Confesso, antes de mais nada, que é extremamente prazeroso ler Valter Hugo Mãe. Mas confesso também, que isso não é uma tarefa fácil. Os seus romances tem uma estrutura complexa e a cada momento estamos diante do inusitado, de um poético e de um simbólico que sempre perpassa toda a obra. Com Alberto Manguel aprendi que um dos segredos da leitura é sempre se por diante da pergunta: O que o autor efetivamente quis dizer.
Que maravilha. Imprudentemente poéticos. Morte e suicídio.
Que maravilha. Imprudentemente poéticos. Morte e suicídio.
Dito isso, vou buscar, no final de Homens imprudentemente poéticos, uma nota do próprio autor sobre o seu livro. Entre vários agradecimentos ele nos diz: "Ao encontrar os fios ainda frescos dos suicidas que entram a floresta no sopé do monte Fuji, estratégia de Ariadne, o calafrio traz a dúvida de saber se na sua extremidade, ao centro do labirinto, alguém medita desesperadamente acerca do fim. Por ser ocidental, a cultura da culpa, a base cristã e a inteira obrigação para a vida impelem-me à salvação de cada pessoa. Como se a morte fosse sempre pior do que prosseguir na deriva tantas vezes cruel de existir. Para os japoneses o suicídio reveste-se de complexa nobreza. O morto nobre, na floresta do monte Fuji, sobra nas árvores como a devolver-se à mutante natureza. A natureza é, de todo modo, o único futuro viável, a única perenidade".
Está claro que Valter Hugo Mãe nos quer falar da morte e, mais precisamente, sobre a morte em sua pior forma, dentro dos parâmetros da cultura ocidental, qual seja, a forma suicídio. Lembro da minha Harmonia, minha pequenina e católica cidade natal. Os suicidas e os não cumpridores dos mandamentos da igreja, aqueles cinco, lembra, eram enterrados ao lado do cemitério e não na sua parte principal. Assim, além da danação eterna, vista pelos olhos da fé, recebiam também olhares reais nada complacentes e bondosos, da companheirada da comunidade. Triste e apavorante.
Então a poesia imprudente do poeta escritor busca uma outra cultura, com outra visão sobre a morte e com outra visão sobre o suicídio. Numa visão cósmica, pela morte ingressamos no universo da natureza. Isso já é imprudentemente poético e, muito benfazejo. Liberta da danação, do fogo eterno, dos demônios do mundo simbólico e do real.
Dois japoneses moram ao sopé da montanha ou do parque dos suicidas. Itaro era um artista que pintava leques. Vivia em companhia da criada Kame e da menina Matsu, a irmã. Matsu era cega e com isso alargou a visão com outras formas de enxergar. Itaro vivia muito perturbado. Ao lado morava o oleiro Saburo e o quimono de Fuyu. Pelos movimentos, ao vento, ela continuava ao lado de Saburo. O oleiro cultivava um bem cuidado jardim, passagem obrigatória no caminho dos suicidas. Este jardim, a muitos fez retroceder em suas intenções. Itaro e Saburo eram pessoas boas, porém, se odiavam de morte.
O romance é a trajetória percorrida por Itaro, Kame e Matsu. Kame, a criada eventual da família, tronou-se a mãe/perto da pequena cega. Itaro buscou a sabedoria do japão profundo, a mando de um sábio. Já a trajetória de Saburo era a de viver as flutuações do quimono, dos cuidados com o forno e do jardim e das implicações com o vizinho. Os momentos mais imprudentemente poéticos são os da menina cega, que tem o olhar alargado da visão para compensar a deficiência física do enxergar. Itaro também alargou a sua visão.
O último capítulo do livro se volta ao título da obra: A imprudência poética. Nele lemos: A senhora kame explicava: "É um algodão a chegar da floresta. É lindo. Itaro sentia que era lindo.
Os três se deixaram assim. O oleiro sabia um poema acerca da vetusta cerejeira da noite de Guion. O artesão pediu: faça-nos ouvir, por favor. faça-nos ouvir.
O perfume das impossíveis cerejeiras inebriava os inimigos que, distraídos pela poesia, adiavam todas as decisões. A vida, subitamente, era sem pressa. Planeariam combater-se mais adiante, se ainda fosse interessante matarem-se um ao outro.
Depois, Saburo voltou a dizer: vou cuidar dos incómodos das flores. Mas o cego sabia que o jardim perecera e que o oleiro se deixara daquela delicadeza. A ausência do quimono da senhora Fuyu abandonara o oleiro à realidade. E a realidade era sem maior fantasia. Vinha o inverno. O frio bastava para que se quisessem ocupar de mudar tudo. Pela primeira vez mudar tudo.
Calmamente, como num pensamento maduro, Itaro decidia que haveria de se prostrar no chão junto ao castelo de Nijó, o mais cerca do palácio de Ninomaru que lhe fosse possível. De rosto caído. A honra inteira na palma da mão a pedir. Como se explicasse à bondade de cada homem que o espírito divino o honrara com aquela situação. Enfrentava a contagem da míngua e a arte de mendigar. Sabia que os mendigos eram teatrais. Estavam longe de mentir. Apenas ilustravam o desespero com talento.
Falaria de amor. Diria: o que se opõe ao amor se afeiçoa à morte. O artesão haveria de mendigar por obrigação de alegria". É... o que se opõe ao amor se afeiçoa à morte. Absolutamente - imprudentemente poético.
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