quinta-feira, 28 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 36. Os índios e a civilização. Darcy Ribeiro.

Este é o trigésimo sexto e último trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da análise de João Pacheco de Oliveira, antropólogo do Museu Nacional - da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de Os índios e a civilização, de Darcy Ribeiro. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, volume II, nas páginas 403 - 422, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. O conceito fundamental do livro é o de transfiguração étnica e a sua primeira publicação data do ano de 1970. Esse conceito está explicitado no subtítulo - a integração das populações indígenas no Brasil moderno.

Trigésima sexta resenha. A última. Volume II. Os índios e a civilização.

João Pacheco inicia a sua resenha falando que Darcy escreveu este livro tendo presente duas lealdades fundamentais: com a seriedade do trabalho científico e com uma profunda vinculação humana com as populações indígenas, com as suas diversidades socioculturais, com a sua penosa integração social e com o destino trágico de suas micro etnias. A sua segunda lealdade confere ao livro um grave tom de indignação e de denúncia.

O resenhista situa o livro como "escrito em linguagem simples e direta, despreocupado em exibir racionalidades ou uma erudição sufocante, tornando explícito seu comprometimento com as populações que estuda, Os índios e a civilização constitui um leitura útil e fascinante mesmo para o leitor comum. Sua carga informativa não é excessiva nem desvinculada dos conceitos que possibilitam compreender qual é e como foi gerada a condição presente das populações indígenas brasileiras, bem como a significação dos mecanismos e políticas acionados por diversos agentes para resolver a questão indígena". Ainda o situa ao lado das grandes interpretações de Brasil como Casa-Grande&Senzala Raízes do Brasil. Entra também nas grandes polêmicas da época, a respeito da integração ou desaparecimento dessas populações.

Afirma a característica da miscigenação como uma das marcas da população brasileira, destacando a presença da mulher indígena no primeiro século de colonização. Não havia praticamente mulheres brancas ou negras. Também apresenta dados históricos como a das tentativas da escravização, o isolamento e as constantes investidas coloniais na expansão da pecuária, das lavouras e de atividades extrativistas e mineradoras, com grandes perdas de núcleos tribais, populacionais e socioculturais. As tendências apontavam para a extinção ou para a adaptação. Apresenta os dados de Julian Stewart, de que no ano de 1500 havia no Brasil 1,1 milhão de indígenas e em 1948, apenas 50 mil, e que, entre 1500 e 1957 houve o desaparecimento de 87 etnias. Às etnias sobreviventes seria necessário garantir a sobrevivência. Vejamos o resenhista: 

"Para conseguir sobreviver essas etnias devem responder a desafios urgentes, buscando preservar sua identidade e autonomia étnica, bem como 'assegurar a continuidade de sua vida cultural mediante alterações estratégicas que evitem a desintegração de seu sistema associativo e a desmoralização completa do seu corpo de crenças e valores'. Esse processo adaptativo, que se impõe como imperativo aos grupos indígenas que sobreviveram ao extermínio, faz com que eles permaneçam indígenas 'já não nos seus hábitos e costumes, mas na auto-identificação como povos distintos do brasileiro e vítimas de sua dominação'. É a isso que Darcy Ribeiro chama de 'transfiguração étnica', afirmando que 'o impacto da civilização sobre as populações tribais dá lugar a transfigurações étnicas e não a assimilação plena"'.

Darcy Ribeiro não é apenas um intelectual, um professor ou um escritor. Ele não atua no abstrato. É também um ator. Aprendeu com Rondon, mas foi para muito além dele. Foi Darcy quem deu os fundamentos do indigenismo brasileiro e quem contribuiu decisivamente para a criação do Parque Indígena do Xingu. Além disso, sempre disse um grande não para a neutralidade. Sempre pôs o seu conhecimento a favor das populações indígenas.

O próprio Darcy define o objetivo de seu livro e de seu trabalho. "Alcançar uma compreensão acurada das situações de interação entre índios e frentes de expansão, a fim de chegar a generalizações significativas sobre o processo de mudança cultural". O plano da obra se divide em três partes. A primeira, visa uma visão de conjunto da sociedade indígena e as frentes de expansão agrícola, pastoril e extrativista, formas de expansão arcaica e despótica, que indicavam para a extinção das culturas. Na segunda, ele mostra as formas de integração entre índios e brancos, a etnocêntrica, romântica e absenteísta. Visou a superação das visões extremadas, em favor da igualdade de condições. Historia a fundação (1910) e a atuação do SPI, até a sua extinção, em 1967, mostrando ainda a atuação dos sertanistas. Na terceira parte ele aprofunda a questão das transfigurações étnicas e analisa o destino dos índios no Brasil.

Darcy também tem clareza  da relação que se estabelece entre a ciência e a ética, sendo a sobrevivência física das populações indígenas a sua preocupação maior, frente as ameaças representadas pela frentes expansionistas das fronteiras econômicas, pelas forças de mercado. Analisa os postos indígenas e a atuação dos antropólogos, condenando as transposições mecânicas. Aí volta para o tema da transfiguração étnica, um processo de sucessivas alterações. Ela obedece a quatro níveis diferentes: o ecológico; o biótico; o tecnológico e sócio econômico; o étnico cultural e sócio psicológico. Visou fundamentar um estatuto teórico para os seus trabalhos de preservação da identidade cultural das populações indígenas brasileiras.

Considera que a integração sempre foi uma acomodação penosa e apresenta dados do ano de 1957, com a diminuição da população e desaparecimento de etnias, apelando para sentimentos humanitários contra a tendência de destruição. Assim ele se manifesta, argumentando que "representando apenas um por mil da população brasileira, os índios são hoje quase inexpressivos no conjunto da nação e seus problemas são imponderáveis como problema nacional [...] as terras de que necessitam e a assistência de que carecem lhes podem ser concedidas sem grandes sacrifícios". Hoje ocupam 18,4% do território da Amazônia e 10% do território brasileiro, muitas dessas  terras em áreas de mananciais e de preservação ambiental. Ele ainda aponta para as perspectivas que se ofereciam ao tempo da escrita do livro, assim apresentadas pelo resenhista: "Embora o Estado brasileiro continue a ser responsável em última instância pelo bem-estar e pelo respeito aos direitos dos índios, não mais possui um poder de tutela sobre eles, que se fazem representar por organizações próprias, que já operam com recursos e parcerias múltiplas, mobilizando apoios em muitos níveis de ação". E João Pacheco de Oliveira assim termina a sua resenha:

"Afastando-se dessas posturas divergentes, Darcy aponta para os cientistas brasileiros uma direção original e crítica - a de uma ciência social consciente de seu enraizamento em uma conjuntura histórica específica, preocupada com o exercício da pesquisa empírica e com a elaboração teórica mas compromissada com os grupos sociais mais desfavorecidos. Recusando-se à condição de ideólogo e justificador do status quo, tomando os índios do Brasil e seus problemas como referência, com esse livro Darcy alcançou projeção nacional e internacional, produzindo o mais lido e conhecido estudo sobre os povos e culturas indígenas de nosso país".

Assim chego ao final desse trabalho levando uma certeza. Quem mais aprendeu fui eu. Como gostaria, que ao menos o mundo acadêmico, tivesse a oportunidade da leitura desses verdadeiros clássicos. Apresento ainda o link das cenas finais da vida de Darcy, quando ele recebe a extrema-unção de Leonardo Boff. Seria o que eu chamaria de uma boa morte. Darcy seguramente partiu em paz.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/04/darcy-ribeiro-recebe-extrema-uncao-de.html

E, ainda uma indicação de Antônio Cândido, do que ele considera o melhor livro sobre o tema nos tempos atuais. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/12/indios-no-brasil-historia-direitos-e.html

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 35. A integração do negro na sociedade de classes. Florestan Fernandes.

Este é o trigésimo quinto trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html 

Trata-se da resenha que Gabriel Cohn, professor do Departamento de Ciência Política da FFCH da Universidade de São Paulo, fez de A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, volume II, páginas 385 a 402, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. O livro, de dois volumes, aborda essa questão profundamente paradoxal. A integração do negro numa sociedade de classes. A primeira publicação data do ano de 1964.

Florestan Fernandes. No volume II. 

