quinta-feira, 30 de maio de 2019

O anjo silencioso. Heinrich Böll. Nobel de literatura 1972.

Lendo Terceiro Reich - Na história e na memória, de Richard J. Evans, me deparo com a indicação do livro de Heinrich Böll, O anjo silencioso, com a anotação de que ele fora um soldado na Segunda Guerra Mundial e que fora agraciado com o Nobel de literatura, no ano de 1972. Me despertou a curiosidade e o adquiri com facilidade. Foi o primeiro de seus livros, mas não publicado por ocasião de sua escrita, em 1950. Foi publicado apenas em 1992, como veremos.
A edição deste livro foi posterior à concessão do Nobel de literatura ao seu autor.

Vamos começar situando o escritor. Ele nasceu em 1917 e morreu em 1985. A católica Colônia era a sua cidade natal. Como vimos, teve participação direta na Segunda Guerra. A narrativa do romance começa no dia 8 de maio de 1945, o dia do término da guerra na sua parte ocidental. Neste exato dia ele retorna para a sua cidade. Dá para imaginar o cenário da guerra? Nada mais era igual ao início do conflito. Tudo era fome, dor e destroços. Destroços físicos e destroços morais. Havia pessoas boas e pessoas que representavam a perpetuação das maldades que provocaram a guerra. Para estes, o espectro de Auschwitz não parecia assustar.

O livro tem seu primeiro momento narrativo forte com a deserção de Hans Schnitzler do exército alemão, já em pândegas. Na hora de sua execução, a sua posição é trocada por iniciativa do sargento Willi Gompertz. Este lhe deixa o seu casaco e, dentro dele, um bilhete dirigido à sua esposa Elizabeth Gompertz. Ele chegará à cidade de Colônia, em busca da viúva, que deixara o hospital em que se encontrava em tratamento. Fornecem-lhe o endereço. Ele a encontra e lhe deixa o bilhete, que tratava da questão da herança deixada deixada.

Hans passa por todas as privações possíveis de serem imaginadas. Por três semanas permanece deitado. Não tem mais identidade, vive de mendicância, de caridade e de furtos. Mas mantém a sua idoneidade moral. Ao ganhar o vale de um pão, explode em felicidade. Ao trocá-lo, o pão acabara e ele tem o seu vale rasgado e o papel se esparrama pelo chão, como em migalhas. A mulher briga com o senhor que destratara o pobre Hans. A mulher era a rica viúva, senhora Gompertz. O homem era o senhor Fischer, conceituado intelectual católico e conselheiro do cardeal e interessadíssimo em receber a herança do sargento Willi. Gente poderosa, mas insensível. Em suas andanças, Hans encontrara Regina, que acabara de perder seu filho. Trocam o que ainda lhes sobrara, afetos de ternura, de carinho de sensibilidade.

Nas andanças, Hans vai aos escombros de uma igreja. Ouve cantos e se comove. Procura o padre. Este o recebe sob a forma da própria humildade e dedicação. Descobre que Hans era antigo paroquiano seu. O acode em suas necessidades do momento e prometem reencontro. Este se deu e Hans pede ao padre para ser ouvido em confissão. O padre o aconselha a casar-se, mas só sob a condição de antes se casarem no civil. Isso é impossível a Hans, simplesmente pela falta de documentos. O padre então corre todos os riscos junto a seus superiores e promete celebrar o casamento. Dá-lhe pão e uma garrafa de vinho. Hans e Regina celebram.

Elizabeth está novamente internada e o seu estado só piora. Dr. Fischer está rondando em busca do bilhete. Elizabeth morre e o doutor fuça pelo chão poeirento e sujo de sangue, em busca do bilhete. Hans chega e diz que a busca seria inútil, para a fúria do doutor, também entretido com a edição de um jornal católico. O doutor Fischer é o personagem usado pelo escritor para mostrar o lado falso da igreja católica, insensível, culpada e co-protagonista dos males do regime que levou o país à guerra. Em contraposição, o humilde padre da igreja em destroços era a generosidade e a bondade da verdadeira igreja católica. Este tema sempre esteve presente nas obras do consagrado escritor. O anjo é uma escultura encontrada em meio aos escombros, que silenciosa assombra Hans.

Na época da conclusão da obra, ela não foi publicada. As dores do momento de reconstrução saíam das chagas ainda vivas. Ela só foi publicada postumamente, em 1992, quando ele já havia sido laureado com o Nobel de literatura em 1972. São outras obras do autor: A honra perdida de Katharina Blum; Bilhar às nove e meia; mulheres em paisagem de rio e fim de uma viagem.

O livro não é longo. A edição da Estação Liberdade tem 202 páginas, que contém 19 pequenos capítulos e um primoroso prefácio do professor Paulo Soethe. A tradução é de Karola Zimber. Deixo ainda a apresentação do livro, das orelhas do mesmo. "O anjo silencioso, primeiro romance de Heinrich Böll, ambientado na Alemanha da "hora zero", o imediato pós-guerra, foi escrito em 1949-51, mas só publicado recentemente, após ter sido liberado pelo espólio do autor. O que nos é apresentado aqui é, de um lado, um país exaurido e arrasado física e moralmente, e, de outro, o supremo alívio pelo fim das hostilidades, o renascer da vida em todos os sentidos.

O livro começa no dia 8 de maio de 1945, dia da capitulação alemã, e nos conduz a um longo mergulho numa cidade alemã da qual não sobra muito mais do que um enorme amontoado de escombros (na verdade, Colônia, cidade natal do autor). Essa paisagem apocalíptica de uma das mais importantes cidades do país inteiramente destruída era algo indigesto demais para o leitor daquela época, e, depois de um ano de idas-e-vindas, a editora acabou desistindo de publicar a obra.

O manuscrito ficou portanto engavetado e representou para Böll material para longa reflexão e humo para uma carreira que seria brilhante, até sua coroação como Prêmio Nobel em 1972. Um dos temas aqui tratados, a dupla moral católica, passaria a ser recorrente em seu trabalho literário, e colocaria Böll numa trincheira de toda vida contra o establishment religioso (e político) alemão.

