sexta-feira, 15 de março de 2019

Espelho do Ocidente. O nazismo e a civlilização ocidental. Jean-Louis Vullierme.

Uma frase me perturba há muito tempo. É a frase da abertura da fala de Adorno, em Educação após Auschwitz: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la". A fala é de 1965. Ao que tudo indica, o desesperado apelo de Adorno caiu em meio ao pedregulho e não apavorou ninguém.

Recentemente li, de Umberto Eco, O fascismo eterno. O livrinho é uma palestra por ele proferida na Universidade de Colúmbia, em 1995 e publicada no Brasil em 2018. Por que será, apenas em 2018? Nesta conferência ele apresenta 14 características do Ur-fascismo, o fascismo eterno. Vejam o autor apresentando a primeira destas características:

"A primeira característica de um Ur-fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Foi típico também do pensamento contrarreformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas pelo Panteão romano) começaram a sonhar com a revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sagrados, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas. [...] (Formou-se um sincretismo, logo transformado em verdade absoluta). E como consequência, continua Eco, "não pode haver avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem". Em outras palavras, a verdade está dada e não pode ser contestada. A ela todos devem se submeter. A cultura ocidental contém em si o germe de todos os autoritarismos.
Um livro que mergulha fundo na formação do pensamento e da cultura ocidental.

Esta é a tese de Espelho do ocidente - o nazismo e a civilização ocidental. O autor é Jean-Louis Voullierme, doutor em Direito e Ciências Políticas e professor de Filosofia nas Universidades Paris I e II. "Ele explora as raízes do mal", como lemos na contracapa do livro. A razão do livro está assim explicitada no Prólogo do livro, escrito pelo próprio autor:

"Sou de família que lutou contra o nazismo e foi parcialmente destruída por ele. Isso já seria suficiente para me interessar pelo assunto mais que os outros, mas não é a razão principal. Sempre me pareceu fundamental entender aquele que constitui o acontecimento mais destruidor da história moderna, identificando suas raízes para procurar extirpá-las. Eu também considerava que a memória dos mortos exigia no mínimo que se soubesse porque haviam sofrido tanto. Ora, essa compreensão não me era imediatamente acessível" Daí a razão da pesquisa.

No anúncio do livro eu lia sobre as contribuições de Henry Ford na construção do nazismo. Este fato foi, para mim, determinante para a compra e leitura do livro. Sabe aquela imagem de fundo que você tem de um autor... O operário de minha fábrica, deve, no mínimo, receber uma remuneração que permita comprar os produtos da empresa... Longe portanto dos empresários brasileiros preocupados em que os seus operários recebam o mínimo possível e que seus direitos sejam totalmente abolidos da legislação, como se verificou no último processo eleitoral. Contra esta imagem, pesa, no entanto, um livro seu. Ele é autor de um livro, com o título O judeu universal. Hitler cultivava a imagem de Ford e o seu livro era para ele, o seu livro de cabeceira.

Mas vamos ao livro de 363 páginas, divididas em duas partes, prólogo, introdução e conclusão. As duas partes tem os seguintes títulos: Primeira parte: A ideologia do extermínio e Segunda parte: Sair da ideologia do extermínio. A primeira parte tem seis capítulos, a saber: 1. Comentários sobre um mistério (O anti semitismo); 2. Um modelo americano (escravidão - Ford - a busca de espaço e a expansão para o oeste); 3. A revolução nacionalista (o nacionalismo e a civilização); 4. Colonialismo e brutalidade (ganha força o termo Anempatia, o oposto de empatia); 5. A ação histórica (o historicismo como o triunfo da vontade); 6. O antagonismo (o cultivo do inimigo - o anti e o instrumento da propaganda). Um mergulho na cultura e na história do ocidente.

A segunda parte é formada por dois capítulos: 7. Terapias cognitivas (Há alternativas dentro da própria cultura ocidental - humanismo) e 8. Construções míticas, perspectivas concretas (extirpar o "adubo ideológico" do fundo de nossa cultura). O que está entre as páginas 239 e 346 é dedicado à notas explicativas, que basicamente indicam as fontes da pesquisa e dão explicações de contextualização. São mais de cem páginas de muita riqueza. Uma preciosidade. É óbvio que o desvendar é mais fascinante que o propor, embora o propor seja o fundamental. Digo isso para evidenciar a primeira parte do livro. Um livro de extrema erudição.

Apresento ainda os três parágrafos da orelha que apresentam o livro: "É comum acreditar que o nazismo é produto de geração espontânea, fruto de mentes doentias e desmoralizadas, e que nasceu a partir da ideologia antissemita e do revanchismo em relação às consequências da Primeira Guerra Mundial. No entanto, suas origens são muito mais amplas e profundas.

A receita para a ascensão e o sucesso de Adolf Hitler não deriva de uma realidade isolada: tal intenção exterminadora, mesmo dissimulada, era compartilhada por um bom número de intelectuais e empresários, incluindo Henry Ford. Estava no próprio cerne da civilização ocidental.

Em Espelho do Ocidente, Jean-Louis Vullierme identifica as raízes do episódio mais arrasador da história, analisando sistematicamente o modo de pensar e operar dos nazistas, assim como o vigor com que o extermínio foi empregado como solução. Fruto de ampla pesquisa, este livro rico em fundamentos é polêmico e preocupante; o ponto de partida para uma abrangente discussão sobre os problemas que rondam o mundo".

Também considero interessante uma das notas da contracapa: "Neste ensaio, o autor tenta mostrar a origem intelectual do nazismo e do Holocausto. Hitler não é apresentado como um louco, nem a Alemanha como uma ilha negra em uma Europa iluminada; antes se apresenta tudo como uma inevitabilidade num continente que já antes gerara tanta maldade".

E para concluir: Eco acertou na mosca. A raiz está nos primórdios da formação do pensamento ocidental e a preocupação de Adorno com a repetição de Auschwitz, está cada vez mais distante, à medida que nos afastamos do horripilante fato. Tudo o que causou Auschwitz, continua sendo cultivado, até diria, com doses bem mais elevadas. Anempatia e antagonismo dominam mentes e corações neste mundo cada mais desumano.

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