quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Torto Arado. Itamar Vieira Junior.

Na contracapa lemos: "Um romance que retrata - com extrema habilidade narrativa - um Brasil dolorosamente encalhado no próprio passado escravista. Um texto épico e lírico, realista e mágico". O que dizer desse livro? O que sugere o seu título - Torto arado. Quem é o seu autor? Sem entregar a história, vamos provocar, instigar para a leitura. Algumas passagens:

"Sobre a terra  há de viver sempre o mais forte". Página 262. A frase final. Quem seria este mais forte?

Torto arado. Itamar Vieira Junior. Todavia. 2022.

O que é viver de morada? "Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre.  Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era tida como dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento". O pai procura responder ao filho: "Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento [...]. Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: 'Moço, o senhor me dá morada?.' [...] Trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu. [...] O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa". Páginas 185-186. Viver de morada seria então um sucedâneo para a escravidão?

Como foi resolvido o problema da escravidão após a abolição? "Meu povo seguiu rumando de um canto para outro, procurando trabalho. Buscando terra e morada. Um lugar onde pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de casa. Os donos já não podiam ter mais escravos por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores...". Página 204. Simples assim. Uma mera questão de semântica.

E sobre a libertação dos escravos? Do discurso de Bibiana, para o povo da Fazenda Água Negra: "... Mas que liberdade? Não podíamos construir casa de alvenaria, não podíamos botar a roça que queríamos. Levavam o que podiam do nosso trabalho. Trabalhávamos de domingo a domingo sem receber um centavo. O tempo que sobrava era para cuidar de nossas roças, porque senão não comíamos. Era homem na roça do senhor e mulher e filhos na roça de casa, nos quintais, para não morrerem de fome. Os homens foram se esgotando, morrendo de exaustão, cheios de problemas de saúde quando ficaram velhos". Página 220.

Por que Torto arado? "Você recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a terra em linhas tortas. Aqueles sulcos onde lançava a semente do milho. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não havia nenhuma história...". Página 247.

Bem. Essa é a temática. Onde ela se desenvolveu. Isso também dá para contar. No interior da Bahia. Na região da Chapada Diamantina, após a febre dos diamantes. Ah Joaquim Nabuco! Não basta abolir a escravidão. Também é preciso acabar com a obra da escravidão. Mas vamos deixar isso a cargo do leitor.

Durante a leitura eu me lembrei muito de Paulo Freire, sobre a educação emancipadora. De Paulo Freire eu ouvi pessoalmente, que ele conhecia as elites do mundo inteiro, mas que nenhuma se assemelhava à brasileira em perversidade. A leitura do livro também nos dá essa percepção. Lembrei também de Lília Schwarcz e o seu belo livro Sobre o autoritarismo brasileiro. O livro de Itamar também fala desse autoritarismo, mandonismo. A diferença está na forma de narrar. No livro de Itamar, quem fala é o povo, especialmente pela voz das irmãs Bibiana e Belonísia, as personagens em torno das quais a história é contada.

Capas de Torto arado. Mundo afora. Tradução para várias línguas.

As orelhas do livro nos dão outras pistas para a sua leitura: "A cena tem algo de iniciático e, como se verá mais tarde, ressoará de maneira extraordinária no futuro de suas protagonistas. Nas profundezas do sertão baiano as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas - a ponto de uma precisar da voz da outra.

Filhas de humildes trabalhadores rurais descendentes de escravos, as irmãs irão crescer entre a extenuante rotina do campo, as tradições religiosas afro-brasileiras - com suas velas, incensos e ladainhas quase imemoriais - e a absorvente vida familiar. Com o passar dos anos, a antiga proximidade entre elas vai se desfazendo aos poucos. Enquanto Belonísia parece satisfazer-se com o serviço na fazenda e os encantamentos do pai, o curandeiro de corpo e espírito Zeca Chapéu Grande, Bibiana toma consciência do estigma da servidão imposto à família e decide lutar pelo direito à terra e pela emancipação dos trabalhadores rurais.

Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, tendo quase sempre as mulheres como protagonistas, Torto arado é um romance belo e comovente que conta uma história de vida e morte, de combate e redenção. Itamar Vieira Junior não se perde, contudo, em duvidosas recriações de um idioma supostamente telúrico, nem trata seus personagens com certo paternalismo, tão daninho, que já assinalou um sem-número de tentativas, na ficção, de dar voz aos despossuídos do campo.

Pois um dos grandes trunfos deste romance é a representação - com eloquência e humanidade - dos descentes de escravizados africanos para os quais a Abolição significou muito pouco, visto que ainda sobrevivem em situação análoga à escravidão. Tudo isso traz ao romance, para além de sua trama que atravessa vozes, gerações e temas (a memória familiar, o trauma, a exploração, o misticismo afro-brasileiro, os laços sociais), um poderoso elemento de insubordinação social que vibra muito tempo depois de terminada a leitura".

Na orelha da contracapa ainda sobra um pequeno espaço para apresentar o autor: "Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA. Publicou os livros Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti), além de outros textos ficcionais em diversas publicações nacionais e estrangeiras. Com este Torto arado, venceu os prêmios LeYa, Jabuti e Oceanos". Um fenômeno editorial. Um selo colado na capa indica que o livro já vendeu 400 mil exemplares. Também já ganhou o mundo com tradução para as mais importantes línguas.

O livro é dividido em três partes: Fio de corte; Torto arado e Rio de sangue. E uma frase em epígrafe: "A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo". Raduan Nassar.  E..., por tanto falar em violência, como não lembrar de Os condenados da terra. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

LULA. Biografia. Fernando Morais.

Um senhor livro. Uma senhora biografia. Um livro que revela a grandeza, tanto do biógrafo, quanto a do biografado. Um livro absolutamente necessário e imprescindível para quem quiser estudar a história recente do Brasil e conhecer os bastidores da política, da justiça, da mídia, do movimento sindical brasileiro e, por óbvio, a trajetória pessoal, sindical e política de Lula. Sem dúvida nenhuma, a história de Lula e a história do Brasil, ao menos a partir dos anos 1980, se interligam e se confundem por completo e por inteiro.

Lula - Biografia. Fernando Morais. Companhia das Letras. 2022.

Demorei um pouco para começar a leitura, embora a enorme curiosidade. Estive envolvido em outro projeto. A minha trajetória de professor sempre me obrigou a ser um atento observador e analista da política brasileira, razão pela qual nunca desleixei de estar atento aos fatos. Mesmo assim, Lula - Biografia, de Fernando Morais, me revelou inúmeros fatos e, especialmente, os bastidores dos fatos dos últimos quarenta ou cinquenta anos da história desse país. E, melhor ainda, narrados pela maestria daquele que, seguramente, pode ser considerado um dos maiores biógrafos brasileiros.

O primeiro volume da biografia termina com um posfácio com o título: Este livro e algumas cenas do próximo volume. Nele, Fernando Morais nos conta da alteração do projeto original, de escrever a biografia em apenas um único volume. Nele não caberia tanta história. Junto ao biógrafo e os editores, houve então o acerto de dividi-la em dois volumes. A forma de contar é eletrizante. A sequência dos fatos te prende à leitura, embora, nem sempre apresentados de forma cronológica. Aliás, de forma brilhante e instigante, a biografia não começa pelo nascimento de Lula, mas, creio que dá para fazer essa afirmação, pelo nascimento de seu terceiro mandato na presidência da república. De seu improvável e impossível terceiro mandato, após tanto assassinato de reputação e tentativa de cancelamento político e moral, tanto de Lula, quanto do PT, o partido por ele fundado.

