogia da moral é como um aforismo que pede milhares de linhas de interpretação.

Por fim, o leitor não deve esquecer que este livro foi escrito no século XIX. Nesse meio tempo, muito se fez e muito se descobriu nas ciências que serviram de base para as conjecturas de Nietzsche. No que toca a uma genealogia dos sentimentos e atitudes morais, os desenvolvimentos mais fascinantes, nos dias de hoje, decorrem das ideias de um pensador que foi mal compreendido e subestimado por Nietzsche: Charles Darwin".

Deixo ainda o link de um belo texto de Marcelo Coelho, colunista da Folha de S.Paulo, do caderno Mais. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs06129808.htm

Úrsula (1859). Maria Firmina dos Reis. Mulher e afro descendente.

Cheguei ao livro, através de um comentário que fiz sobre a cidade de São Luís, que fazia uma referência ao livro de Josué Montello, Os tambores de São Luís. Eis o comentário, ao qual deixei registrado, os meus agradecimentos. "Olá, professor. Uma dica que minha esposa e eu damos - ela é Maranhense - é um livro de 1859 chamado Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, também maranhense. É considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil. Abraços"! Fernando Souza. Renovo aqui os meus agradecimentos.
Úrsula. O próprio livro tem uma história. Ainda terá mais repercussões.


Ao contrário do que eu imaginava, foi fácil encontrar o livro. Ele ganhou uma nova edição, em 2017, pela editora PUC - Minas. Nesta edição está também o conto A escrava, escrito em 1887, no calor da efervescência abolicionista. Como me alertou Fernando Souza, o livro, considerado o primeiro romance abolicionista, na verdade, é muito mais do que isso. Ele é pioneiro também sob outros aspectos, como a visão de uma mulher  e do afrocentrismo no debate da questão. O livro precisa ser contextualizado. Maria Firmina dos Reis é mulata, afrodescendente e letrada. É maranhense e foi professora. observem bem a data da publicação, 1859.

O livro, além de seu valor próprio, tem outras duas preciosidades: Uma introdução, sob o título, Maria Firmina, mulher do seu tempo e do seu país e um posfácio, que vai fundo na análise do grande significado do livro, Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental. Ambos são assinados por Eduardo de Assis Duarte. Este posfácio é uma preciosidade rara. Ele situa o livro dentro da literatura brasileira. E sob este aspecto um livro absolutamente singular.

Maria Firmina tem consciência plena da importância e das repercussões de sua obra e ela mesma alerta sobre isso no prólogo: No posfácio lemos ele: "O prólogo estabelece o território cultural que embasa o projeto do romance. Estamos em 1859 e com seu gesto Maria Firmina aponta o caminho do romance romântico como atitude política de denúncia de injustiças há séculos arraigadas na sociedade patriarcal brasileira e que tinham no escravo - e também na mulher -, suas principais vítimas". Isso é raro na literatura brasileira. Se ela tivesse sido mais ouvida, certamente, não teríamos tido toda a literatura conciliatória de uma escravidão branda, afirmada, especialmente, a partir da década de 1930, quando surgiram as grandes linhas de interpretação de nossa escravidão.

Vamos a alguns dados bibliográficos, dados de contextualização, para melhor situar e compreender a obra. Estes dados estão na apresentação do livro, fornecidos por Eduardo de Assis Duarte: 1822 - Em 11 de março, nasce Maria Firmina dos Reis, em São Luís - MA. Consta em sua Certidão de Batismo ser 'filha natural' de Leonor Felipa dos Reis, 'mulata forra que foi escrava do Comendador Caetano José Teixeira'. Bastarda, não chega a conhecer seu pai, cujo nome está ausente na certidão de batismo.

1830 - Com o falecimento da mãe [...] passa a morar com a avó, na localidade de São José dos Guimarães [...] a autora viveu alguns anos em casa de uma tia materna 'mais bem situada economicamente'. Isso talvez explique o acesso ao letramento e a aquisição de um repertório literário que inclui a presença de obras do Romantismo brasileiro e francês".

1859 - Em gesto inédito em todo o território da lusofonia, Maria Firmina dos Reis traz a público, em São Luís do Maranhão o primeiro romance abolicionista de autoria feminina da língua portuguesa. [...] Maria Firmina dos Reis não grava seu nome na capa da primeira edição. Inscreve apenas o termo 'uma maranhense'.