Para quem vê a Alemanha de hoje, é um tanto árduo imaginar o que pode ter sido a existência no período da "hora zero", e aí reside o interesse da presente obra. Revelação póstuma, a obra fez furor na Alemanha quando de sua tardia publicação. Em texto de forte conteúdo autobiográfico - Böll foi soldado raso durante a guerra e passou pelo trauma de voltar a sua cidade destruída após a liberação do cativeiro pós-guerra -, um soldado um tanto cínico, que desertou com documentos falsificados, volta à cidade natal destruída pelas bombas, em busca de pão, de um teto e de afeto. Ele encontra ternura, mas também a frieza e a engenhosidade dos mais diversos contrabandos, dos interesses escusos, numa estafante busca da viúva de um colega fuzilado. Preservada, no entanto, mantém-se a brasa do amor, emprestando literalmente esperança a seres humanos para quem ela é a mais imediata necessidade".

Para terminar, uma pequena passagem para mostrar o que era a alegria, a felicidade e a esperança que movia a vida neste tempo da "hora zero": "Ela se ergueu cansada, colocou água no fogão, carregou lenha, e, enquanto a água aquecia, contabilizou os seus tesouros: meia garrafa de vinho, metade de um pão, um pouco de geleia, um teco de margarina, uma xícara inteira de pó de café, que ela havia fechado cuidadosamente com papel manteiga, fumo e papel para enrolar cigarros e dinheiro, dinheiro na gaveta, um pequeno monte de cédulas sujas: quase 1.200 marcos e os cinquenta que Hans lhe havia dado; sua riqueza lhe pareceu grande e consoladora". O cigarro parecia ser gênero de primeira necessidade nesses tempos. Ele está onipresente.

terça-feira, 28 de maio de 2019

O Uraguai. Basílio da Gama. Vestibular. UFPR.

Cheguei a O Uragaui, de Basílio da Gama, pela indicação do livro para o vestibular da UFPR. De início achei a indicação um tanto estranha, mas após a leitura, creio que foi plenamente justificada a sua indicação. Como é uma obra relativamente distante no tempo, ela foi publicada pela primeira vez em 1769, ela precisa ser situada e datada. Vamos então ainda datar o autor, que nasceu na atual Tiradentes, MG. e morreu em Portugal em 1795. Um detalhe interessante é o do nascimento de sua mãe, na cidade de Colônia do Sacramento, fato que certamente o levou ao tema.
A edição que eu recomendo. Facilita a leitura. A forma original era um poema.

Um velho hábito meu de professor é o de afixar bem uma data. Vamos então tomar o ano da publicação do livro como a data referência. 1769. O que aconteceu no entorno da data? Não é difícil ver duas datas importantes, logo adiante, no cenário mundial. 1776, a independência dos Estados Unidos e 1789, a Revolução Francesa. Ambas, frutos do iluminismo. Agora vamos a datas não tão visíveis. 1540, a fundação da Companhia de Jesus, ou a ordem dos padres jesuítas, fundada por Inácio de Loyola. Outra data importante é a de 1750, o ano da realização do Tratado de Madri. Por este Tratado é que se ordenou a destruição da experiência dos padres jesuítas, chamada de Missões ou de Reduções. Pelo Tratado de Madri foi trocada a cidade de Colônia do Sacramento (portuguesa) pela região dos sete povos das Missões (espanhola) e com o trato de que os dois reinos teriam que entregar a área sem a presença da experiência dos jesuítas. O Tratado teve como consequência direta a chamada guerra guaranítica, entre 1754 e 1756, ano em que se deu por concluída a missão da destruição. Esta guerra e os seus heróis são tema do poema. Heróis portugueses e indígenas e os perversos jesuítas. 

A existência da experiência das missões é consequência direta da ação dos bandeirantes em sua ação de captura dos povos indígenas para a escravidão e para a pilhagem de suas riquezas. Os padres jesuítas vieram em sua defesa, os aldearam, chegando inclusive a obter uma autorização do rei espanhol para andarem armados, diante da brutalidade dos bandeirantes. Esta experiência sobreviveu por muitos anos. Os padres, de maneira geral eram jesuítas alemães, o território era paraguaio, ocupando áreas que hoje pertencem ao Paraguai, a Argentina e ao Rio Grande do Sul. Hoje temos nesta região sete patrimônios culturais da humanidade: dois no Paraguai, quatro na Argentina e São Miguel, no Rio Grande do Sul.

As Missões são uma experiência que resistiu ao longo do tempo. Eu costumo apresentar a data de 1641, ano em que ocorreu a batalha de M'bororé, como a data em que elas se consolidaram, pois nesta batalha houve a derrota dos bandeirantes. Mas a experiência já começara muitos anos antes. Os bandeirantes foram tocando os índios para a região onde hoje encontramos as suas ruínas. Foram assim, podemos afirmar sem margens para erro, bem mais de cem anos de uma experiência coletiva bem sucedida, que obviamente foi percebida com preocupação pelos europeus, à luz do nascente liberalismo/individualismo.

Situado o tema, vamos ao autor. O Gama, do sobrenome de Basílio, remonta ao navegador Vasco da Gama. "Sangue bom", portanto, nas veias. Basílio iniciou os seus estudos com os padres jesuítas. Do Rio de Janeiro foi para a Europa, parando em Roma, participando da arcádia literária romana, provavelmente sob o amparo dos jesuítas. Depois se afasta deles para, ao que tudo indica, atender a seus interesses pessoais, junto à Coroa portuguesa, nos tempos do Conde de Oeiras, futuro todo poderoso Marquês de Pombal. Por ocasião do casamento da filha de Pombal lhe presta homenagem, exaltando, não a noiva, mas o próprio pai. Cai nas suas graças. Lembrando que em 1759 Pombal expulsara os jesuítas de Portugal e de suas colônias. Tempos do despotismo esclarecido, frutos do iluminismo, e de combate ao obscurantismo das medievais posições dos jesuítas. A ordem dos jesuítas chegou até a ser, temporariamente, extinta pela igreja católica.