O livro, de dois volumes, O legado da raça branca O limiar de uma nova era, trata da formação de uma sociedade de classes em São Paulo. Trata, portanto, de um dos mais vivos problemas na formação da sociedade brasileira, como o é o da formação de uma sociedade de classes. Limiar de uma nova era era o nome dado ao principal órgão da imprensa negra nesse período. O livro é mais expressão de promessas do que o seu cumprimento, mais de anseios do que sua realização, mais de obstáculos do que trajetos bem sucedidos. Trata de um entrecruzamento de dois graves problemas, o dos ex-escravizados e a formação de uma sociedade de classes. Qual seria o caminho a percorrer? Haveria a abertura de espaços para a integração? Quais seriam as possibilidades de organização e de afirmação como classe?

Não há caminho reto e plano a percorrer. Se houve uma dita "Lei áurea" não houve uma "via áurea" para a efetivação da integração social. O negro deveria se afirmar como negro e como classe. A via, não áurea, o empurrava para o beco. Obstáculos praticamente intransponíveis impediam essa via. A história da sociedade brasileira se defrontava com o dilema de que o passado e o presente comprometiam irremediavelmente o nosso futuro. Mas não era essa a perspectiva da obra. Seria necessária uma mudança qualitativa nas relações. O antigo cativo, agora era um homem negro, membro ativo de uma classe. Sem isso, o dilema se apresentava como insolúvel. Mas como se efetivaria essa mudança? Como pode o antigo cativo afirmar-se como um agente de transformações históricas, liberar as forças antes tolhidas? O negro entra no âmago da história e não à sua margem, nas análises de Florestan. O negro é o povo.

Ao negro coube o pior ponto de partida, de largada, nessa disputa histórica dentro de uma sociedade de classes. Não era mais inteiramente excluído e nem devidamente equipado para a inclusão. Nesse processo era ele o mais vulnerável. Ele move-se em círculos econômicos e políticos fechados que atravessam toda a nossa história, embora, não mais afirmados como tal. Mas esse povo quer emergir da história. Era a parte mais penalizada e a integração não se daria como um dom, mas como uma tarefa, uma missão. Vejamos uma parte dessa análise, na interpretação do resenhista:

'"O ainda, aqui e o agora formaram o objeto de nossas indagações', esclarece o autor na apresentação da obra. Por isso, acrescenta, 'a constelação social constituída pela ordem social competitiva impôs-se como sistema de referência inevitável nas descrições e interpretações'. Repare-se que o foco da análise não é um tipo de sociedade. Este somente é a referência básica (mesmo que o autor explicitamente não vê razão para crer que, tal como se apresenta, essa sociedade pudesse proporcionar 'as soluções efetivas para o dilema racial brasileiro'). Nem mesmo é o negro como categoria social específica, ou nem sequer  as relações entre negros e brancos. O objeto real do estudo é a complexa e tensa dinâmica em que se entrelaçam o presente, o legado do passado e as possibilidades futuras na sociedade brasileira". A identificação de um legado histórico. Ir para além desse legado. Ele contém um fardo e uma promessa. Carga do passado e potência do presente. Um passado de persistência e um futuro como projeção. Os vetores e as linhas de força.

A partir desse ponto o resenhista entra na análise da estrutura da obra, uma obra de 795 páginas. Começa mostrando Florestan e a familiaridade com o tema, a partir de pesquisa realizada junto com Roger Bastide, da qual saiu o livro Brancos e negros em São Paulo. Na continuidade, duas décadas de dedicação ao tema, com enormes avanços especialmente sobre o conceito de "democracia racial", conceito que fundamentava a pesquisa anterior, financiada pela UNESCO. Em uma de suas análises surge um novo personagem, o personagem do povo brasileiro e este povo brasileiro era formado por negros. Do conceito de "democracia racial" ele evolui para o conceito mais amplo de uma democracia em toda a sociedade. E esta democracia tem obstáculos estruturais e de resistências muito fortes para que ela se concretizasse em todas as suas dimensões, a começar pela política. A partir daí apresenta o conteúdo e a forma dos dois volumes de sua obra.

A primeira é mais teórica. Fundamenta-se na coleta de dados retirados de livros, jornais, artigos e relatórios e a segunda consta da análise da pesquisa de campo. O resenhista apresenta alguns dados que considera mais relevantes, como a questão do legado da raça branca, título do primeiro volume. Os brancos viram-se livres de seus escravos, mais do que estes ganharam a sua liberdade. O foco é a cidade de São Paulo e a grande perspectiva é a de como os escravizados, agora livres, reuniam condições de sobrevivência numa sociedade de classes, competitiva, portanto. Para agravar a sua situação somavam-se às condições que traziam da escravidão, a concorrência sofrida com a chegada maciça da vinda de imigrantes europeus. Teriam que disputar os mesmos espaços. O resenhista assim procura interpretar o autor:

"Confrontados com experiências como a do contrato de trabalho eram levados a interpretá-las sob um critério rígido: nada que lembrasse as condições anteriores era aceitável, sobretudo quando estavam envolvidas restrições a uma liberdade percebida de modo difuso. Viam-se, assim, em situações em que o próprio modo como traduziam seu empenho na integração social voltava-se contra eles. Mesmo quando buscavam absorver uma exigência do novo modo de vida, como a ambição por riqueza e o avanço social, o faziam de maneira desastrosa. Essa ambição existia, mas foi 'exatamente a causa de sua perda, pois fomentou opções extremamente rígidas e negativas', comenta o autor. Nessas condições, 'a sociedade de classes torna-se uma miragem, que não lhe abre de pronto nenhuma via de redenção coletiva'. Nessa etapa inicial [...] a liberdade apresenta-se para o povo negro de modo ainda ambivalente, como exigência radical e também como fonte de frustrações. Mas, comenta o autor, 'para expurgar-se de uma herança cultural perniciosa e converter-se em homem livre, o 'negro precisava viver em liberdade. Se chegou a usar a liberdade contra si, isso aconteceu, porque não sabia proceder de outro modo..."'.

Eles teriam que cumprir um 'destino humano', com enormes impactos da liberdade sobre a constituição de sua personalidade. O livro ganha uma grande dramaticidade. Faltavam ao negro suportes perceptivos e cognitivos para uma 'boa' organização do comportamento humano. Florestan chega a usar termos que superam o que antes designava por heranças culturais intransponíveis como 'apanhados numa ratoeira'. Ele padecia de carência de técnicas sociais e culturais diante de sua nova situação. Constantemente ouvia expressões como "Aprenda a agir como branco" ou "Aprenda que você não é branco". Enfim, o problema da inserção numa sociedade de classes era um grande problema que se apresentava para toda a sociedade brasileira. E uma grande e grave pergunta. Até aonde vai a lealdade dos brancos nessa tarefa de integração. Afinal, esta integração não se daria no 'fechado mundo dos brancos'? Vejamos esse mundo, na voz do resenhista:

"Nesse sentido, 'a ordem social competitiva emergiu e expandiu-se, completamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos'. Mas uma ordem social simultaneamente competitiva e fechada é uma aberração, uma fonte de dilemas insolúveis. Claro, concordaria Florestan, e poderia acrescentar: é isso mesmo que eu queria mostrar, examinando como se deu e em nome do que persiste. Mas é a aberração em que historicamente nos foi dado viver, na qual a inconformidade negra não tem como vencer, nem como desistir". O resenhista ainda selecionou um parágrafo relativo aos preconceitos raciais. Vejamos:

"Ao mesmo tempo, não obstante, amortecem ou anulam as repercussões das tendências de democratização da riqueza, do prestígio social e do poder na esfera das relações raciais. Descobre-se, assim, uma faceta deveras instrutiva da nossa realidade racial. Ela sugere que assiste razão aos que apontam o Brasil como um caso extremo de tolerância racial. Entretanto, também evidencia o reverso da medalha, infelizmente negligenciado: a tolerância racial não está a serviço da igualdade racial e, por conseguinte, é uma condição neutra em face dos problemas humanos do 'negro', relacionados com a concentração racial da renda, do prestígio social e do poder. Ela se vincula claramente, de fato, à defesa e à perpetuação indefinida do status quo racial, através de efeitos que promovem a preservação indireta das disparidades sociais, que condicionam a subalternização permanente do negro e do mulato. As vítimas do preconceito e da discriminação são encaradas e tratadas, com relativo decoro e civilidade, como pessoas; contudo, como se fossem pela metade. Os seus interesses materiais ou morais não entram na linha de conta. O que importa, imediata e realmente, é a 'paz social', com tudo o que ela representa como fator de estabilidade dos padrões de dominação racial".

Diante dessa afirmação, dois pequenos parágrafos do resenhista como conclusão. "As consequências desse estado de coisas são muito fundas. Na consciência social do 'branco' o 'preconceito de cor' aparece 'como se constituísse uma necessidade maldita'. E, na mais pungente frase do livro: 'O negro prolonga, assim, o destino do escravo'.