1962 - O pesquisador e bibliófilo Horácio de Almeida encontra por acaso o romance Úrsula em meio a um lote de livros usados comprados por ele. [...] É 'o único exemplar remanescente', da edição de 1859. 1975 - Sai finalmente a edição fac-similar de Úrsula.

A escritora faleceu, pobre e cega em Guimarães, em 1917. Foi professora da escola pública, onde permitia a presença masculina e feminina na mesma sala. Eu pesquisei a localização da cidade de Guimarães. Fica na região litorânea, não distante de Alcântara. 58 quilômetros em linha reta e 200 por rodovia. Para se situar melhor, Alcântara está distante, por mar, 18 quilômetros de São Luís. Próximo a Guimarães está Turiaçu, cenário rural de outro monumental romance maranhense envolvendo a escravidão, Os tambores de São Luís, de Josué Montello. Digo isso para falar que no Maranhão se situava um dos mais importantes polos agrícolas do Brasil, ao longo do segundo reinado, no auge do regime da escravidão.


No posfácio estão assinaladas todas a virtudes do romance, que não são poucas, e que não cabe aqui, serem todas especificadas. Ao longo da leitura fiquei meio intrigado com algumas fragilidades psicológicas dos personagens do romance. Eduardo de Assis Duarte concorda, para dizer, que o romance obedece a outros objetivos e passa a elencá-los. O romance é profundamente humano, cristão e de aproximação entre a s raças. Mas não se trata de um romance piegas e conciliatório. A sua narrativa parte dos valores cristãos, para ter uma melhor sintonia com o público leitor. A partir disso é que afirma os seus propósitos, que estão alinhados no posfácio sob o título, prestem atenção: Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental. Um tema de profundidade. Lembrando que Achille Mbembe tem um livro sob o título de Crítica da razão negra.

Concluo o post com uma convocação à leitura e ao debate, com redobrada atenção ao capítulo IX, em que mãe Susana, conta para Túlio (Susana e Túlio são os personagens negros), que ganhara a alforria, sobre o significado da liberdade e sobre os fundamentos da organização solidária dos ancestrais africanos. Uma razão superior à razão ocidental. O romance se centra nos personagens brancos de Úrsula, anjo de bondade e Tancredo.Eles formam o par romântico. O pai de Tancredo, que lhe toma Adelaide, a menina de seus primeiros sonhos, e Fernando, o comendador. Fernando simboliza os horrores e sofrimentos da escravidão. Ele tinha o "inferno em seu coração".

sábado, 4 de agosto de 2018

FLIP - 2018. Os 10 livros mais vendidos.

Encerrada a Feira Literária de Paraty - 2018, a Livraria da Travessa, a livraria oficial do maior evento literário do país, divulgou a lista dos 10 livros mais vendidos da feira. A grande homenageada do ano foi a escritora Hilda Hilst, que também tem Almeida Prado em seu sobrenome. Mas vamos à lista:

1º.  Júbilo, memória e noviciado da paixão. Hilda Hist. Companhia das Letras.
O segundo lugar, o que mais me chamou a atenção.


2º. O que é o lugar da fala? Djamila Ribeiro. Letramento.

3º. O sol na cabeça. Geovani Martins. Companhia das Letras.

4º. Canção de ninar. Leila Slimani. Tusquets/Planeta.

5º. Quem tem medo do feminismo negro? Djamila Ribeiro. Companhia das Letras.

6º. Do amor tenho vivido. 50 poemas de Hilda Hilst. Companhia das Letras.

7º. Poesia que transforma. Bráulio Bessa. Sextante.

8º. Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha. Liudmila Petruchévskaia. Companhia das Letras.

9º. Memórias de porco-espinho. Alain Mabanckou. Malê.

10º. Caderno de memórias coloniais. Isabela Figueiredo. Todavia.

Particularmente me interessou o tema do segundo livro, O que é o lugar da fala. Eu explico o porquê.

Em 2018 estamos comemorando os 50 anos do lançamento da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. Deste livro, tomo o último parágrafo da apresentação, de Ernani Maria Fiori. Ela tem por título: Aprender a dizer a sua palavra. Ei-lo:

Em regime de dominação  de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua palavra e em que multidões imensas nem sequer tem condições para trabalhar, os dominadores mantém o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para dizerem a sua palavra, tem que lutar para tomá-la. Aprender a tomá-la dos que a detém e a recusam aos demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado - é a "Pedagogia do oprimido".



sexta-feira, 3 de agosto de 2018

A Pátria educadora em colapso. Renato Janine Ribeiro.