O livro se constitui de 17 densos capítulos e mais um apêndice. Os capítulos não tem títulos, mas sim, pequenas sínteses dos fatos narrados. Os seis primeiros narram os episódios de sua prisão em Curitiba, seus antecedentes e os exatos 581 dias da prisão e da "Vigília Lula Livre". Lance de mestre. O livro, numa retrospectiva se volta para outra prisão de Lula, agora a do ano de 1980, quando liderava, na qualidade de presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, as greves que determinaram o início da agonia da insuportável ditadura militar, instaurada em 1964. Daí a história segue até a enorme decepção que Lula teve na eleição de 1982, como candidato derrotado a governador no estado de São Paulo. Essa depressão só foi aliviada com o consolo de Fidel, ao lhe dizer que fora pela primeira vez que um trabalhador fez mais de um milhão de votos. O resto da história será contada no segundo volume que já começou a ser escrito.

Para instigar a leitura, apresento a síntese das orelhas do livro: "Para além de juízos ou paixões, Lula está entre as maiores figuras políticas da história do Brasil. Único presidente  da nação oriundo do operariado, e campo magnético de um partido profundamente original em suas raízes, exerceu o poder carismático e a influência de modo mais duradouro que qualquer outro homem público no período republicano, salvo talvez Getúlio Vargas - com quem também partilha a virulência dos adversários.

Desde 2011, Fernando Morais ganhou acesso direto, franco e frequente a Lula. A essas dezenas de horas de depoimentos, somou o faro de repórter e a prosa cativante para compor projeto biográfico que traz um painel do personagem em toda a sua grandeza e complexidade.

Em narrativa que faz uso de recuos e avanços cronológicos para manter o ritmo eletrizante, Morais transporta o leitor logo nas primeiras páginas às salas de um Instituto Lula envolto em nervosismo e incredulidade ante a decisão judicial que determinou a prisão do ex-presidente como desdobramento da operação Lava Jato. A comoção do momento é conhecida, mas os bastidores da escolha de se entregar e detalhes sobre o estado de espírito de Lula só agora são revelados. De um relato recheado de informações inéditas sobre o período em que o biografado ficou detido em Curitiba, Morais puxa o fio da trama para o primeiro cárcere, em 1980, do então líder sindical que mudou a história das greves no país, perseguido pelo Dops e visto como ameaça a uma ditadura que já claudicava.

Entre outras passagens-chave para compreender a formação do homem, suas ideias e seus atos, o presente volume reconstituiu ainda a infância e juventude de privações e as relações familiares, a migração para São Paulo, o início da vida como operário e a aproximação com o movimento sindical, a história do novo sindicalismo, as greves do ABC, a fundação do PT - até a entrada sem volta no mundo da política e a primeira campanha eleitoral, uma derrota que quase o leva a desistir de tudo, do que é dissuadido por improvável figura. Era só o começo do capítulo seguinte desta saga, que culminaria em três derrotas e dois mandatos presidenciais".

E na contracapa ainda lemos: "Este volume da primeira biografia de vulto de Luiz Inácio Lula da Silva recupera os momentos determinantes para que o personagem chegasse a ser o que é: o líder de massas que, com avanços e tropeços, se inscreveu na história como agente e símbolo de grandes transformações no percurso nacional, nas últimas cinco décadas.

Com a verve narrativa conhecida dos leitores, desde obras já clássicas como Olga e Chatô, Fernando Morais nos conduz de maneira hábil e segura por estrutura nem sempre linear, dando ainda a ver os aspectos mais relevantes da vida política recente de Lula, até a anulação de suas condenações pelo Supremo Tribunal Federal, em 2021. 

Contribuição ímpar para compreender um personagem incontornável, Lula combina rigor na pesquisa e acesso inédito à fonte para se afirmar como uma biografia essencial".

Um livro para a história. Concluo dizendo que foi este Lula, o único ser capaz de deter o avanço fascista no Brasil, representado por Bolsonaro e pelos fanáticos e imbecis bolsonaristas. Essa é a verdadeira dimensão da grandeza de Luiz Inácio Lula da Silva.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida. Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues.

Um primor de livro. Escrito e produzido com todo o cuidado. Um tema grandioso. Profundamente humano. Estou falando de Histórias de morte matada contadas feito morte morrida - a narrativa de feminicídios na imprensa brasileira, de autoria das jornalistas e feministas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues. A edição é da DROPS Editora. O ano da publicação é 2021. Na contracapa do livro temos colado um selo, com os seguintes dizeres: Câmara brasileira do livro. Jabuti 2022. Livro finalista. Com certeza, um indicativo de muitos méritos.