Seres humanos pela metade. Necessidade maldita. prolongamento do destino do escravo. Conclusão: é tempo de se promover a Segunda abolição.

Deixo ainda o link da outra obra de Florestan Fernandes. A revolução burguesa no Brasil.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-19-revolucao.html 

E como de hábito, o trabalho anterior, Ordem e progresso, de Gilberto Freyre.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/um-banquete-no-tropico-34-ordem-e.html


segunda-feira, 25 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 34. Ordem e progresso. Gilberto Freyre.

Este é o trigésimo quarto trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da análise feita por Élide Rugai Bastos, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, de Ordem e progresso, de Gilberto Freyre. A resenha encontra-se em  Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, volume II, nas páginas 357 a 384, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. A primeira edição do livro data de 1959. Trata das transformações ocorridas no Brasil, na transição do Império para a República. A análise alcança, assim, a última década do século XIX e as três primeiras do XX.

No volume II, a resenha de Ordem e progresso.

A primeira observação da resenhista Élide Rugai Bastos sobre Ordem e progresso é relativa a uma observação de Freyre na apresentação: Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 3. Assim ele sugere uma unidade entre os seus três grandes livros. A formação pré nacional e nacional da sociedade brasileira em Casa-Grande&Senzala, a decadência do patriarcado rural até a República em Sobrados e mucambos e a análise da última década do século XIX e as três primeiras do XX, em Ordem e progresso. Os dois primeiros volumes tem o nordeste como cenário, enquanto que o terceiro, já abrange o Brasil inteiro. Segundo a crítica, este terceiro volume não teve o mesmo alcance que os dois anteriores.

A resenhista afirma ser o livro uma resposta à pergunta de como se manteve, na mudança do regime monárquico para o republicano, a organicidade da sociedade e a unidade nacional. De como se manteve a ordem democrática em meio a alterações bastante acentuadas, alterações na linguagem, nas crenças, na moda, na higiene, no sanitarismo, na urbanização, nas instituições e na economia. As diferentes regiões tem também ordem e progresso diferenciados. A base para o livro são entrevistas que Freyre realizou junto a pessoas que viveram as transições. O livro não é basicamente organizado em capítulos, mas em ensaios. O livro mostra também a quase total apatia do povo com relação às mudanças ocorridas. Houve uma adesão sem entusiasmo.

Três teriam sido os fatores responsáveis pelo relativo êxito do novo regime: a manutenção da integridade territorial, a defesa da propriedade e a defesa das liberdades individuais. Nenhuma voz poderosa saiu em defesa da Monarquia. Não éramos ainda um povo, numa definição sociológica. O lema "Ordem e progresso", privilegiava muito mais a ordem do que o progresso. Os nossos maiores revolucionários eram conservadores. Aqui os ventos revolucionários franceses sempre tiveram pouca força. A República representava uma continuidade de nosso passado, tendo o exército como guardião da ordem.

Uma importante parte do livro é dedicada às novas formas de socialização, acompanhando o fenômeno da transição do mundo rural para o urbano. Preserva-se, no entanto, todas as distinções entre a socialização dos meninos e das meninas e os modos europeus se impõem às do mundo rural do passado. Esse fenômeno passa por uma grande mudança em todos os hábitos e costumes. Mudanças também são trazidas pelo fenômeno da industrialização e da imigração. Abrem-se espaços, ainda que pequenos, para a democratização das relações sociais e dos mecanismos de ascensão social. Na educação ocorrem mudanças de método e de conteúdo.

Também merece destaque a observação de que a mudança mais profunda não foi a da Monarquia para a República, mas sim, a da abolição da escravidão, emancipação mais teórica do que prática. Houve também grandes dificuldades de inserção do negro e da mulher nas estruturas sociais em mudança, fator que causou grandes insatisfações, afetando a estabilidade social. O país necessitaria de mudanças mais profundas, as de superfície já não davam conta da manutenção da ordem. A indústria representou a modernização mas relegou a um segundo plano a economia do campo. Houve também toda uma secularização nos valores que regiam a sociedade. A assistência social saiu das instituições de caridade para as mãos do Estado, o que representou um total abandono. A religião perdeu a sua condição de guardiã da moralidade, os costumes se secularizaram e a liberdade religiosa foi ganhando força. Tudo isso como consequência da separação entre Igreja e Estado, no advento da República. A análise ainda passa pela ebulição dos anos 1920. A questão social vai ganhando força e a República passa a viver a sua grande crise, crise de descompasso entre o governo e a sociedade. A modernização foi feita de cima para baixo. Sempre uma modernização conservadora.

Em suma, o livro que não é de fácil leitura, procurou a resposta à pergunta inicialmente feita. Vejamos o parágrafo final da resenha: "A tarefa que Gilberto propõe à sociologia é a resposta à pergunta: como se mantém a organicidade e a unidade nacionais? Vai buscá-la na análise das formas pelas quais se dá a internalização da ordem social, no caso do texto, através do processo de socialização. Aqui reside o grande alcance de seu livro. Mas também o seu limite, o que levou a que se fizessem várias críticas ao trabalho, principalmente na direção de apontar-se a centralidade de sua análise na esfera da cultura, o que o impede de abordar de frente os desafios contidos no projeto emancipatório da modernidade".

Deixo ainda a resenha dos dois livros anteriores. Casa-Grande&Senzala

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-10-casa-grande.html

Sobrados e mucambos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/um-banquete-no-tropico-33-sobrados-e.html


sábado, 23 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 33. Sobrados e mucambos. Gilberto Freyre.

Este o trigésimo terceiro trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por Brasílio Sallum Jr., professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, de Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, volume II, nas páginas 327 a 356, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. Sobrados e mucambos analisa o processo de urbanização do Brasil e a decadência do patriarcalismo que se formou nos três primeiros séculos de nossa colonização. Além disso o livro desfaz o mito de que a miscigenação seria um fator impeditivo para o nosso desenvolvimento. A primeira publicação data do ano de 1936.

No volume II, a resenha de Sobrados e mucambos. 


O livro teve boa recepção mas não chegou a repetir os êxitos de Casa-Grande&Senzala. Na segunda edição o livro veio com acréscimos e reformulações. É um livro contra as crenças da época, de que clima, raça e a incivilidade dos portugueses seriam um impedimento para o nosso processo civilizatório. A partir da destruição desses pilares foi possível uma nova visão, uma visão positiva para o Brasil. O livro também louva a miscigenação, que se refletiu numa maior adaptabilidade, ao contrário da rigidez calvinista dos ingleses. O livro, nesse sentido, representa uma continuidade de Casa-Grande&Senzala ao romper com os complexos de inferioridade e afirmar possibilidades de grandeza para Brasil. O livro tem como foco a organização patriarcal da sociedade brasileira. Vejamos as palavras do resenhista: "Com efeito, no período colonial brasileiro, a família patriarcal arraigada no meio rural fora a forma de organização social mediante a qual os processos de miscigenação cultural e racial se desenvolveram, amortecendo as oposições inerentes às relações entre brancos e escravos de cor".

O subtítulo de Sobrados e mucambos também entrega o teor do livro: decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano. O fenômeno do urbano passa a ocorrer com maior intensidade a partir do final do século XVIII e ao longo do século XIX. A vinda da família real ao Brasil (1808) foi decisiva para tal fator. O livro está estruturado em torno de doze capítulos, escritos em forma de espiral, com idas e vindas.

Raça, classe e região se constituem no âmago do livro. O patriarcado colonial brasileiro foi muito mais do que a simples família e agregados. Foi uma verdadeira instituição, um complexo econômico, social e político, com inúmeras variações, ocorridas ao longo de quatro séculos. Foi uma espécie de organização feudal da economia, com toda a rigidez da inflexibilidade da mobilidade social, permitida apenas por pequenas brechas, possíveis graças ao pastoreio e o cultivo de alguns produtos para a auto suficiência da Casa-Grande. Apesar de toda a rigidez da estrutura, a miscigenação aconteceu com a fusão racial e cultural entre portugueses, negros africanos e as populações indígenas nativas. Vejamos este fato nas palavras do próprio Freyre:

"Até o que havia de mais renitentemente aristocrático na organização patriarcal de família, de economia e de cultura foi atingido pelo que sempre houve de contagiosamente democrático ou democratizante e até anarquizante, no amalgamento de raças e culturas e, até certo ponto, de tipos regionais, dando-se uma espécie de despedaçamento das formas mais duras, ou menos plásticas, por excesso de trepidação ou inquietação dos conteúdos".