Vamos à obra. Li a edição da LPM Pocket, com organização e apresentação de Luís Augusto Fischer. A edição ajuda a entender a obra, um poema, escrito em tempos em que praticamente ninguém sabia ler. Se escrevia para mostrar habilidade técnica nos versos. Com certeza, Basílio da Gama conseguiu o seu intento. Mas um poema desta época dificulta a sua leitura. O que fez então o organizador desta edição. Nas páginas à direita ele apresenta o poema e as notas do original  e nas páginas à esquerda apresenta a obra em prosa. Não é um poema longo. Ele é apresentado em cinco cantos e 1377 versos. O Uraguai também poderia ser O Uruguai. As duas grafias eram válidas na época. É uma referência ao rio. No primeiro canto o tema é apresentado. Limpar a área da escravidão imposta aos índios guaranis pelos jesuítas. Aparecem os principais personagens.

No canto segundo são apresentados os heróis portugueses e também, pela primeira vez, aparece Sepé, o herói indígena. Mas aparecem também os maldosos jesuítas que queriam, contra os portugueses, construir um império sob sua dominação. Armaram os índios contra os portugueses. O padre Balda e seu filho Baldeta são o objeto de seu ódio maior. Sepé é morto. No terceiro capítulo aparece Cacambo, que incendeia o acampamento português e volta ao acampamento para a sua bela Lindoia. passa a ser vítima das pretensões e ardis do padre Balda. Tanajura, uma velha índia passa a ter visões. Ela tem diante dos olhos e terremoto de Lisboa e a reconstrução da cidade, já livre dos nefastos jesuítas, apresentados como os filhos da ambição.

No quarto capítulo ocorre a destruição final das missões. A redução é incendiada pelo padre Balda, a começar pela velha Tanajura e o desespero de Caititu, irmão de Lindoia, morta pelo veneno da serpente.  Ocorre a fuga dos indígenas, permitida pela generosidade dos portugueses. No canto quinto, a liberdade é restituída entre os povos indígenas, Portugal viverá tempos de glória, com o confinamentos dos jesuítas para o China e para o Japão e o autor passa a viver as glórias da arcádia portuguesa.

Como veem Basílio da Gama toma o partido dos portugueses e procura defenestrar a ordem religiosa que o formou e o protegeu. Dos índios mantém uma visão romântica e lhes exalta a valentia. assim que, livres do jugo dos jesuítas. Em compensação o autor se deu "bem" na vida. São escolhas. Da minha parte eu tenho duas recomendações: a primeira é a de visitar as Missões, de preferência começando pelo Paraguai e vindo pela Argentina para São Miguel, já no Rio Grande do Sul. Foi esta a ordem dos avanços, deste movimento que Umberto Eco chamou de "santo experimento". A segunda recomendação é a leitura do livro do padre jesuíta suíço, Clóvis Lugon, A república comunista cristã dos guaranis. É a mais bela exaltação a este "santo experimento", do qual, mais uma vez, na voz de Umberto Eco, o papa Francisco é um herdeiro. Deixo, finalmente a resenha do livro do padre Lugon.
http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/05/a-republica-comunista-crista-dos.html 

sábado, 25 de maio de 2019

A classe média no espelho. Jessé Souza.

Conheci Jessé Souza numa Aula Magna, de abertura de ano letivo, do curso de direito da Universidade Federal do Paraná, em fevereiro de 2016, quando ele ainda era o presidente do IPEA. Foi uma manhã memorável e confesso que fiquei profundamente impressionado diante da grandeza do intelectual convidado. Deixei o Registro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/03/aula-magna-curso-de-direito-da-ufpr-com.html
No espelho. Um retrato da classe média brasileira. Valores e comportamentos.

Tinha acabado de ler A tolice da inteligência brasileira, que me causou grande impacto pela sua visão singular de todos os grandes intérpretes desse país. Na fala, o tempo todo, ele se referiu às interpretações dadas no livro. Depois li A elite do atraso - da escravidão à lava jato, em que ele penetra nas entranhas da elite brasileira e na criação de mitos em favor de seus interesses a partir dos anos 1930, após as derrotas de 1930 e 1932. A USP foi então fundada para ser o think tank desta "elite atrasada".

Agora terminei de ler A classe média no espelho - sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. A cada obra, o intelectual vem se superando. Apenas para registrar desde já, neste livro ele nos apresenta a Santíssima Trindade do pensamento da "elite do atraso", forjada a partir de São Paulo, nos anos de 1930 e que atingiu a sua plenitude nos anos de 1990. As três pessoas são; Sérgio Buarque de Holanda, que é apresentado como seu filósofo, Raimundo Faoro como seu historiador e Fernando Henrique Cardoso como seu realizador, em seus dois mandatos presidenciais. O porquê deste laurel está amplamente explicitado nos livros anteriores e também neste. Esta frase é altamente significativa e ajuda na compreensão: "Não há dominação de poucos sobre muitos sem o recurso à mentira e ao engano". Esta frase seria um possível guia para o presente livro.

As mentiras e enganos da elite são mostrados ao longo das 285 páginas do livro. Além de introdução e conclusão, o livro tem dois capítulos e a apresentação de trajetórias de vida e análise destas trajetórias de vida. O primeiro capítulo é sobre a moralidade da classe média e o segundo é sobre a construção histórica da classe média brasileira. As trajetórias de vida passam pela alta classe média  e pela análise destas entrevistas, repetindo-se, depois, entrevistas e interpretações com a massa da classe média.

O primeiro capítulo é precioso, a começar pelo título: A moralidade da classe média. É todo dedicado à construção histórica dos valores morais e tem um profundo cunho filosófico, histórico e até mesmo religioso, uma vez que estamos no campo da moralidade. O capítulo apresenta três tópicos, a saber: a classe média e a construção do homem moderno; a invenção histórica do "ser humano sensível" e o aprendizado moral e justificação de privilégios. Max Weber é a principal referência, mas a questão da constituição histórica dos valores é bem nietzschiana. Estes valores morais, que no mundo antigo diziam respeito à interioridade do sujeito, no mundo moderno passaram a ser exteriores e mediados pelo trabalho útil e suas recompensas. Tudo a ver com o protestantismo, a religião burguesa por excelência. Quem pratica a ética do trabalho útil merece as suas recompensas. Não confundir com o hedonismo! Ou seria o próprio. Tudo a ver também com a hipócrita ideologia da meritocracia, como se os indivíduos fossem abstraídos de suas trajetórias de vida e de seus meios sociais. Um capítulo fabuloso.