O livro de Renato Janine Ribeiro, A Pátria Educadora em colapso, tem um sub título interessante e revelador: Reflexões de um ex-ministro sobre a derrocada de Dilma Rousseff e o futuro da educação no Brasil. Convenhamos, o termo derrocada diz muita coisa. É um termo forte. O livro revela os bastidores de um governo, já usando o termo da capa, em derrocada.  Revela muito sobre a maneira pessoal de ser da ex presidente. Foi realmente um governo em derrocada? O que fica mais do que evidente é a dificuldade que ela teve em estabelecer relações de ordem política.
Bastidores de uma experiência e elementos para a definição de políticas educacionais.

O livro se divide em duas partes. Na primeira, Janine Ribeiro revela a sua experiência de seis meses na direção deste importante ministério. O convite, a nomeação e a sua exoneração pela página do UOL, bem antes de ser comunicado pessoalmente. A exoneração se deu, junto a uma nova reforma ministerial, dentro do critério de loteamento de cargos, numa última tentativa de salvar o mandato da presidente. Não se tratou do loteamento do MEC, mas da abertura de uma vaga para que Aloísio Mercadante voltasse a assumi-lo. A sua permanência na Casa Civil se tornara impossível. Isso e muitos outros fatos são narrados ao longo de 220 páginas, de um total de 351.
A segunda parte é dedicada a visão que autor tem sobre a educação e a perspectiva de, para ela, definir políticas públicas. Nela define prioridades e alinha prioridades, com total ênfase na criança e na alfabetização na idade correta. Esta deve ser feita ao longo dos três primeiros anos do ensino fundamental, com muito acompanhamento. Também apresenta um belo projeto para o ensino médio e para o ensino técnico profissional, além de algumas propostas para a reforma do ensino superior.

Renato Janine Ribeiro é um professor de filosofia, com especialidade no campo da ética. Trata-se de um professor muito respeitado. Tanto assim, que a sua nomeação foi muito bem recebida, e conferiu grande credibilidade ao Ministério. Além de professor na USP, Janine Ribeiro não é um neófito em cargos administrativos. Antes já fora diretor de avaliação da CAPES. É óbvio que seis meses no exercício do cargo, meses conturbados politicamente e marcados pela crescente insuficiência de recursos, não permitem fazer uma avaliação do que efetivamente poderia ser o seu trabalho na direção de tão importante ministério. Tivesse ele oito anos de mandato, como teve certo ministro de FHC, e a história e os resultados seriam outros.

O livro, creio eu, tem três grandes méritos: revelar os bastidores da trama que retirou Dilma do poder e alinhavar o perfil dos principais estrategistas desta trama; traçar o perfil de Dilma Rousseff, a sua imagem gerencial e a pouca habilidade na condução política  e revelar inúmeros  projetos que ele tinha em mente para definir e implementar políticas educacionais. Este terceiro mérito ocupa toda a segunda parte do livro. Vejamos uma de suas visões de Brasil, realidade a ser transformada pela educação: "O Brasil não é um fracasso na inclusão social; O Brasil tem quinhentos anos de sucesso na exclusão social". Por isso, o fundamento de todo o seu pensamento é oferecer oportunidades, através de políticas públicas, que conduzam à igualdade. Alguns títulos desta segunda parte nos mostram suas grandes preocupações: A prioridade zero: as crianças; A prioridade número 1: a alfabetização na idade certa; A prioridade número 2: o ensino médio e o técnico.

Como uma pequena amostra do teor de seu livro, destaco os três parágrafos finais de sua apresentação: "Ficarei feliz se conseguir emplacar alguns pontos: Antes de tudo, se convencer meus leitores de que há duas perguntas vitais para toda medida que se queira adotar na educação. A primeira é: a medida em questão contribui para melhorar o aprendizado? O foco deve estar sempre no aluno; ele vai aprender melhor? Não interessa se eu, tu, ele acreditarmos que é importante o aluno saber tais ou quais coisas. Se não fizerem sentido para a criança ou o adolescente, não valem a pena. Ponto.