Essa estrutura patriarcal rural começa a ruir com o fenômeno da urbanização, em que a cidade se volta contra o engenho e o Estado começa a intervir na estrutura da família. A Coroa e a cidade entram em conflito com a aristocracia rural. A urbanização, que já iniciara em Pernambuco e em Minas Gerais se acentua com o estabelecimento da família real no Rio de Janeiro. A vida urbana se adensava. Todos queriam estar sob o olhar do rei. Freyre aponta para o surgimento do urbano. Ocorreu "uma diminuição da distância não só física como social entre a gente senhoril e atividades mecânicas, comerciais, industriais que começaram a desenvolver-se, nas mesmas cidades, em relativa independência dos senhores de sobrados, embora, principalmente, para seu uso e conveniência". E o resenhista acrescenta. "A serviço dos sobrados surgiram marcenarias e carpintarias, boticas e drogarias, sorveterias onde também vendiam-se doces finos; lojas de miudezas ou de ferragens, armazéns de secos e molhados, alfaiatarias, casas de pianos e de música, colégios, bancos, etc.".

Começam então também os enormes contrastes urbanos, mas em formas diferentes da organização patriarcal. Se acentuam as polarizações sociais. Vejamos duas citações em referência. "... os jardins, os passeios chamados públicos, as praças sombreadas de gameleiras, e, por muito tempo, cercadas de grades de ferro semelhantes às que foram substituindo os muros em redor das casas mais elegantes, se limitavam ao uso de gente de botina, de cartola, de gravata, de chapéu-de-sol [...] [Limitavam-se] ao uso e gozo do homem de certa situação social - mas do homem, a mulher e o menino conservando-se dentro de casa, ou, no fundo do sítio, quando muito na varanda, no postigo, no palanque do muro, na grade do jardim". Por outro lado, a exclusão.

"Não só os negros de pé no chão [...] como aos próprios caixeiros  de chinelo de tapete e cabelo cortado à escovinha e até aos portugueses gordos de tamanco e cara raspada estavam fechados aqueles jardins e passeios chamados públicos, aquelas calçadas e ruas nobres, por onde os homens de posição, senhores de barba fechada ou de suíças, de botinas de bico fino, de cartola, de gravata, ostentavam todas essas insígnias de raça superior, de classe dominadora, de sexo privilegiado, à sombra de chapéus-de-sol de quase réis".

Com a urbanização surgiram outras vozes, para além do patriarca, como a da Igreja, do governo, do banco, do colégio, da fábrica, da oficina, da loja, do médico, do juiz, da polícia. Tudo isso significou redução do poder patriarcal. A praça voltara-se contra a roça, o Estado contra a família e o governo contra o Patriarca. Um dos mais belos capítulos, com certeza, é o que trata das relações familiares, marido e mulher, pais e filhos. Constata-se o minar do poder do Pater familias, pela diminuição da distância entre os seus membros. Ventos de emancipação individual. É o capítulo terceiro que trata da relação pai e filho. Dissolvem-se as chamadas pedagogias sádicas da violência, da imposição pela força. Da mesma forma mudaram as relações marido e mulher, que sob o patriarcado eram relações mórbidas.

Freyre mostra a origem dessas mudanças: "muito menos devoção religiosa que antigamente. Menos confessionário. Menos conversa com as mucamas. menos história da carrochinha contada pela negra velha. E mais romance. O médico da família mais poderoso que o confessor. O teatro seduzindo a mulher elegante mais que a igreja. O próprio "baile mascarado" atraindo senhoras de sobrado". Mas no geral, os espaços femininos ainda se limitavam aos espaços domésticos. Mas de uma maneira geral, os fenômenos sociológicos começaram a se impor aos fatores biológicos.

Outro fenômeno observado por Freyre é a volta da europeização com a urbanização. Com a abolição do tráfico, as influências orientais trazidas pela cultura africana se fragilizam e, com a vinda da família real, se acentuam as influências europeizantes. O mesmo ocorre com a ida dos filhos da aristocracia às universidades europeias. Na volta trazem junto os hábitos adquiridos ao longo de suas permanências. As influências inglesas e francesas passam a ser totalmente preponderantes. Para isso também contribui a chamada revolução tecnológica, fenômeno que também mexeu na rigidez da estrutura social, permitindo possibilidades de ascensão. As relações sociais se burocratizam. A urbanização também permite a ascensão do bacharel e do mulato. Ocorre inclusive, o chamado fenômeno do bacharelismo, fenômeno esse acusado de tantos males, por motivo de transposições culturais das instituições europeias, alheias à realidade brasileira. O bacharelismo se acentua com a criação dos cursos de Direito no Recife e em São Paulo.

Em suma, Freyre destaca o elemento da miscigenação em nossa formação como altamente positivo. "O característico mais vivo do ambiente social brasileiro parece-nos hoje o da reciprocidade entre as culturas; e não o marcado pelo domínio de uma sobre a outra, ao ponto da de baixo nada poder dar de si, conservando-se como em outros países de miscigenação, num estado de quase permanente crispação ou de recalque".

Por fim, os dois parágrafos finais da análise do resenhista, destacando os valores da miscigenação, biológica e social: "E acrescenta, incluindo os imigrantes no argumento: 'Biológica e sociologicamente mestiça. Pois consideráveis grupos de populações meridionais do Brasil, cuja situação de filhos de italianos, poloneses, alemães, sírios, japoneses assemelha-se psicologicamente e sociologicamente - embora não culturalmente - à de mestiços, dão extensão à caracterização da massa brasileira como massa mestiça'. Isso permitiria entender por que há, ao invés, incompreensão entre a massa brasileira e os líderes de tipo 'europeu'.

Essas e outras questões, que dizem respeito ao surgimento no Brasil de uma sociedade ao mesmo tempo mestiça, diversificada, na sua composição étnica e cultural e predominantemente individualista na sua organização familiar, não são tratadas com mais minúcia em Sobrados e mucambos. São deixadas para o próximo volume da série, Ordem e progresso".

Deixo ainda a resenha de Casa-Grande&Senzala.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-10-casa-grande.html 

E, como de hábito, o trabalho anterior, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-32-populacoes.html


quinta-feira, 21 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 32. Populações meridionais do Brasil. Oliveira Viana.

Este é o trigésimo segundo trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por Gildo Marçal Brandão, professor do departamento de Política da Universidade de São Paulo, de Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana. A resenha encontra-se no livro Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, volume II, páginas 299 a 325, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. O livro possui dois volumes, sendo o primeiro publicado em 1920 e o segundo em 1952. Um terceiro volume foi projetado, mas nunca publicado.

No volume II, a resenha de Populações meridionais do Brasil.

A culpa dos problemas brasileiros deve ser debitada na conta dos liberais, por quererem transplantar para cá o parlamentarismo inglês, a democracia liberal francesa e o federalismo e a descentralização dos Estados Unidos. Por sermos distintos desses povos, não poderíamos ter copiado suas instituições, mas sim, ter criado as nossas, a partir do conhecimento de nós mesmos, pelo conhecimento de nossa formação histórico-social, pela criação de instituições políticas próprias. Como remédio, pregava a necessidade de uma "coragem infinita", de "contravir ostensivamente às ideias de liberdade" e construir um poderoso Estado centralizado, "capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional". É assim que, mais ou menos, Gildo Marçal Brandão abre a resenha do livro de Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil.

Para isso, Oliveira Viana, fluminense de Saquarema, formado em direito pelo Rio de Janeiro, militante na imprensa do estado, se embrenhou por um vasto campo de pesquisas, das quais deveriam sair três livros. Dois efetivamente aconteceram. O primeiro foi escrito entre 1916-1918 e publicado em 1920, com o título Populações meridionais do Brasil. O livro foi recebido com raro entusiasmo e se somava à todas as críticas que se dirigiam ao regime republicano brasileiro. Ele estudava as populações de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O principal fundamento da obra é o racismo e a condenação da mestiçagem, que serviram de artilharia contra ele, disparadas por autores como Sérgio Buarque de Holanda, Nelson W. Sodré, Dante M. Leite, José Honório Rodrigues e Vanilda Paiva. Bateram pesado em suas concepções arianizantes, de centralização e de um Estado forte e autoritário.