O segundo capítulo é destinado especificamente ao Brasil. A construção da classe média brasileira. Este capítulo é mais longo e é apresentado em seis tópicos: A gênese da classe média brasileira;  o campo na cidade; o advento do capitalismo industrial; a construção dos projetos nacionais: um mais inclusivo e o outro excludente; a oposição entre mercado e Estado como expressão da luta de classes - e a classe média como fiel da balança e o golpe de 2016 e suas precondições: o capitalismo financeiro e o papel das classes médias.

Como veem, história e interpretação sociológica. Nos livros anteriores o autor trata à exaustão a questão da escravidão, mostrando que este gene não foi extinto e que continua sendo a característica maior do ódio de classes que persiste ao longo de nossa história. Quando a escravidão foi abolida, para manter os escravos à margem do processo produtivo, abriu-se o país para a imigração. Estes são em grande parte responsáveis pela construção de um país urbano e industrial. Produziram aqui os produtos que antes importavam. Mas nem todos queriam isso e carecemos, até hoje, de um processo pleno de industrialização. As elites e a classe média alta preferiam ostentar produtos importados, até hoje, comprados em Miami, de preferência. Em 1930 dá-se uma ruptura profunda, analisada nos livros anteriores. Duas derrotas da elite paulista. !930 e 1932. Então cria-se a USP, para ser o think tank da elite do atraso. A mídia já existia, constituída na década anterior. E se celebra um pacto entre a elite e a classe média emergente.

A volta aos livros anteriores se dá, pelo que o autor apresenta de forma bem irônica e humorada, pela apresentação da Santíssima Trindade do pensamento liberal conservador da elite brasileira. Sérgio Buarque de Holanda inventa o homem cordial, representado pelo coração e não pelo espírito ou pela razão. Esta, a razão ou o espírito, é uma qualidade superior que apenas o protestante anglo detém. Está criado o conceito de vira lata. Nos autoconsideramos como inferiores. Que os superiores administrem as nossas riquezas. Somos incapazes de geri-las de geri-las de forma privada e empresarial, isto é, com eficiência. Aí entra em cena a segunda pessoa da Trindade. Raimundo Faoro. Este aponta para o patrimonialismo do Estado brasileiro, uma herança portuguesa, que diz que o Estado é absolutamente infestado pela corrupção. Assim faz -se a oposição entre o Estado, espaço da corrupção e o mercado, espaço sagrado do dinamismo, da eficiência onde a corrupção jamais penetra em função do comando do espírito e da razão e uma condução ética dos negócios.

Em meio a isso temos Vargas e Jango. Tivemos as significativas datas ligadas a golpes. 1954 (o golpe foi abortado em função do suicídio),  e 1964. Do outro lado tivemos Lacerda (UDN), os militares e a terceira pessoa da Santíssima Trindade, Fernando Henrique Cardoso, que para abreviar a história, queria simplesmente destruir no país o último grande obstáculo para que a elite governasse de acordo com a sua vontade. Aí surgem Lula e Dilma com políticas de cidadania e inclusão social. Mas a elite e a classe média está devidamente instrumentalizada através da mídia e do poder judiciário, com a justiça seletiva contra as políticas públicas de inclusão e em favor da posse e controle de todo o orçamento do estado em favor dominantes, que não são muitos, uns 800, como diz de seus serviçais no capítulo das entrevistas. Vejam esta outra impressionante afirmativa deste CEO:  "Claro que tudo é justificado como mecanismo de combate à inflação, e não para enriquecer os ricos. Para quem vê isso tudo funcionar a partir de dentro, como no meu caso, é até engraçado", afirma o CEO de um banco, no capítulo de entrevistas. Um capítulo de bastante ousadia.

Este capítulo de entrevistas é muito valioso e impressionante, em especial, os da alta classe média. Estes estão grudados na elite e viram em Bolsonaro, tanto o candidato de seus sonhos, quanto o de suas frustrações, pelo medo de verem no retrovisor a chegada dos incluídos pelas políticas públicas de inclusão social. Estes mais no campo da massa da classe média. Também não faltam críticas aos governos do PT., especialmente, por não terem ampliado estas políticas inclusivas e por não ter conseguido, por emissora de comunicação pública, mostrar ao povo a origem destas políticas como advindas de um projeto de Estado. Em suma, uma livro de leitura, diríamos obrigatória.

Apresento ainda a contracapa do livro: "Em seu mais recente e aguardado trabalho, Jessé Souza traz uma reconstrução histórica e social da classe média brasileira que você nunca ouviu nem leu em nenhum outro lugar.

A classe média no espelho  consolida sua posição como uma nova e brilhante voz na sociologia, num texto instigante, fluente, acessível e vibrante.

Com um panorama histórico inédito, você vai conhecer as origens dos seus valores morais e desvendar os mecanismos que há tanto tempo manipulam a classe média e mantém sua docilidade frente à sua exploração pela elite".

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Terceiro Reich. Na história e na memória. Richard J. Evans.

Costumo preparar minuciosamente as minhas viagens. Como estou projetando uma para a Alemanha e para as capitais próximas como Praga, Bratislava, Budapeste e Viena, comecei esta preparação com a leitura de Terceiro Reich - Na história e na memória - Novas perspectivas sobre o nazismo, seu poder político, sua intrincada economia e seus efeitos na Alemanha do pós-guerra. O autor é o londrino Richard J. Evans, com tradução de Renato Marques. A edição original é de 2015 e a brasileira de 2018, pela Crítica.
O ilustrativo livro de Richard J. Evans.