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida. As narrativas de feminicídio na imprensa brasileira. Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues. Drops Editora. 2021.

Tanto o título, quanto o subtítulo nos dão o indicativo claro e preciso sobre o tema do livro, bem como nos dão também a ideia de que há problemas nessas narrativas. As narrativas correspondem ao nosso viés cultural. Lilia Schwarcz em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro nos aponta oito características desse viés cultural autoritário: 1. Escravidão e racismo; 2. Mandonismo. 3. Patrimonialismo; 4. Corrupção; 5. Desigualdade social; 6. Violência; 7. Raça e gênero; 8. Intolerância. Por óbvio, essas características estão todas entrelaçadas. Mas, patriarcalismo, raça e gênero ganham  capítulos à parte, capítulos especiais. Uma das conclusões do livro é a de que o feminicídio é negro, pobre e periférico. Segue o link da resenha Sobre o autoritarismo brasileiro.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/08/sobre-o-autoritarismo-brasileiro-lilia.html

Já na parte final do livro há um capítulo sob o título Recapitulando e repetindo - para não esquecer. Nesse capítulo há sete indicativos que nos apontam para o teor fundamental do livro; São eles: 1. A voz passiva que isenta assassinos de sua responsabilidade ao mesmo tempo que revitima a mulher; 2. O abuso no uso do suposto que por vezes coloca em dúvida até o crime ocorrido; 3. A justificativa/motivação do crime antes mesmo do relato ajudando assassinos a estruturarem sua defesa e o julgamento; 4. A desmoralização da mulher pela foto da vítima que ilustra a matéria e não o assassino; 5. Os verbos no futuro do pretérito; 6. O sujeito indefinido; 7. A escolha da hipótese mais absurda quando vários elementos apontam o crime de ódio (também conhecido como feminicídio).

Uma aula de linguagem e de jornalismo. São esses sete elementos que permitem a transformação apontada no título - Histórias de morte matada - contadas feito morte morrida. A análise dessas mortes matadas narradas pela imprensa brasileira é que constituem o teor do livro. E haja narrativas. O Brasil é um país tristemente campeão em feminicídios. São narrados e analisados casos da alta sociedade, com todo o glamour em que estão envolvidos e há os de pessoas anônimas, que são a absoluta maioria dos casos. Afinal, já apontamos: o feminicídio é  negro, pobre e periférico. Não vou entrar no teor das narrativas e de suas análises, mas o método da análise já está apontado.

Além das narrativas, há também uma classificação dos homicídios. Eles são classificados em transfeminicídios, em feminicídios indígenas, em feminicídios políticos (cometidos por razões políticas, como os casos de Dorothy Stang, Marielle Franco), ou por qualquer motivo, menos feminicídio (quando se tenta de tudo para não admitir o óbvio). Também, já na parte final do livro, há um capítulo que chama a necessária atenção para os órfãos dos feminicídios e a ausência de políticas públicas que lhes deem a devida assistência sob todos os aspectos que os casos envolvem.

O livro termina com uma série de conclusões como a reafirmação das autoras de uma frase de Marielle Franco: "Minha palavra é de mulher, mas vale". "Nossa palavra é de mulher, mas vale". As outras conclusões são as de que o feminicídio é um fenômeno endêmico, que precisa ser combatido, que o feminicídio é negro, pobre e periférico, que há a romantização/fetichização das narrativas, de histórias de amor que terminam com assassinatos por amor, quando simplesmente não há crimes por amor, apenas há crimes por ódio. E, finalmente, que o exercício do jornalismo é um compromisso ético e que é possível ser feito de uma forma diferente de como é feito.