A outra pergunta é tão decisiva quanto a anterior (ou mais): a medida em questão reduz a desigualdade? Nosso país tem a pior desigualdade que existe - a de oportunidades. defender que todos tenham as mesmas oportunidades é a essência do verdadeiro liberalismo. Mas no Brasil muita gente ainda teme a igualdade de oportunidades. Os privilegiados talvez tenham medo de perder suas posições, se enfrentarem uma real e leal concorrência. Pois bem, esta é a questão decisiva para mudar o Brasil: perguntar, cada vez que uma medida é proposta, se ela reduz a desigualdade, melhora a produção e a distribuição de renda.

Finalmente, também ficarei feliz se entendermos por que o aprendizado, fonte inesgotável de prazer e alegria para as crianças pequenas, vai se tornando um fardo para elas, a partir do momento que entram na escola. Precisamos tornar o conhecimento uma alegria para as pessoas ao longo da vida. Alcançar isso será decisivo para promover uma revolução não apenas educacional-, mas educativa, ou seja, motivada pelo interesse em formar as pessoas para a vida". Em suma, um livro com definições para uma política educacional ou educativa. Vale muito a pena ler e debater.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Canção para os fonemas da alegria. Thiago de Mello.

2018 é o ano em que comemoramos os cinquenta anos da publicação da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. É tempo de retomar a sua leitura. Sobre Paulo Freire quero apenas dizer que é um dos educadores que é tomado como referência no mundo inteiro, doutor honoris causa por 41 universidades (entre elas não se inclui a USP), e é hoje o Patrono da Educação Brasileira. Um dos orgulhos de minha vida é ter convivido com ele, ao menos por alguns momentos.
 O primeiro grande livro do mestre.

Educação como prática da liberdade é o primeiro de seus livros. Foi escrito num tempo de desassossego, em meio a fugas empreendidas após o golpe civil militar que derrubou um dos mais queridos governos que o Brasil já teve, o governo de João Goulart, o que mais profundamente pensou reformas para este país. Um país, que era, dominantemente, um país de analfabetos. Angicos (SE) já havia entrado na vida do grande pensador/educador.

Educação como prática da liberdade tem apresentação de Francisco Weffort, sob o título de Educação e Política - Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade, em que faz uma contextualização da obra, bem como apresenta os seus fundamentos. Mas também tem poesia, uma exaltação ao método de alfabetização, aplicado lá em Angicos. É sublime e é por isso que eu o apresento:

CANÇÃO PARA OS FONEMAS DA ALEGRIA.

THIAGO DE MELLO.

Peço licença para algumas coisas,
Primeiramente para desfraldar
este canto de amor publicamente.

Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrelas
que em meu peito floresce de menino.

Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano,
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,

e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas,
e descobrir que todos os fonemas
são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.

As vezes nem há casa: é só chão.
Mas sobre o chão quem reina agora é um homem
diferente, que acaba de nascer:

porque unindo pedaços de palavras
aos poucos vai unindo argila e orvalho,
tristeza e pão, cambão e beija-flor,

e acaba por unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre num clarão

que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que se paga por ser homem,
mas um modo de amar - e de ajudar

o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gosto de Jesus,
este homem renascido é um homem novo:

ele atravessa os campos espalhando
a boa nova, e chama os companheiros
a pelejar no limpo, fronte a fronte,

contra o bicho de quatrocentos anos, 
mas cujo fel espesso não resiste
a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler.

Santiago do Chile,
verão de 1964.

O poema também pode ser encontrado em: Faz Escuro Mas eu Canto - Porque a Manhã Vai Chegar. Poesias, Editora Civilização Brasileira, Rio, 1965.

Talvez destoe, mas creio que não. Ouvi de Paulo Freire - que do regional se vai ao universal. Então..... a minha alma gaúcha me obriga a acrescentar, ao menos uma estrofe, de um outro poema de amor, em que um encontro com a vida, só é possível, uma vez rompida toda a timidez de uma formação, possibilitada pelo envio de um simples bilhete, graças a alfabetização. Nada a ver com o método, mas sim, com o desejo.

"Hei de ter uma tabuada e o meu livro
 Queres Ler
Vou aprender a fazer contas e algum bilhete
 escrever
Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é 
meu bem querer
E se não for por escrito eu não me animo a
dizer" .

A autoria é dos irmãos João Batista Machado  e Júlio Machado da Silva Filho. Dou o link da música, com aquele que é considerado como o seu melhor intérprete. César Passarinho. https://www.youtube.com/watch?v=OsokOgHxT0Y