O autor é  um especialista em história da Alemanha e foi professor nas universidades de Colúmbia e de Londres, lecionando hoje na universidade de Cambridge. Ele é o autor de uma trilogia que é considerada como o mais importante estudo sobre o nazismo. Apenas isso! A trilogia tem os seguintes títulos: A chegado do Terceiro Reich; Terceiro Reich no poder e Terceiro Reich em guerra. Para datar o autor, constatamos que ele nasceu em 1948.

A obra é densa, de quem efetivamente conhece o tema. Fiquei agradavelmente surpreso com a qualidade da obra, pela precisão das informações e a sua contextualização. Ele abrange a origem dos fatos históricos, os contextualiza durante a guerra e mostra, e este é objetivo maior da obra, as múltiplas consequências que estes fatos provocaram. A primeira afirmação que posso fazer é de que a minha perspectiva de leitura foi inteiramente alcançada e já estou bem mais apto para empreender a minha viagem. Quem tem poucas oportunidades para viajar tem que aproveitá-las muito bem.

Como atualmente vivemos uma situação extremamente conturbada no Brasil, também estou me dedicando a leituras sobre a questão do fascismo e do nazismo. Tenho duas indicações  prévias a fazer. Uma é do escritor Philip Roth, Complô contra a América, uma memorável ficção sobre os Estados Unidos frente a Segunda Guerra http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/04/complo-contra-america-philip-roth.html e o extraordinário Espelho do ocidente - o nazismo e a civilização ocidental de Jean-Louis Vullierme http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/03/espelho-do-ocidente-o-nazismo-e.html. Mas vamos ao livro de Richard J. Evans.

Ele tem 495 páginas, distribuídas ao longo de um prefácio e sete capítulos. No prefácio ele apresenta a Alemanha a partir de sua unificação, em 1871. Da unificação à formação de um Império poderia ser o título desta apresentação. Os capítulos tem os seguintes títulos, que especificarei logo em seguida: 1. República e Reich; 2. Por dentro da Alemanha nazista; 3. A economia nazista; 4. Política externa; 5. Vitória e derrota; 6. A política de genocídio e 7. Consequências e desdobramentos.

O primeiro capítulo, República e Reich, tem os seguintes subtítulos: Projeto de genocídio?; imaginando o Império; A derrota de 1918; Walter Rathenau; Berlim na década de 1920 e Forasteiros sociais. As abordagens são de encher os olhos, especialmente, de lágrimas. Projeto de genocídio? Ao que tudo indica, sim. As práticas de extermínio tiveram uma escola de treinamento no colonialismo que a Alemanha impôs ás sua colônias na África, especialmente, na Namíbia. Ali se formou e se forjou o conceito de "raça inferior útil". Ali não houve uma missão civilizadora mas experimentos científicos e práticas de extermínio. Observe-se que isto era uma regra gral do colonialismo. Com este prenúncio não fica difícil imaginar a pretensão da formação de um Império. Todas as nações o queriam. O mais impressionante tópico é, sem dúvida, o último que poderia receber um título como as origens do ódio e da segregação, desde as guildas e o desprezo pelas pessoas que ocupavam as funções inferiores na divisão social do trabalho. Um horror de "processo civilizatório".

O segundo capítulo, Por Dentro da Alemanha nazista, tem os seguintes subtítulos: Coerção e consentimento; A "Comunidade do Povo"; Hitler era doente e Adolf e Eva. Creio ser visível, pelos títulos, a importante questão da adesão ao nazismo e os esforços de propaganda neste sentido. O sentir-se "alemão" e o orgulho da raça ariana foram os conceitos amplamente trabalhados e, com sucesso. E mais dois tópicos de curiosidades que envolvem a vida do Führer.

O terceiro capítulo, A Economia Nazista, é um fenômeno à parte. Tem os seguintes subtítulos: Recuperação econômica; O "Carro do Povo"; As armas da Krupp e o simpatizante. É sabido que Hitler recuperou a economia alemã, domando a alta inflacionária e eliminando o desemprego. A indústria bélica em muito ajudou. A história da estatal Volkswagen é muito interessante, desde a sua concepção, seus usos e a modernização da fábrica. A história da Krupp é de arrepiar. A família Krupp me lembrou muito os novos ricos empresários brasileiros e a sua vontade absoluta de enriquecimento, passando por alto sobre toda a questão da cidadania e dos direitos. Krupp exerceu o que se pode chamar de "escravidão com trabalho remunerado", que se tornou uma prática constante, que culminou com as mortes por exaustão nos futuros campos de concentração. A Krupp se transformou no atual poderoso grupo da Thiessen. O simpatizante é um empresário, absolvido nos tribunais, Alfred Toepfer, que criou uma fundação, sediada em Hamburgo, que financia estudos sobre o nazismo. Uma interessante questão, um tanto particular ao autor. A meu ver faltou o envolvimento da IGFarben neste capítulo.

O quarto capítulo, Política Externa, tem os seguintes subtítulos: O aliado de Hitler; Rumo à guerra e nazistas e diplomatas. É evidente que o grande aliado de Hitler foi Mussolini e que os seus grandes inimigos foram a França, a Inglaterra, a União Soviética e os  Estados Unidos. Estes tópicos contém interessantes revelações sobre a diplomacia deste conturbado período. O autor procura desvendar se o Ministério era, ou não, linha auxiliar do regime nazista. Busca ainda esclarecer sobre este Ministério no pós-guerra.

O quinto capítulo, Vitória e Derrota, apresenta os seguintes temas: Decisões fatídicas; Engenheiros da vitória; O alimento da guerra, Derrota na vitória e Declínio e queda. Muito mais do que decisões que possam ter sido contestadas, a força econômica dos aliados foi o fator que pesou mais forte. O capítulo vale, especialmente, pelo fato de mostrar o intrincado xadrez dos passos da guerra, tanto nos avanços quanto na derrocada nazista e os bastidores destas terríveis decisões. Também é dada a devida importância para a questão dos alimentos, a produção de novas armas e a questão dos combustíveis ao longo da guerra. Estes fatores foram absolutamente determinantes. Ao final a questão da não suspensão da guerra é levantada. Ela se arrastou, mesmo após a derrocada.