Se jogássemos fora essas velharias racistas, nos assegura o resenhista, o livro poderia figurar ao lado da obra de Gilberto Freyre e de Caio Prado Júnior, na estante de livros sobre a formação do pensamento social e político brasileiro. Apesar de tudo ele aponta para as grande feridas incrustadas em nossa história. O seu livro estuda as instituições e a psicologias das populações, paulista, fluminense e mineira, no primeiro volume e os gaúchos, no segundo. Este segundo volume aparece apenas em 1952, livro póstumo e em condições que já não lhe eram mais favoráveis. O terceiro volume, sobre as populações setentrionais, com foco maior no Ceará, não chegou nem a ser começado. Trata-se de um projeto extremamente ambicioso.

Qual era a sua intenção? O que lhe interessa, afirma o resenhista, é, com base nesse conhecimento 'realístico" e "objetivo, formular um projeto de um novo Estado e uma nova diretriz política capaz de criar uma nação solidária, retomando a obra interrompida dos "reacionários audazes" que salvaram o Império. A crítica dirige-se a intelectuais juridicistas como Ruy Barbosa.

Os seus livros constituíam assim, um projeto de salvação para o país. O resenhista aponta tratar-se de um livro de difícil leitura, por falta de uma maior sistematização e em que o principal nem sempre está evidente. São matérias ajuntadas, sem as costuras de ligação. Os dois volumes poderiam ter sido bem enxugados. No volume sobre o sul aborda o conflito entre portugueses e espanhóis, entre outros temas, como os dez anos da República Piratini. O seu principal foco é o da formação de uma aristocracia rural, dotada de rara nobreza. Se formaram três grandes tipos de povo, conforme as diferentes regiões. Também existe uma certa tensão entre os dois volumes. Não consegue harmonizar "a franca apologia ao espírito guerreiro e político, autoritário e democrático do gaúcho, nem sempre compatível com a "função providencial" e "força ponderadora" que reserva às populações meridionais", nos assevera o resenhista.

O resenhista também faz uma importante observação com relação ao método da obra. Por método se entendia a posição que o autor tomava diante da realidade, bem como o uso do conhecimento para mudar essa realidade. Dessa forma seus inimigos eram o bacharelismo dos políticos e juristas, com raciocínios abstratos e soluções livrescas, contra as quais apresentava suas soluções fundadas no conhecimento obtido através de suas pesquisas. Considera que ao longo dos primeiros séculos coloniais houve duas grandes rupturas: A primeira, a da independência, com muitas permanências e a segunda, com a República e a descentralização. Esta foi precedida pela abolição, com a desestruturação total da nossa economia. Dá grande destaque para a questão de que na formação brasileira o rural prevaleceu sobre o mundo urbano. Nesse mundo rural formou-se uma aristocracia, merecedora de todos os seus elogios.

E aí, como nos aponta a resenha, seguem-se as partes mais criticadas do livro. Afirma que os primeiros portugueses que aqui aportaram não eram degradados, mas pertenciam a mais alta nobreza, eram cultos, ativos e empreendedores. Eugenicamente eram e se mantiveram puros. Reproduziram os seus valores em São Paulo e em Pernambuco. Ao longo de três séculos passaram por um processo seletivo de formação de uma aristocracia rural. Tinham pela frente um mundo a explorar. Os caminhos apontavam para o interior, como aconteceu, especialmente com a descoberta do ouro em Minas Gerais.

Esta aristocracia rural se constitui no "centro de polarização dos elementos arianos da nacionalidade". Mantiveram as melhores qualidades de sua ancestralidade lusitana. A dissolução acontecia na plebe, que acusa de debilidade moral. Mas estes não ascendiam. Vejamos uma citação sua: "Os preconceitos de cor e sangue, que reinam tão soberanamente na sociedade do I e II e III séculos, tem, destarte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis os aparelhos seletivos, que impedem a ascensão até às classes dirigentes desses mestiços inferiores, que formigam nas subcamadas da população dos latifúndios e formam a base numérica das bandeiras colonizadoras".

Além da miscigenação, a grande propriedade levou ao imperativo da escravidão e, pela ausência de oportunidades, à simplificação da estrutura social, sempre apenas, dual. Em suma, os primeiros séculos foram marcado por poucos conflitos externos, nada além de escaramuças litorâneas e no sul e na questão interna nem índios, nem quilombolas ofereceram grande resistência. Os clãs patriarcais marcaram três séculos de colonização. Havia pouca solidariedade social e a justiça era um instrumento de dominação do senhor. Assim sintetiza esse período colonial:

"As instituições de ordem administrativa e política, que regem nossa sociedade durante a sua evolução histórica, não amparam nunca, de modo cabal, os cidadãos sem fortuna, as classes inferiores, as camadas proletárias contra a violência, o arbítrio e a ilegalidade. Por outro lado, esse amparo também não encontram elas em quaisquer outras instituições de ordem privada e social".

A terceira e quarta parte dos dois volumes são dedicados às funções sociais da aristocracia. Elas eram alijadas das decisões. Todas elas eram da competência da Coroa. A vinda da família real afetou profundamente a estrutura social, com uma crescente tendência à urbanização. Todos queriam viver próximos à "Versalhes Tropical". E ao lado da aristocracia rural forma-se uma burguesia urbana, composta de portugueses sem pedigree. Ao redor da corte forma-se também um círculos de parasitas funcionários. A partir de 1818 começam as hostilidades contra os portugueses. Também as elites regionais, municipais e estaduais merecem a sua atenção.

O acidente da vinda de D. João alterou significativamente a nossa estruturação social. Com a independência entramos em nosso IV século de história, o mais promissor, em que o imperador conseguiu conter os caudilhos, em alternância de poder entre conservadores e liberas e vivemos um período de "unidade, ascendência, consolidação e estabilidade". Para isso muito contribuíram o Conselho de Estado e o Senado. O conselho era formado pelos homens da aristocracia rural. As medidas centralizadoras de 1841, tudo fizeram para melhorar a situação. A ordem centralizadora do império precisaria ser retomada. A ordem prevaleceria sobre a liberdade, para a construção da "boa ordem".

Por fim, o resenhista aponta para os objetivos da obra, - primeiro: "Realizar, pela ação racional do Estado, o milagre de dar a essa nacionalidade em formação uma subconsciência jurídica, criando-lhe a medula da legalidade, os instintos viscerais da obediência à autoridade e à lei, aquilo que Ihering chama 'o poder moral da ideia do Estado"' e, segundo:

"A predominância da autoridade sobre a liberdade resultava, portanto, da inorganicidade da sociedade civil. Nação e liberdade não sobreviveriam sem um Estado forte, qualificado, imune aos particularismos, capaz de subordinar o interesse privado ao social e controlar os efeitos destrutivos desencadeados com a Abolição. Direitos civis e unidade nacional garantidos pela centralização política, eis o programa de Oliveira Viana. O amplo diagnóstico de Populações meridionais do Brasil contém uma política - o fortalecimento e a modernização do Estado, o resgate das raízes agrárias da vida social, a educação das oligarquias, a recusa à democracia liberal e representativa, etc. -, mas será preciso esperar os anos 1930 para que ela se converta em políticas, em instrumentos estatais de intervenção social". Deixo ainda o livro de Oliveira Viana, Instituições políticas brasileiras, aqui já resenhado.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-14-instituicoes.html e, como de hábito, o último trabalho publicado, História da literatura brasileira de José veríssimo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-31-historia-da.html

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 31. História da literatura brasileira. José Veríssimo.

Este é o trigésimo primeiro trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por João Alexandre Barbosa, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, de História da literatura brasileira, de José Veríssimo. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - Um banquete no trópico, volume II, nas páginas 279 a 297, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. A publicação da obra é póstuma, do ano de 1916, o mesmo ano de sua morte.

No volume II, a resenha da História da literatura brasileira. 


A resenha apresenta três grandes tópicos: o autor e o contexto da obra, o contexto da época e a análise de seu livro. José Veríssimo nasceu em Óbidos, no Pará, em 1857 e morreu no Rio de Janeiro em 1916. Ingressou na escola politécnica do Rio de Janeiro, interrompendo porém, o curso por motivos de saúde. Dedica então os seus estudos à crítica literária, sendo uma das lideranças críticas da intelectualidade brasileira. No Rio de Janeiro é assíduo colaborador de jornais e revistas. O seu livro é uma coletânea de artigos já anteriormente publicados. Teve notável desempenho na criação e estruturação da Academia Brasileira de Letras. Otto Maria Carpeaux assim define o seu livro: "O livro não é propriamente obra de um historiador de letras e sim a palavra final de um crítico literário".