O livro tem uma apresentação de Cecília Olliveira, jornalista especializada em Segurança Pública, um prefácio assinado por Maíra Kubík Mano, jornalista e cientista social, além de uma nota das editoras, todas destacando a importância e o valor da obra. Na orelha da capa temos a seguinte apresentação do livro, feita por Renata Lima, delegada de polícia civil (MG) e feminista. Vejamos: 

"Conhecer as histórias das mortes matadas de tantas mulheres, mortas duas, três vezes, revitimizadas, invisibilizadas, olvidadas, fez com que eu sentisse a dor e a responsabilidade de ser mulher, policial, neste momento de avanços e retrocessos.

Alguns nomes saltam aos olhos. Outros, anônimos, não passam despercebidos aos olhos de policial. Casos familiares demais, rotineiros demais.

Histórias de morte matada contadas feito morte morrida é uma leitura essencial para jornalistas, trabalhadores da comunicação e servidores do sistema de justiça criminal. Nós, muitas vezes fonte principal, se não a única, de informação a respeito dos crimes que ceifaram a vida de tantas mulheres.

Ler esta obra, escrita com tanto cuidado por Niara e Vanessa, foi doloroso, mas necessário para entender como o machismo e a misoginia são perpetuados de forma reiterada e cotidiana. É importante resistir e lutar por todos os espaços, para que as vozes das mulheres sejam ouvidas e suas histórias de vida contadas e respeitadas".

E na contracapa, já em letras maiores lemos: Quanto mais vulnerável é a vítima, menos respeito a seus direitos e à sua história, e isso se reflete na cobertura da imprensa. É CHOCANTE. É AVILTANTE. Um grande livro para uma impressionante leitura.



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

A presença de Jesus Cristo nas lutas do povo. Um encontro raro com Alberto Panichella.

No dia quatro de fevereiro, num sábado chuvoso, houve um encontro maravilhoso de ex seminaristas da ordem religiosa dos xaverianos com o padre Alberto Panichella, que foi orientador deles, enquanto eles estiveram no seminário. Nesse encontro o padre Alberto também apresentou o seu livro, A presença de Jesus Cristo nas lutas do povo - Narrativas de um missionário das periferias. Muitos dos participantes do encontro, conforme os relatos, não se encontravam há quarenta anos. É fácil imaginar o clima do encontro. Também esteve presente o padre Décio, de Maringá. O professor Luiz Paixão me pediu sobre a possibilidade de fazer o encontro na chácara que tenho e, nessa condição, tive a satisfação de ser o anfitrião do encontro.

Os participantes do encontro. O padre Alberto é o de camisa vermelha e sem chapéu.

O encontro se dividiu, eu diria, em três partes. O primeiro foi o da liturgia do reencontro e do saber das novidades que cada um tinha para contar. Foi um momento, acima de tudo, de muitos abraços e de extravasamento de afetos, de bem-quereres. Ao observarem a foto, certamente vocês sentirão a ausência de mulheres nesse encontro. Elas até apareceram, mas preferiram fazer os seus passeios à parte. Certamente tiveram a intenção de que o encontro fosse efetivamente uma grande rememoração dos tempos de seminário. No seminário não havia a companhia das meninas.

O segundo momento foi o da fala do padre Alberto. A fala, de uma maneira geral, seguiu o roteiro do livro que também estava sendo lançado no encontro. Apenas com uma alteração de inversão do roteiro, com a fala começando pelo momento atual vivido pelo padre Alberto. Depois eu apresento também o roteiro do livro, livro que eu li com grande atenção e interesse.


A presença de Jesus Cristo nas lutas do Povo. O livro do padre Alberto Panichella.

Padre Alberto é hoje padre em Atalaia do Norte, no estado do Amazonas. Segundo a fala do padre Alberto, a cidade é a terceira mais pobre do país e a mais pobre do estado do Amazonas. Ela se situa na região do vale do rio Javari. Foi nessa região que ocorreu o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Tom Philips, no dia 5 de junho de 2022, fato de repercussão mundial. Pela Wikipedia busquei a informação de que a cidade possui 20.868 habitantes (Censo 2021), que está distante de Manaus a 1.163 km e que "o mais recente IDH do município é um dos menores do país, semelhante a países africanos como Zimbábue e Ruanda". Esse tema, pela sua premente atualidade, tomou quase o tempo todo da fala do padre. O padre conhece bem a cultura indígena. Os Yanomamis também estiveram presentes na fala.