O sexto capítulo, A Política de Genocídio, aborda as seguintes questões: Império, raça e guerra; A "Solução Final" foi singular?; Os campos de morte da Europa. Logo no início do regime Hitler pede a seus seguidores fechar o coração para a piedade e convoca os alemães a agir com brutalidade, pois o judeu era o inimigo mundial a ser derrotado. Este era o grande projeto de Hitler, que na juventude se aproximou da ópera de Wagner e dos romances de Karl May, que possivelmente o influenciaram. Quanto a "solução final", ou a ordem de extermínio dos judeus, a morte já era uma prática bastante comum nos regimes de dominação que a Europa impôs nos tempos do colonialismo. Com Hitler se chegou aos extremos, formando par com Stálin. Outra abordagem que acompanha todo o livro é a questão de Hitler com o leste europeu. Aí estava o "Lebensraum" do Império. A expansão dos Estados Unidos, em sua marcha para o oeste, serviu de inspiração.

O sétimo e último capítulo, Consequências e Desdobramentos apresenta estes tópicos: O outro horror; Utopias urbanas e Arte em tempos de guerra. O outro horror foi a viagem de volta dos alemães, do leste europeu para a Alemanha, um tempo pouco estudado no período pós-guerra. As utopias urbanas se relaciona aos projetos urbanos pós destruição, pelos bombardeios aéreos e as cidades sob novas perspectivas urbanísticas. O último tópico fala de roubos. Os mostra ao longo da história e também os saques praticados pelos alemães.

Deixo ainda, a contracapa do livro, junto com a recomendação de leitura e, de um modo todo especial, para os professores e estudiosos da história: "Uma das maiores autoridades mundiais sobre o nazismo, o historiador inglês Richard Evans, autor da trilogia que é a maior referência sobre o assunto, explica neste livro como o nosso entendimento sobre a Alemanha nazista vem se transformando no século XXI. Através de uma série de ensaios e textos, ele aborda diversos pontos que vivem sob o escrutínio. Analisa, por exemplo, a ação global de companhias alemãs criadas na época do nazismo, como a Volkswagen: mostra como os historiadores passaram a enxergar o Holocausto não como um evento histórico único, mas como um genocídio com similaridades aos praticados em outros países e em outros tempos. Cada tópico é discutido em um texto separadamente, facilitando a leitura e a compreensão".

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Amada. Toni Morrison. A primeira negra Nobel de literatura. 1993.

O principal motivo que me levou à leitura deste livro Amada, de Toni Morrison, foi o de ela ter sido prêmio Nobel de literatura. E com um acréscimo. Ela foi a primeira mulher negra a ser laureada com este título. Ler um Nobel, certamente, nunca decepciona. O ano em que ela recebeu o prêmio, foi o de 1993. Como escritora negra, o tema da escravidão, por óbvio, é o mote de sua obra. Ele está presente em todas as 363 páginas de seu livro. O livro é datado em 1987.
Amada, de Toni Morrison tem publicação pela Companhia das letras. Nobel de 1993.

Ultimamente estou lendo romances de estrutura narrativa complexa. Amada não fugiu desta estrutura. Narrador, tempo, o real e a ficção, o simbólico, as entrelinhas, o poético, a linguagem figurativa são todos elementos que fogem a uma narrativa simplesmente linear. A mulher negra e as suas lutas por um espaço na sociedade, numa sociedade que nega estes espaços, é o grande tema da obra. Sethe é esta mulher.

No Prefácio Toni Morrison nos dá a origem ou a concepção da obra: "Um recorte de jornal do The Black Book [O livro negro] resumia a história de Margaret Garner, uma jovem que, depois de escapar da escravidão, foi presa por matar um de seus filhos (e tentar matar os outros), para impedir que fossem devolvidos à plantação do senhor. Ela se transformou numa cause célèbre da luta contra as leis dos Escravos Fugitivos, que determinava que os que escapassem fossem devolvidos a seus donos. O equilíbrio e a ausência de arrependimento dela chamavam a atenção dos abolicionistas, assim como dos jornais. Ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade".

Eis o romance. Margaret Garner será Sethe. Junto dela viverá Paul D e a filha Denver. E para assombrá-los, Amada, uma espécie de fantasma da filha, que fora morta pela mãe. A partir desta estrutura narrativa ocorrerá uma viagem no tempo para as principais cidades e estados escravocratas, com muitas reminiscências dos horrores que foram estes tempos. Ao final, apresento duas destas passagens. Como a estrutura narrativa é complexa e difícil para se fazer uma resenha, apresento a orelha do livro, que certamente será um bom indicador para a leitura.

"Qual o sentido da memória numa existência marcada pelo horror? Como reconstruir afetos em meio aos tormentos do rancor e da culpa? São questões como essas que perpassam este livro, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1988.

Amada gira em torno de Sethe, ex-escrava que, alguns anos após o fim da Guerra Civil, vive com a filha numa casa nos arredores de Cincinatti. Sua família já foi bem mais numerosa. O marido, Halle, deveria ter escapado com ela da fazenda onde eram cativos, mas desapareceu; os filhos mais velhos fugiram de casa; Baby Suggs, sogra e principal liderança familiar morreu há algum tempo, deixando Sethe e a caçula Denver às voltas com a desconfiança dos vizinhos e, dentro de casa, com estranhos e assustadores fenômenos.

A verdade é que as duas não estão exatamente sozinhas. Com elas vive o fantasma de um bebê, responsável pela atmosfera atormentada que paira sobre a casa: trata-se de outra filha de Sethe, morta cerca de dezoito anos antes. Suas aparições cessam com a chegada de Paul D, velho conhecido dos tempos de escravidão que, à sua maneira, devolve a Sethe a esperança de construir uma vida nova, alheia aos traumas do passado. Mas uma segunda e inesperada visita traz novamente à tona cada um dos tormentos da protagonista - e a desafia a encarar o lado mais tenebroso de sua existência.