O livro é formado por dezenove capítulos, precedidos de uma introdução, que, para facilitar o acompanhamento, eu nomino. I. A primitiva sociedade colonial; II. Primeiras manifestações literárias; III. O grupo baiano; IV. Gregório de Matos; V. Aspectos literários do século XVIII; VI. A plêiade mineira; VII. Os predecessores do romantismo; VIII. O romantismo e a primeira geração romântica; IX. Magalhães e o romantismo; X. Os próceres do romantismo; XI. Gonçalves Dias e o grupo maranhense; XII. A segunda geração romântica, os prosadores; XIII. A segunda geração romântica, os poetas; XIV. Os últimos românticos (prosadores e poetas); XV. O modernismo; XVI. O naturalismo e o parnasianismo; XVII. O teatro e a literatura dramática; XVIII. Publicistas, oradores, críticos; XIX. Machado de Assis.

José Veríssimo professava o naturalismo. O resenhista chama a atenção para a ausência dos poetas simbolistas e destaca os capítulos IV e XIX, dedicados a Gregório de Matos e Machado de Assis. Em parte desconsidera a importância de Gregório de Matos e quanto a Machado de Assis, mais o consagra do que critica. O resenhista também destaca a ênfase dada ao romantismo, ao qual dedica oito capítulos.

Quanto ao contexto da época, as atividades crítico-literárias e históricas faziam parte do seu tempo. A sua História da literatura brasileira é a terceira obra do gênero. Foi precedido por Ferdinand Wolf e o seu O Brasil literário e Sílvio Romero com a sua História da Literatura brasileira. A crítica literária surgiu com as academias do período romântico, na busca de uma identidade nacional e o desejo pela independência política. Foram essas sínteses que possibilitaram o grande livro de Antônio Cândido. Seu tempo foi um tempo de enfrentar o positivismo e o evolucionismo e os determinismos que provocavam a descrença no Brasil. Também recebeu as influências estrangeiras do período. Vejamos: "Com essa indicação de fontes estrangeiras, que completam as brasileiras da herança romântica e da contracorrente romerina (Sílvio Romero), está desenhado o contexto mais amplo para a leitura de História da literatura brasileira.

A obra reflete a tensão entre a dependência e a autonomia com relação a literatura portuguesa, trazida pelo romantismo e ele traça belos paralelos de correlação. "A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento que não se confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade de língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política...". A partir dessas observações ele segue a periodização que podemos observar no sumário, com toda a ênfase, que já apontamos, para o romantismo. Ele dá grande importância à escolha dos autores que ele analisa. Ele os escolhe a partir de uma concepção humanizadora da literatura, que aprendeu com Lanson. Vejamos uma transcrição sua (belíssima, por sinal) desse autor:

"A literatura destina-se a nos causar um prazer intelectual, conjunto ao exercício de nossas faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais força, ductilidade e riqueza. É assim a literatura um instrumento da cultura interior, tal o seu verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de habituar-se a tomar gosto pelas ideias. Faz com que encontremos num emprego do nosso pensamento, simultaneamente um prazer, um repouso, uma renovação. Descansa das tarefas profissionais e sobreleva o espírito aos conhecimentos, aos interesses, aos preconceitos de ofício, ela 'humaniza' os especialistas. Mais do que nunca precisam hoje os espíritos de têmpera filosófica; os estudos técnicos de filosofia, porém, nem todos são acessíveis. É a literatura, no mais nobre sentido do termo, uma vulgarização da filosofia: mediante ela são as nossas sociedades atravessadas por todas as grandes correntes filosóficas determinantes do progresso ou ao menos das mudanças sociais; é ela  quem mantém nas almas, sem isso deprimidas pela necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais, a ânsia das altas questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um alvo. Para muitos dos nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura somente advém os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao menos mister embrutecedor". 

Num passeio pelos capítulos, o resenhista se detém no de número XV, sobre o modernismo. Ele traça as suas raízes: "O movimento de ideias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se começa a operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo darwinista, o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e quejandas correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam por termo ao domínio exclusivo do Romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos depois de verificada a sua infância ali". É o movimento mundial influenciando a nossa literatura.

Vejamos ainda o parágrafo final da resenha: "Sendo assim, com a sua História, José Veríssimo, por um lado, encerrava toda aquela sequência de esforços oitocentistas em pró de uma história literária brasileira, desde os primeiros indícios românticos até a contracorrente de Sílvio Romero, por outro, de uma outra maneira, até mesmo pelas dificuldades em que se debatia, iniciava a abertura para uma nova historiografia que somente quase meio século depois, nos anos 50 do século XX, encontraria a sua real continuidade".  Deixo ainda dois links, que podem ajudar na interpretação desse trabalho. O primeiro sobre o livro de Sílvio Romero e o segundo, o de Antônio Cândido.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-27-historia-da.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico17-formacao-da.html

E, como de hábito, o trabalho anterior, sobre A organização nacional, de Alberto Torres.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-30-organizacao.html


terça-feira, 19 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 30. A organização nacional. Alberto Torres.

Este é o trigésimo trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por Rolf Kuntz, professor de Filosofa da FFLCH, da Universidade de São Paulo, do livro A organização nacional, de Alberto Torres. A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil - um banquete no trópico, volume II, páginas 259 a 278, livro organizado por Lourenço Dantas Mota. O livro teve a sua primeira edição no ano de 1914 e destinava-se basicamente a uma revisão da Constituição republicana de 1891, por ter sido uma Constituição transplantada, sem identidade nacional. A essa reforma ele chamava de A organização nacional.

No volume II, a resenha de A organização nacional.

Vou começar o post com o parágrafo de abertura da resenha de Rolf Kuntz: "Soluções políticas não se inventam: só se pode produzi-las observando a terra e a gente, para identificar os interesses gerais e permanentes do país. Por isso mesmo não se copiam. Soluções copiadas, como o federalismo inscrito na constituição de 1891, a primeira da República, são condenadas ao fracasso. A denominação Estados Unidos do Brasil consagrada no Artigo 1º reflete um equívoco. Não se transplantam histórias, costumes, crenças, condições naturais. Essas ideias balizam os principais escritos de Alberto Torres e informam, do começo ao fim, as propostas contidas no livro A organização nacional. Ele defende, nesse texto, o fortalecimento do governo central, a reconversão de estados em províncias, a criação de um poder coordenador e a inclusão, entre os senadores, de um grupo eleito por sindicatos, associações profissionais, igrejas e outras entidades de representação civil. Define o Brasil como um país de vocação agrícola e prega a diversificação da agricultura e uma economia menos dependente da exportação. Insiste na preservação dos recursos naturais - a tese é econômica e ecológica - e a distribuição de terras e meios de trabalho aos agricultores. Educação básica, difusão de técnicas agrícolas e criação de um instituto de estudos brasileiros são as suas principais propostas para o desenvolvimento cultural". É uma síntese de seu A organização nacional.

O livro contém suas marcas pessoais como o antirracismo e a não transposição de instituições políticas, um modismo dos pensadores de seu tempo. Suas ideias de identidade nacional foram inspiradoras para a Semana da Arte Moderna, enquanto as de centralização, motivaram o integralismo de Plínio Salgado. Como juiz do STF se dedicou à defesa da Soberania e identidade nacional e dos direitos individuais. O resenhista traça uma bela contextualização do período em que escreveu o seu principal livro, com destaque para as decepções com o regime republicano. Foram duas décadas de desequilíbrio regional, de corrupção e atraso econômico. Como causas, aponta para o desencontro entre o homem e o meio natural, diferente do de suas origens europeias e para a desorganização que se estabeleceu em decorrência de uma falta de concepção política que definisse os interesses comuns em torno dos quais o país se agregaria. O estadista, acima de tudo, deveria ser um organizador, um sistematizador dos interesses nacionais. A Constituição seria para ele "uma lei política, de fins práticos, fundada em objetos sociais concretos, e destinada principalmente a manter ligados, harmônica e organicamente, os interesses gerais e permanentes do país". A de 1891 era contra a organização.

O resenhista também nos apresenta seus dados biográficos. É filho de juiz, nascido em Itaboraí (RJ), que irá começar os estudos de medicina no RJ e abandoná-los pelo curso de direito em São Paulo e concluído no Recife, por incompatibilidades com um professor. Formado, ingressa no mundo jurídico, no jornalismo e na vida política. Era um pacifista que previu a primeira grande guerra. Barbosa Lima Sobrinho assim o definiu: "Alberto Torres sente como que a presença da catástrofe próxima, a Grande Guerra que vai consumir milhões de vidas humanas, nos campos de batalha ou nas trincheiras, em que na verdade lutam antagonismos econômicos, defendendo-se e alimentando-se com as proteínas da "chair à canon".

