segunda-feira, 18 de março de 2019

o remorso de baltazar serapião. valter hugo mãe.

Um enigma. Tive dificuldade enorme em ler este livro, o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe. Recorro ao curto prefácio de José Saramago, que nos dá pistas, além do elogio à forma linguística, à abolição dos "sinais de trânsito", que nos levam a dirigir com redobrada atenção e cuidado. Ou seria, a exigência de muito maior atenção na sua leitura? Saramago qualifica a obra como um verdadeiro tsunami, um "ímpeto arrasador e ao mesmo tempo construtor".
O tsunami literário de valter hugo mãe.


Mas vamos ao que Saramago fala da obra em si, para além de sua forma de apresentação: "A época que se reconstitui, embora não se possa falar exactamente de reconstituição, é uma certa Idade Média que está ausente dos livros que dela falam e das ficções que sobre esta época se armaram. Nós gostamos muito, nós os portugueses, gostamos da Idade Média, não se sabe porquê, talvez por causa d'A dama pé-de-cabra ou d'O bispo negro, dessa espécie de Idade Média desinfectada, limpa como se houvesse detergentes de todo tipo, mas o que acontece é que aquilo cheirava mal, era feio. Foi aqui dito que o livro cava um diálogo que não tem fim entre o feio e o belo, mas eu creio que é preciso ter muita esperança na vida para achar que aquele belo vai ganhar a batalha, e a prova é que não a ganhou".

Confesso que a uma certa altura da leitura, imaginei que se tratava, não de um romance que retratava a Idade Média, mas sim, o futuro da humanidade, enrodilhado em desespero e desesperança. Uma verdadeira distopia. A leitura me causava um certo desconforto.

Na contracapa encontramos mais uma explicitação bem esclarecedora: "Estirpe e jugo são os elementos brutos com os quais a poderosa linguagem de Valter Hugo Mãe narra a história da sarga, "nascidos de pai e vaca" e de seu primogênito, que dá nome ao livro: baltazar, camponês miserável e de passividade bestial, cujas vida e jovem esposa são exploradas por dom afonso, senhor das 'almas e coisas' daquela terra. E põe bestialidade nisso. Também são profundamente esclarecedoras as imagens, os desenhos ou as representações que aparecem no começo e ao final do livro. São desenhos de seres humanos misturados com animais, com detalhes sobre os temas enfocados ao longo do livro.

Como ilustração e chamativo para a leitura, deixo os mistérios e enigmas do último capítulo, o de número vinte e oito: "apercebi-me de se levantarem já tão ágeis pelo hábito quanto pela perda progressiva da razão. apercebi-me do mugido súbito da sarga por coisa que na noite rondou a sua calma. uma qualquer presença incómoda que a pôs em sobressalto. e eu nem me levantava, nem me acusava de atitude alguma. ergui a cabeça lentamente e ao pé da fogueira estavam o aldegundes e o dagoberto uma vez mais torcendo a minha ermesinda, e mais a sarga se incomodava, mais a ermesinda se inquietava, mais a ermesinda bulia debaixo deles, esticada por um e por outro para corresponder em formas às entradas que eles queriam fazer. e ela atrapalhava-se respirando com maior dificuldade. coisa que dava à sarga era proporcional à coisa que lhe dava também. mas eu demorei a decidir ideia válida de fazer. ali estava, em nova permissão. abdicando de tudo, já nem por manter a sensatez da educação da minha mulher senão para permitir que, com mais dois, fôssemos quatro como casal de deus. eu sentiria até ali o remorso dos bons homens. como havia pensado, remorso duro de tão dignamente administrar a educação da minha ermesinda. mas até ali, pensei, até ali, por que naquele momento, mais do que a condenação de restarmos os quatro encurralados para todos os avios, ocorreu-me a falha grave do meu espírito. e tão amargamente me foi claro que, por piedade ou compreensão com os meus companheiros, e talvez por ausência da voz da minha mulher, passara para lá do limite. o remorso dos bons homens já não me assistia, senão só a burrice e ignorância de quem abdicara de sua mulher.

ainda pensei, talvez fosse só da chuva que caía, talvez fosse só da avidez dos dois traidores, com ganas de alívio maiores do que o costume, ou talvez fosse por pressentir o apelo da minha indefesa amada, ali disposta para banquete de homens que não eram o seu marido, sim, talvez fosse por isso que a sarga estava diferente. e a minha ermesinda mais se tentou debater e mais lhe custava a respirar, mais eles se afligiam com controlá-la para, mais que não fosse, voltarem aos seus lugares e esperarem que se acalmassem, as duas, ela e a vaca. e foi como me levantei. aproximei-me dos dois, grande e imbatível como uma pedra de ódio construída no exercício do meu bom amor, e que me pus diante deles tão pequenos. afastaram-se de minha ermesinda que, imóvel, respirou menos, respirou menos, respirou menos, não respirou. a sarga mugiu de modo lancinante. e eu abati-me sobre os dois abrindo lado a lado os braços de punhos fechados. um só golpe certeiro com a violência da pedra mais furiosa do mundo. sobraram no chão como mais nada ali estivesse.

depois ergui-me, aqueci, tive a percepção fatal de que o meu corpo não suportaria nem o caminho até ao pé da sarga. na escuridão contínua, a sarga talvez tentasse chegar a mim também". E voltamos a Saramago: o remorso de baltazar serapião é um tsunami linguístico, estilístico,semântico,sintáctico".

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