Amada é uma jovem misteriosa, que carrega como nome a única palavra gravada na lápide do bebê falecido. Com sutileza ela conquista a confiança de Denver e, aos poucos, inicia um processo de 'imersão' na vida de Sethe, num movimento que conjuga doses iguais de afeto e vingança.

Com estilo sinuoso, alternando registros e pontos de vista, Toni Morrison constrói uma narrativa complexa, que entrelaça com maestria brutalidade e lirismo, danação e encantamento. Baseado em acontecimentos reais, Amada é a bem-sucedida tentativa de compreender de forma profunda o legado da escravidão. Não por acaso, tornou-se um clássico contemporâneo, considerado por muitos o romance definitivo sobre o período mais doloroso da história americana".

Desta dolorosa história selecionei duas pequenas passagens: "Na casa de Lillian Garner, dispensada do trabalho no campo que quebrou seu quadril e da exaustão que entorpecia sua mente; na casa de Lillian Garner, onde ninguém a violava (nem espancava), ouvia a mulherbranca cantarolar durante o trabalho; via seu rosto se acender quando mr. Garner chegava e pensava: aqui é melhor, mas eu não estou melhor. Os Garner, parecia-lhe, tinham um tipo especial de escravidão, tratavam os escravos como trabalhadores pagos, ouviam o que diziam, ensinavam o que queriam que soubessem. E não faziam seus rapazes procriarem. Nunca os levavam à sua cabana com ordens de 'deitar com ela', como faziam na Carolina, nem alugavam seu sexo para outras fazendas. Isso a surpreendia e agradava, mas preocupava também. Ele iria escolher mulheres para eles ou o que achava que ia acontecer quando aqueles rapazes sentissem o gosto de sua natureza? Ele estava namorando algum perigo e certamente sabia disso. Na verdade, sua ordem de não saírem da Doce Lar, a não ser em sua companhia, não era tanto por causa da lei, mas pelo perigo de deixar à solta escravos criados como homens" (193).

"... Mil oitocentos e setenta e quatro e homens brancos ainda à solta. Negros eliminados de cidades inteiras; oitenta e sete linchamentos em apenas um ano em Kentucky; quatro escolas de pretos queimadas até o chão; homens adultos chicoteados como crianças; crianças chicoteadas como adultos; mulheres negras estupradas pela multidão; propriedades tomadas, pescoços quebrados. Ele sentiu cheiro de pele, pele e sangue quente. A pele era uma coisa, mas sangue humano cozido numa fogueira de linchamento era outra coisa completamente diferente. O fedor fedia" (242).

Ainda, dados biográficos da laureada, retirados da contracapa: Toni Morrison nasceu em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos. Formada em letras pela Howard University, estreou como romancista em 1970, com O olho mais azul. Amada lhe valeu o prêmio Pulitzer. Foi a primeira escritora negra a receber o prêmio Nobel de literatura, em 1993". A versão brasileira do livro é da Companhia das Letras (2018), com tradução de José Rubens Siqueira.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Nove noites. Bernardo Carvalho. Vestibular UFPR.

São múltiplas as fontes pelas quais chego aos livros que leio. Uma delas é a das indicações para vestibular. Nove noites, de Bernardo Carvalho, é uma das indicações para o vestibular da UFPR. Parece que a UFPR tem um gosto especial por livros mais difíceis, que, como já escrevi em outra oportunidade, não se revelam ao leitor através de uma primeira leitura, ou por uma leitura feita sem a exigência de muita atenção, assim como uma leitura efetivamente deve ser.
Nove noites. O suicídio de um jovem antropólogo norte-americano.

Bernardo Carvalho recorre ao expediente de seu livro ter dois narradores. Um é contemporâneo ao tempo em que o fato narrado ocorreu, isto é, ao ano de 1939. O outro é um jornalista, que em 12 de maio de 2001, lê um artigo de jornal, que relata sobre o fato ocorrido há quase 62 anos. O artigo é assinado por uma antropóloga. O caso referido é o de "Buell Quain, que se suicidou entre os índios Krahô, em agosto de 1939". O artigo faz referência a cartas deixadas por Buell Quain, explicando as razões que o teriam levado ao suicídio. Quain era estudante de antropologia da Universidade de Colúmbia.

A narrativa ganha um facilitador. O narrador contemporâneo aos fatos tem a sua narrativa escrita em itálico. Ele é residente em Carolina, município localizado ao sul do Maranhão, junto ao rio Tocantins, onde havia o posto do Serviço de Proteção ao Índio, e que servia de base para as expedições do antropólogo junto aos Krahô. Foi nestes caminhos, entre a cidade e a aldeia indígena, que ocorreu a trágica mutilação e enforcamento de Quain. O narrador fora amigo de Quain, e com ele passara nove noites, procurando desvendar os mistérios da vida do introspectivo e misterioso antropólogo.

Alguns dados precisam ser observados. Creio que a data de 1939 é o primeiro deles. É um tempo em que os indígenas brasileiros despertam muita atenção do mundo. Buell Quain, inclusive teria se encontrado com o famoso antropólogo Levi Strauss, na cidade de Cuiabá. Pouco depois deste encontro, Quain foi chamado de volta ao Rio de Janeiro, às pressas. Eram os tempos do Estado Novo e do início da Segunda Guerra Mundial. Neste ano, nem os Estados Unidos, nem o Brasil, haviam ainda tomado lado nesta guerra. As desconfianças mútuas eram enormes. As missões evangélicas norte americanas também já estavam presentes entre os povos indígenas. Hoje diríamos que, certamente, eram movidos por motivos humanitários. Faziam também relatórios...

Este primeiro narrador está presente em vários dos 19 capítulos, ou 19 tópicos do livro. As suas intervenções são sempre curtas, de duas a cinco páginas. O foco sempre será o de trazer dados que esclareçam sobre a vida do personagem, o que ele revelou nas conversas e nas cartas deixadas, sempre no intuito maior de deixar pistas sobre o suicídio do jovem antropólogo, de 27 anos. Assim ele relata a notícia do suicídio: "No dia 9 de agosto daquele ano, cinco meses depois de ele ter chegado a Carolina, uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final da tarde. Traziam a triste notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal do Dr. Buell, que eu mesmo recebi e contei, com lágrimas nos olhos: dois livros de música, uma Bíblia, um par de sapatos, um par de chinelos, três pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa preta [...] e um envelope com fotografias". E cartas. O segundo narrador irá em busca destas cartas. Quain era um deslocado da vida. Aos 27 anos já percorrera o mundo inteiro, sem se encontrar.