O resenhista assim apresenta a obra: "A organização nacional é um texto formado por um longo prefácio e três seções, 'A terra e a gene do Brasil', com dez capítulos, 'O governo e a política', com seis, e 'Da revisão constitucional', com quatro. O projeto de revisão constitucional aparece num apêndice, no final, depois da Constituição de 1891".

No prefácio, depois de refutar a Constituição de 1891, com sua "roupagem de empréstimo", inspirado no australiano Cockburn, prega uma forte intervenção estatal, uma presença ativa do poder público na condução dos interesses nacionais.

Na primeira parte mostra os desajustes entre a terra e a gente do Brasil, um desajuste histórico em que o homem não se adaptou à terra, nem às instituições. O Brasil carecia de estadistas de estatura, como o eram os pais fundadores dos Estados Unidos. Aqui não havia princípios que amalgamariam a unidade nacional. Só havia interesses incrustados nos homens do poder. A ausência de solidariedade era total. Na primeira seção, na descrição do povo e de sua ocupação econômica, aponta para o caráter predador da economia, voltada totalmente para a exportação. De patriotismo tínhamos apenas assomos mas não uma ação tenaz, refletida e duradoura. Apontava para os fatores em torno dos quais a unidade nacional seria construída. Sua visão era fundada no positivismo. Numa primeira leitura, em 2009, eu sublinhei um parágrafo quase inteiro, sobre essa unidade e identidade a ser construída em países emergentes:

"A pluralidade racial, porém, é uma característica normal das sociedades formadas por migração e de nenhum modo representa uma desvantagem. Alberto Torres se opõe explicitamente às doutrinas do branqueamento. Nenhum grupo humano tem predisposição espontânea para ser superior ou inferior. Suas possibilidades dependem totalmente das condições ambientais, das oportunidades de trabalho, de educação e de desenvolvimento intelectual. Qualquer indivíduo, seja qual for sua origem, estará sujeito à degradação, se abandonado, como tantos brasileiros, nas condições mais desfavoráveis. Isso ocorre também aos colonos europeus, quando lhes faltam os meios para dominar o ambiente, aplicar seus conhecimentos de organização e de produção. Esses colonos, porém, vinham recebendo, segundo Torres, maior atenção governamental que os trabalhadores brasileiros".

A função criadora da política ocupa a segunda seção do livro. Essa função criadora é a parte central da obra, a sua tese.  Ele propõe uma agenda brasileira que incluiria como pontos principais, um novo estilo de ocupação territorial, menos destruidor e menos dependente, que necessitaria de uma exploração mais inteligente, racional, de preservação e não de cultivo predador. Da agenda ainda constaria a prioridade para a produção de alimentos, de indústria para atender às necessidades básicas, fornecimento de terras, meios de trabalho, medidas de apoio à comercialização, enfim, promover "o bem-estar popular. Entre tantas outras medidas, sempre de indução do Estado.

Para isso, seria necessária a reforma da Constituição. Essa reforma ocupa a terceira seção de seu livro. Viu na República, a destruição de todos os princípios de organização, "A Revolução de 15 de novembro lançou por terra toda a organização política e administrativa do país". Caberia aos constituintes, a total reorganização. E aí entram as suas várias propostas, com todo o destaque para a instituição de um Poder Coordenador, que teria como finalidades "concatenar todos os aparelhos do sistema político", garantir "a soberania da lei, a democracia, a república, a autonomia e a federação". Também a composição do Senado chamava particular atenção, com a representação da sociedade civil. Apresenta todo um esboço de reforma constitucional.

E uma pergunta. Seria o Poder Coordenador um programa autoritário? O resenhista assim trata a questão. "Talvez, mas essa palavra é mais um carimbo do que um esclarecimento. O projeto de revisão constitucional, poderia responder Alberto Torres, nasceu de um exame da realidade brasileira, não de um modelo abstrato de forma de governo. Seria difícil contestar esse argumento. O livro A organização nacional foi escrito há mais de oitenta anos (agora já há mais de cem), mas alguns de seus grandes temas, como a ordem federativa e a articulação de políticas nacionais, continuam presentes nos debates sobre o sistema de impostos e sobre o processo orçamentário".

Para encerrar, o resenhista usa a voz de Oliveira Viana para falar da importância de Alberto Torres: "Torres e eu, o que um e outro fizemos - em relação ao conhecimento científico das instituições políticas e da estrutura do Estado - constitui, aqui, nesta novidade metodológica: considerar os problemas do estado ou, melhor, os problemas políticos e constitucionais do Brasil, não apenas simples problemas de especulação doutrinária ou filosófica - como então se fazia e como era o método de Rui; mas como problemas objetivos, vinculados à realidade cultural do povo econsequentemente, como problemas de comportamento do homem brasileiro na sociedade brasileira - de 'comportamento', no estrito e técnico sentido que a esta expressão lhe dão os sociologistas americanos (como, por exemplo, Ralph Linton e Donald Pierson, em livros que estão hoje, em nosso país, nas mãos de todos os estudiosos das ciências sociais".

Sobre Oliveira Viana vejamos. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/04/um-banquete-no-tropico-14-instituicoes.html

E como de hábito, a última publicação, A América Latina: males de origem, de Manuel Bonfim.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-america-latina.html

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Um banquete no trópico. 29. A América Latina: males de origem. Manuel Bonfim.

Este é o vigésimo nono trabalho do presente projeto.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/03/introducao-ao-brasil-um-banquete-no.html

Trata-se da resenha feita por Roberto Ventura, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, da obra A América Latina: males de origem, de Manuel Bonfim (1868 - 1932). A resenha encontra-se em Introdução ao Brasil -  um banquete no trópico, livro organizado por Lourenço Dantas Mota, vol. II, nas páginas 237 a 258. Trata-se da obra prima do educador e historiador sergipano, escrita com indignação e muita paixão. A categoria fundamental de análise para os nossos males é o termo parasitismo, termo transposto da biologia. Condena veementemente o racismo, o evolucionismo e o positivismo, teorias dominantes na época.

No volume II, Manuel Bonfim. A América Latina. Males de origem. A resenha.


Para melhor acompanhar a resenha apresento o sumário do livro. A edição que possuo é a edição do centenário, que tem apresentação de Darcy Ribeiro, que lhe outorga o título de antropólogo. O livro é dividido em cinco partes, a saber: I. A América Latina: estudo de parasitismo social. 1. A Europa e a América Latina: a opinião corrente. 2. Consequências da malevolência europeia; II. Parasitismo e degeneração. 1. Organismos biológicos e organismos sociais. 2. Causa da degeneração; III. As nações colonizadoras da América do Sul. 1. A educação guerreira e depredadora. 2. Parasitismo heroico: o "pensamento ibérico". 3. Transformação sedentária; degeneração. IV. Efeitos do parasitismo sobre as novas sociedades. Seção A. Efeitos gerais. 1. Natureza desses efeitos. 2. Expressão desses efeitos na vida econômica, política, intelectual e moral. Seção B. Efeitos especiais. 1. Preliminares: hereditariedade psicológica e social. 2. Efeitos da hereditariedade e da educação. 3. Efeitos devidos à tradição e à imitação. 4. Reação contra o Estado-metrópole. 5. Remanescentes da metrópole. V. As novas sociedades. 1. Elementos essenciais do caráter; raças colonizadoras; efeitos do cruzamento. 2. Revivescência das lutas anteriores. 3. A perspectiva da agressão - resistência. 4. As nações sul americanas em face à civilização e ao progresso. Resumo e conclusão.

O resenhista começa por apresentar o autor, a obra, sua importância e a contextualização. O livro teve sua primeira edição no ano de 1905. Na época reinavam teorias da existência de raças inferiores, da degeneração provocada pela miscigenação e das letargias provocadas pelo clima tropical. Já Manuel Bonfim aponta como causas para os nossos males, a exploração e a escravidão praticadas pelas metrópoles colonizadoras. Usa a categoria do parasitismo para apontar os males de origem. Aponta o estado brasileiro como tirânico e espoliador e perpetuador das atrocidades contra o povo. O remédio contra esses males seria uma educação popular massiva. Também aponta os males do imperialismo dos Estados Unidos, pela Doutrina Monroe (1817-1825). Contra pensadores influentes como Ruy Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco e Sílvio Romero se manifesta contra o pan-americanismo, um neocolonialismo sob a tutela dos Estados Unidos. Condena a República brasileira incipiente por sua adaptação às instituições monárquicas e ao conservadorismo.