As pessoas presentes também fizeram uma rápida apresentação, dizendo de seus afazeres e sonhos do momento atual de suas vidas. O grande destaque ficou com as dificuldades iniciais de suas vidas, logo após a saída do seminário. Quem viveu essa saída, sabe bem do que se trata. Uma vez, um professor que viveu essa experiência, me contou que ele veio ao mundo por duas vezes, uma no nascimento e outra, na saída do seminário. Nas duas vezes, me contou ele, ele se encontrava pelado, isto é, absolutamente sem nada.

O livro, também pelas palavras do padre Alberto, é uma viagem. Uma viagem pelas cidades brasileiras em que ele trabalhou. São cinco capítulos e uma espécie de adendo, no qual a última etapa, a atual, desenvolvida em Atalaia do Norte, mereceu algumas linhas. No primeiro capítulo estão relatadas as suas experiências na cidade de Londrina, nos Cinco Conjuntos. A base de seu trabalho sempre foi o da organização da comunidade nas Comunidades Eclesiais de Base, na ajuda às pessoas mais necessitadas e nas lutas coletivas por melhorias. Esse período o ocupou ao longo dos anos 1983 a 1987.

O segundo capítulo é dedicado ao tempo passado na cidade de Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, entre os anos de 1987 e 1990. No terceiro, são relatadas as experiências desenvolvidas em Hortolândia, região metropolitana de Campinas, entre os anos de 1990 a 1993. O quarto capítulo é dedicado a São Paulo, entre os anos de 1993 a 2003, onde o trabalho foi desenvolvido no bairro de Guaianazes, um distrito da zona leste da cidade. No quinto capítulo a viagem já se desloca para a cidade de Manaus, onde os trabalhos foram desenvolvidos entre os anos de 2003 e 2011. As etapas seguintes compreendem atividades na Itália (padre Alberto, observem o sobrenome, é italiano) e as atuais, na longínqua Atalaia do Norte. Como leitor do livro dou o meu testemunho. A vida do padre Alberto, é uma vida inteiramente dedicada aos "esfarrapados do mundo", usando a expressão de Paulo Freire. Coragem e determinação sempre andaram na companhia do padre Alberto. Presença viva de um representante de Jesus Cristo nas lutas do povo. E lembrando a Boa Nova: "Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância". E..., vida sempre clama por mais vida. É a teologia da libertação.

A última etapa do encontro foi muito agradável. Uma costela, à moda fogo de chão foi servida aos presentes. Obviamente junto com cervejas caprichosamente geladas. Os mais resistentes permaneceram até o final da tarde, para não perderem o sempre lindo por de sol de Campo Magro. Um dia simplesmente inesquecível e digno de ser repetido. Como o dia foi também uma dia de reflexões, deixo aqui mais uma. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/sobre-o-significado-da-palavra-amem.html

Devo acrescentar um fato muito significativo. O nosso amigo Alissandro (O baiano), o artífice da costela "fogo de chão" adquiriu três exemplares do livro do padre Alberto para presentear pessoas de sua estima. Fato maravilhoso.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O deserto é fértil. Partir... caminhar. Dom Hélder Câmara.

Este post tem a sua origem em algumas falas recentes que fiz, especialmente, uma em Joinville, com os educadores e educadoras da IELUSC, Associação Educacional Luterana Bom Jesus, na abertura do ano letivo de 2023, sob a mediação das professoras Mariana e Kérley, a quem registro os meus agradecimentos. 

O post é retirado do livro de Dom Hélder Câmara O deserto é fértil, um livro de 1976 (Civilização brasileira). Me lembro até da sua compra, numa banca da rodoviária de Curitiba, no tempo de seu lançamento. Ah, bons tempos em que se vendiam livros em rodoviárias... O livro é tão bom, com reflexões tão profundas, que ele me acompanha permanentemente. Em minha vida, carrego comigo alguns santos, profetas inspiradores. Dom Hélder é um deles. O livro é tão bonito e, como está disponível apenas em sebos, tomo a liberdade de apresentar ao menos um de seus capítulos, procurando motivar os leitores para a busca do livro no seu todo. Uma leitura imprescindível e que, acima de tudo, faz muito bem. Mas, vamos ao capítulo, o de número 6.