As razões apontadas para o seu suicídio são muitas. As cartas são bastante ilustrativas, mas nunca conclusivas. Entre as hipóteses estão ameças que ele poderia ter recebido dos índios (ele faz questão de isentá-los de qualquer culpa), frustrações com a vida familiar, pois seus pais teriam acabado de se divorciar, uma possível traição de sua esposa, embora nunca se soubesse ao certo se era casado ou não. Um pouco antes de sua tragédia recebera cartas dos Estados Unidos que o deixaram em estado de profunda prostração. Aí entra mais em cena, o segundo narrador, o jornalista investigativo.

Este narrador mistura muitos dados da sua vida pessoal com os fatos investigados. Também ele tem muitos problemas com a sua família, totalmente desestruturada. Os problemas se dão especialmente com o pai, ávido por terras, que conseguia com facilidade, assim como financiamentos generosos, durante o período do regime militar. Tempos de integração nacional, através de grandes projetos. Pelo aspecto familiar, não se sabe ao certo quem teria mais motivos para cometer o suicídio.

O jornalista, diante das muitas dificuldades que encontra para desvendar os mistérios que envolveram o suicídio, sempre fatores essencialmente subjetivos, passa a misturar a realidade com a ficção. E, como ficção, haja imaginação. Esta mistura a deixamos para o leitor, para uma leitura atenta e exigente. O romance foi escrito em 2002. Bernardo de Carvalho teve uma participação na FLIP de 2016, que se tornou bastante polêmica. A polêmica girava em torno da dificuldade da leitura de seus livros. Para facilitar a compreensão da leitura deixo o que está relatado na contracapa do livro, em sua edição de bolso, da CompanhiaDeBolso:

"Vencedor de prêmio de literatura da Biblioteca Nacional e do Portugal Telecom, Nove noites mistura fatos da vida do antropólogo norte-americano Buell Quain - que viveu entre os índios Krahô, no Tocantins, e se matou em 1939, aos 27 anos - com as elucubrações do narrador - que, 62 anos depois, ao conhecer o episódio em um artigo de jornal, passa a pesquisar a vida do americano. A história é dividida em dois tempos - há o relato da vivência de Quain entre os índios, em busca de pistas que expliquem a morte do antropólogo. Por meio da história de Buell Quain, Bernardo Carvalho revela as contradições e os desejos de um homem sozinho numa terra estranha, confrontado com os seus próprios limites e com a alteridade mais absoluta.

O tema, enfim, são os grandes e insondáveis mistérios da vida, tanto os do personagem em questão, quantos os do narrador. Uma forma bem peculiar e própria de escrever um romance.


quarta-feira, 1 de maio de 2019

Um folheto. Defenda a Copel Telecom.


Em primeiro lugar que dizer que sou usuário dos serviços da Copel Telecom e que estou muito satisfeito com a prestação de seus serviços. Dito isso, quero dizer que no dia de ontem, dia 29 de abril de 2019 fui na concentração e passeata pelo cumprimento da data base, que o governo do estado do Paraná deve aos funcionários do Poder Executivo, desde maio de 2015, obra do ex governador, Beto Richa, réu em diversos processos. Um gato, como dizia um dos cartazes levados à passeata. O mesmo cartaz dizia, ainda, que o rato estava seguindo os seus passos, os do gato, bem entendido.

Bem, a finalidade deste post não é falar sobre este fato, de que o estado do Paraná não honra a legislação básica para com o seu funcionalismo já há tanto tempo, fora outros direitos legais, mas comentar sobre um folheto publicitário que eu recebi durante a passeata, que eu apenas pus no bolso, para lê-lo com a devida atenção, ao chegar em casa. Vou reproduzi-lo na íntegra. O fotografei, uma vez que não consegui a sua localização virtual, que certamente daria uma melhor imagem.
O folheto que recebi ontem durante a passeata.

Na parte à direita do folheto consta, em letras maiores, o seguinte, em três tópicos:  SE VENDER A COPEL TELECOM, O PARANÁ PARA; DEFENDA A COPEL TELECOM. Ligue para 0800 649 49 e diga que você é contra a venda em defesa dos paranaenses. Ou mande um Whatsapp para 41 99231-6872. Ao final aparece a logo da Copel. fato que eu estranhei bastante, pois, a logo ali posta, equivale a uma assinatura.

Apenas isso não me motivaria ao Post. Então vamos para o lado à esquerda do folheto. Ali estão os argumentos em favor da não venda. Reproduzo apenas as letras e não as figurinhas, que estão ali colocadas, com um forte poder simbólico. Os argumentos são apresentados sob a forma de mensagens enviadas via Whatsapp. São sete. Ei-los na sequência:

O governador Ratinho Júnior tá querendo vender a nossa Copel Telecom. Para quê e por quê?

A Copel Telecom é a empresa mais bem avaliada no ranking da Anatel. Um orgulho paranaense.

Já 4 principais empresas de telefonia lideram o ranking de reclamações do Procon. Ou seja, a nossa empresa paranaense ganha de lavada das privadas.

Vendê-la é entregar a melhor na mão de péssimos empresários. E o maior risco é o apagão na qualidade do serviço!

A Copel Telecom conecta os Bombeiros, 2200 escolas estaduais, hospitais, Polícia Militar, Detran e Sanepar.

Com sua privatização, esses órgãos podem ser desconectados, piorando a qualidade do serviço que você busca.

Um governo eficiente investiria na Copel Telecom para levar internet rápida e barata para os paranaenses.

Achei muito oportuno este folheto e a questão está muito bem explicada. Por esta razão, mais publicidade para o folheto.