Manuel Bonfim migrou da medicina para a política, para a história e para a educação. Darcy Ribeiro o reverencia como o fundador da antropologia brasileira. Já Antônio Cândido o considera como o mais radical dos pensadores do início do século XX. A exemplo de Joaquim Nabuco, é um reformador social, tornando-se um revolucionário apenas ao final de sua vida. Seus autores de referência eram Rocha Pombo e Oliveira Martins, sem o seu racismo. Também estudos Varnhagen e frei Vicente Salvador. O seu conceito chave de parasitismo para explicar a realidade social se deve ao fator escravidão. Ele se realiza através do trabalho escravo. O livro é uma busca pelas razões do nosso atraso, que uma vez diagnosticado, deveria ser superado. O livro era movido a patriotismo. Vejamos: "Este livro deriva diretamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano pela América".

Bonfim acusa o clero e a administração colonial pelo parasitismo instaurado e apontava para a escravidão como o meio de sua concretização. Passa a explicitar o uso do termo "parasitismo" e a sua prática por nações colonizadoras e por patrões. É a teoria biológica da "mais valia". Ele gera decadência e degradação. Vejamos o autor: "É o parasitismo, sempre e por toda parte o parasitismo, causa das causas, causa primeira, resumindo a história de todas as decadências em que vão desaparecendo os povos e as civilizações". E o resenhista continua: "O parasitismo produziria a exploração predatória e o gosto pela vida sedentária, que levariam ao esgotamento dos recursos e à decadência das sociedades. A eterna luta entre parasita e parasitado seria, portanto, o principal fator das transformações históricas". Seria a sua "luta de classes".

A partir daí o resenhista passa a examinar as cinco partes do livro. Na primeira parte, aponta para a visão negativa que os europeus tinham do Brasil, por não conhecerem a nossa história. Essa visão influenciou, inclusive, pensadores brasileiros e geraram teorias de imobilismo e fatalidades irreversíveis quanto à possibilidades de futuro. Também condena os Estados Unidos, que nos julgavam como imprestáveis, querendo nos estender o "manto protetor" do imperialismo. Proteção para justificar as práticas imperialistas.

Na segunda parte entra em cena o parasitismo e as degenerações que ele causa. Alerta que o parasitismo social é muito mais complexo que o parasitismo biológico. Não se dá por etapas e pela linearidade. Mas ele reproduziu o parasitismo biológico. Vejamos o resenhista: "Assim como existem na natureza parasitas que vivem de outros organismos, haveria, na sociedade, dominantes e dominados, senhores e escravos, patrões e trabalhadores, metrópole e colônia, capital estrangeiro e nação, Estado e povo. O parasitismo social reproduziria as características do parasitismo biológico, que traz a debilitação do organismo atacado, submetido à violência do parasita, que lhe retira a energia. Mas o próprio parasita acabaria por degenerar e entrar em decadência, chegando mesmo ao extermínio".

Uma imagem do parasitismo na natureza. Destruição do parasita e do parasitado. Foto tirada em Bonito.

Na terceira parte mostra a raiz dos males, originários dos países colonizadores. Os países ibéricos viveram onze séculos de formação guerreiro/predatória o que lhes provocou a inaptidão para o trabalho. Com as navegações comportaram-se como verdadeiros piratas e nunca foram colonizadores. Apenas saquearam, como no México e no Peru. Mostraram o seu desprezo pelo trabalho, trazendo os escravos para exercerem tal tarefa. E com os negros e com os índios estabeleceram as relações sociais parasitárias. Vejamos o autor: "A colônia é parasita; mas mesmo dentro da colônia, o parasitismo se exerce. - Em suma, a vítima das vítimas é o escravo, e este é o único que não tem voz, nem para queixar-se!".

Na quarta parte os efeitos do parasitismo são mostrados. A colonização predatória gera sociedades duais e em vez de interesses gerais, prosperam apenas os interesses privados. Isso promove a degradação do parasita e do parasitado. Com o atrofiamento provocado, o parasitismo se renova e se mantém com o conservadorismo. A independência em nada mudou o nosso quadro social. A escravidão, instituição principal, é mantida intacta. No conservadorismo o Estado se institui como "órgão de opressão", existe para fazer o mal. Vejamos: "O Estado existe para fazer o mal, exclusivamente [...] o Estado é inimigo, o opressor e o espoliador, a ele não se liga ideia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança" [...] Tornou-se, portanto, um "organismo dominador, tirânico, oneroso, e quase inútil [...] Eis o Estado: uma realidade à parte, em vez de ser um aparelho nascido da própria nacionalidade, fazendo corpo com ela, refletindo as suas tendências e interesses". Se interessa apenas por impostos e forças armadas repressoras.

E o resenhista continua: "Tal ânsia espoliadora teria corrompido as populações submetidas à colonização ibérica, trazendo a perversão do senso moral, o horror ao trabalho livre é à vida pacífica, o ódio ao governo, a desconfiança das autoridades e o desenvolvimento  dos instintos agressivos". Com a independência, o imperador partiu, mas a monarquia permaneceu. Mostra ainda as decepções com a República, com a sua democracia sem povo e, em que, o Estado não cumpre a sua função de oferecer educação para o povo.

A quinta parte aponta para a formação das novas sociedades, influenciadas pelos intelectuais da época e com os quais era preciso romper. Isto é, era necessário romper com o racismo, com o evolucionismo e com o positivismo. Eram essas "filosofias do massacre" que permitiam o domínio dos fortes sobre os fracos. Assim ele se expressa: "Levada à prática, a teoria deu o seguinte resultado: vão os "superiores" aos países onde existem esses "povos inferiores",  organizam-lhes a vida conforme as suas tradições - deles superiores, instituem-se em classes dirigentes, e obrigam os inferiores a trabalhar para sustentá-las; e se estes o não quiserem, então que os matem e eliminem de qualquer forma, a fim de ficar a terra para os superiores [...] Tal é, em síntese, a teoria das raças inferiores". As teorias raciais sempre estiveram atreladas ao expansionismo colonial/imperialista. As críticas se dirigem aos três fatores que ele tanto combateu, o racismo, o evolucionismo e o positivismo e as suas hierarquias. Entre os humanos não deveria predominar o darwinismo social, mas sim, a solidariedade. O livro termina com um ligeiro otimismo, em função de sua crença na educação popular.

A parte final da resenha é dedicada às críticas e a recepção de sua obra. As mais duras lhe foram dirigidas por Sílvio Romero, fervoroso adepto das teorias do evolucionismo, do branqueamento. Lhe dirigiu 25 artigos de crítica à sua obra.  Por 20 anos, retirou-se da vida de historiador e escritor e se dedicou à educação e à política. Criticou duramente a Revolução de 1930 pela sua falta de radicalidade. Apenas ao final da vida voltou a escrever, agora sob a perspectiva revolucionária, com o livro Brasil Nação.

Quanto aos méritos, influenciou toda uma geração de intérpretes de Brasil, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior. Além disso fez todo o esforço em sepultar as teorias étnico climáticas, substituindo-as por fatores sociais e culturais. Não raça e natureza, mas sim, cultura e caráter. Sempre expressou o seu pensamento com paixão e indignação, fato que também lhe valeu críticas. A sua obra caiu num longo esquecimento, sendo redescoberto por Darcy Ribeiro, ao longo dos anos 1980. Darcy o considerava como o pensador mais original da América Latina. Nos 500 anos do "descobrimento" recebeu a sua canonização. Eu mesmo tenho uma edição de 2005, comemorativa ao centenário da obra. Deixo ainda o penúltimo parágrafo da resenha: 

"O interesse por sua obra cresceu nos 500 anos do descobrimento do Brasil, quando houve uma quase canonização de Manuel Bonfim, alçado ao pedestal dos mais destacados comentaristas do país. Silviano Santiago inclui A América Latina no volume Intérpretes do Brasil, junto com ensaístas, historiadores e sociólogos, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes. Seu livro didático, Através do Brasil,  escrito em parceria com Olavo Bilac, foi também relançado. Está prevista ainda a reedição de O Brasil na história, além da publicação de sua biografia, O rebelde esquecido, pelo sociólogo Ronaldo Conde Aguiar".

Antônio Cândido, em dez apresentações de intérpretes do Brasil, o situa em quinto lugar. Vejamos:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/10/dez-interpretacoes-de-brasil-indicacoes.html

Vejamos ainda o link da resenha que fiz, quando da leitura do primoroso livro, no ano de 2013.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/a-america-latina-males-de-origem-manoel.html

E, como de hábito, a resenha do trabalho anterior, sobre a obra Minha formação, de Joaquim Nabuco.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/05/um-banquete-no-tropico-28-minha.html