O deserto é fértil. Dom Hélder Câmara. Civilização brasileira. 1976.


6. Partir... caminhar...

Partir é, antes de tudo, sair de si. Romper a crosta de egoísmo que tende a aprisionar-nos no próprio eu.

Partir não é rodar, permanentemente, em torno de si, numa atitude de quem, na prática, se constitui centro do Mundo e da vida.

Partir é não rodar apenas em volta dos problemas das instituições a que pertence. Por mais importantes que elas sejam, maior é a humanidade, a quem nos cabe servir.

Partir, mais do que devorar estradas, cruzar mares ou atingir velocidades supersônicas, é abrir-se aos outros, descobri-los, ir-lhes ao encontro.


Abrir-se às ideias, inclusive contrárias às próprias, demonstra fôlego de bom caminheiro. Feliz de quem entende e vive este pensamento: "Se discordas de mim, tu me enriqueces".

Ter ao próprio lado quem só sabe dizer amém, quem concorda sempre, de antemão e incondicionalmente, não é ter um companheiro mas, sim, uma sombra de si mesmo. Desde que a discordância não seja sistemática e proposital, que seja fruto de visão diferente, a partir de ângulos novos, importa de fato em enriquecimento.


É possível caminhar sozinho. Mas o bom viajor sabe que a caminhada é a vida e esta supõe companheiros. Companheiro, etimologicamente, é quem come o mesmo pão.

Feliz de quem se sente em perene caminhada e de quem vê no próximo um eventual e desejável companheiro.

O bom companheiro preocupa-se com os companheiros desencorajados, sem ânimo, sem esperança... Adivinha o instante em que se acham a um palmo do desespero. Apanha-os onde se encontram. Deixa que desabafem e, com inteligência, com habilidade e, sobretudo, com amor, leva-os a recobrar ânimo e voltar a ter gosto na caminhada


Marchar por marchar não é ainda verdadeiramente caminhar. 

Caminhar é ir em busca de metas, é prever um fim, uma chegada, um desembarque.

Mas há caminhada e caminhada.

Para as Minorias Abraâmicas, partir, caminhar significa mover-se e ajudar muitos outros a moverem-se no sentido de tudo fazer por um mundo mais justo e mais humano.


Se discordas de mim, tu me enriqueces.


Se és sincero

e buscas a verdade

e tentas encontrá-la como podes,

ganharei

tendo a honestidade

e a modéstia

de completar com o teu

meu pensamento,

de corrigir enganos,

de aprofundar a visão...


Estás cercado de ti, por todos os lados


Para te livrares de ti mesmo

lança uma ponte

por cima do abismo de solidão

que o teu egoísmo criou.

Trata de ver, além de ti.

Busca ouvir alguém.

E, sobretudo,

tenta o esforço de amar

ao invés de simplesmente te amar...


Queres ser, 


então perdoa:

tens que te livrar, primeiro,

do excesso de ter,

que te enche de tal maneira

- da cabeça aos pés -

que não resta espaço

para ti mesmo

e ainda menos para Deus (Páginas 27 a 30).

Como na abertura da fala houve a apresentação do coral da instituição e eles cantaram Wave, de Tom Jobim. ... - Fundamental é mesmo o amor. É impossível viver feliz sozinho, imaginem se eu não alterei o script da fala.

Tenho dois posts para apresentar, ligados ao tema. O primeiro sobre o significado da palavra amém, uma belíssima reflexão. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/07/sobre-o-significado-da-palavra-amem.html e o segundo, sobre a vida benfazeja de Dom Hélder que, por ela nos demonstrou que o Fundamental é mesmo o amor. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/12/dom-helder-o-artesao-da-paz-raimundo-c.html

E, Mariana e Kérley, amigas queridas, dedico o post para vocês.