sexta-feira, 28 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um Brasil. 12. Câmara Cascudo.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.


Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país.

O décimo segundo trabalho do presente livro trata de analisar o pensamento de Luís da Câmara Cascudo, o grande estudioso da etnografia e do folclore brasileiro. Ele é apresentado por José Reginaldo Santos Gonçalves, professor de antropologia cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob o título de Luís da Câmara Cascudo e o estudo das culturas populares no Brasil. Vejamos alguns dados biográficos seus:

"Nasceu no ano de 1898 em Natal, RN. Ganha título de bacharel pela Faculdade de Direito do Recife (1928). [...] Na década de 1920 torna-se amigo  e colaborador de Mário de Andrade. [...] Leciona na Faculdade de Filosofia e Faculdade de Direito de Natal. Publica, dentre outros, Vaqueiros e cantadores (1939), Geografia dos mitos brasileiros (1947), Dicionário do folclore do Brasil (1954) e História da alimentação no Brasil  (1963). Morre em Natal no ano de 1986).

José Reginaldo Santos Gonçalves inicia a sua resenha falando da obra principal de Câmara Cascudo, o seu Dicionário do folclore brasileiro. A apresenta como a obra referência e o primeiro livro a ser consultado quando o tema é o folclore brasileiro. Também o apresenta em suas múltiplas atividades, como historiador, memorialista, romancista, folclorista e etnógrafo, que teve ativa participação do movimento modernista e que jamais abandonou a sua cidade natal, o que mereceu a atribuição de "provinciano incurável".

No que consistia o seu trabalho? Basicamente ele observava e registrava a cena das formas da vida social. O seu olhar era o de um envolvimento afetivo. Observava o "folclórico", "o popular". A alimentação, as redes de dormir, as jangadas e os jangadeiros, a literatura oral, os gestos, as expressões cotidianas, a feitiçaria, as cachaças, os vaqueiros, os cantadores, as festas populares e religiosas, além das religiões populares, da feitiçaria e da medicina popular. Foi precedido nesse seu trabalho por Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues.

O resenhista observa que tudo o que ele registrou, como as mentes primitivas anteriores a uma vida dominada pela racionalidade, estariam condenadas ao desaparecimento sem os seus registros. Em seu tempo sofreu as influências das teorias racistas, pois a raça e a cultura eram associadas ao grau de desenvolvimento, ou não, do povo. Mais, eram consideradas como impeditivos ao desenvolvimento. O movimento modernista ajudou a alterar este quadro, com a busca de uma identidade nacional. Dentro dessa realidade aparecem Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Mário de Andrade, entre outros.

A partir dos anos 1940 essa nova visão passou a ser dominante. Por ela se buscou o resgate e a preservação da "alma brasileira". Ele sofreu críticas quanto aos limites teóricos e analíticos de sua obra, o que teria prejudicado a interpretação dos fatos. Mas ninguém nega o seu valor quanto ao registro etnográfico da vida cotidiana por ele observada e registrada. Vejamos uma parte da resenha: 

"Para Cascudo, as diversas formas do folclore e das culturas populares existem no presente, e não como supostas "sobrevivências" de um passado "primitivo"; afetam a vida cotidiana das pessoas, orientam-lhes as escolhas e imprimem sentido a suas experiências. E aqui reside, em grande parte, a atualidade de sua obra. Em outras palavras, para ele, o folclore, as culturas populares estão presentes no corpo, no comportamento, no paladar, nos gestos, nos sentimentos mais íntimos dos seres humanos, manifestando o que ele chamou de "a contemporaneidade dos milênios": elementos arcaicos se fazem presentes na contemporaneidade enquanto "ruínas vivas"'.

O resenhista continua falando da importância e atualidade do autor: "Mas Cascudo não é apenas um compilador de dados ("elementos humildes e de uso cotidiano") obtidos por intermédio de sua experiência pessoal ou pela consulta criteriosa a arquivos e bibliotecas. Ele não apenas reuniu uma extensa e variada quantidade de dados sobre culturas populares no Brasil. Pois se todos os estudiosos de folclore realizaram, de algum modo, esse trabalho de coleta, nem todo estudioso de folclore é Câmara Cascudo. Em que esse autor se distingue dos demais intelectuais que, no Brasil, se dedicaram aos estudos do folclore?". Com certeza, a qualidade de seus registros.

Vejamos a última frase do resenhista: "Permanece sua obra etnográfica com sensíveis observações e registros cuidadosos sobre o vasto e rico universo das culturas populares no Brasil".  Deixo ainda um registro anterior sobre Câmara Cascudo, a partir do livro Clássicos, rebeldes e renegados.


E ainda, o trabalho anterior deste projeto de trabalho, sobre Mário de Andrade.




terça-feira, 25 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 11. Mário de Andrade.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país.

A décima terceira resenha do livro é sobre Mário de Andrade, num trabalho de Sérgio Miceli, professor do Departamento de Sociologia da USP., sob o título de A invenção do moderno intelectual brasileiro. E, como tal, um profundo modelador de toda a cultura brasileira, um "intelectual total", que deixou como legado as diretrizes da brasilidade. Vejamos alguns dados biográficos seus.

"Nasce em 1893 na cidade de São Paulo. Após formar-se no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, torna-se professor da mesma instituição em 1913. [...] Em 1922, é um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna. [...] Funda o Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo (1935) e a Sociedade de Etnografia e Folclore de São Paulo (1937). Em 1938, dirige o Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal e trabalha para o Instituto Nacional do Livro do Ministério da Educação e Saúde. É autor de Pauliceia desvairada (1922), Ensaio sobre a música brasileira (1928) e Macunaíma (1928), entre outros. Morre em sua cidade natal em 1945".

Sérgio Miceli abre a sua resenha afirmando que Mário de Andrade era o único escritor modernista de sua geração que não fora um egresso da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e o apresenta como um autodidata. Não obstante, foi o nome de maior expressão do movimento. Foi um dos maiores interventores na vida nacional, especialmente na sua parte cultural. Foi um polímata. Foi um fruto da miscigenação e dela, ele herdou seus traços mais carregados. Teve um relacionamento familiar um tanto difícil. Família de classe média instruída. Isso tudo deixou marcas em sua formação, de superação.

Como não teve patrimônio material nem títulos escolares de prestígio, buscou compensação por um amplo aparato cultural. Era uma avis rara, que tudo fez pela renovação cultural de São Paulo, em tempo de valorização de livros e de revistas. Seus contemporâneos chamavam atenção para a sua total dedicação ao mundo da cultura, o que não passou despercebido para que circulassem muitos boatos sobre a sua vida particular, de homem solteiro, com traços de misoginia e homossexualidade. A sua afirmação cultural foi tal, que praticamente todos os escritores buscavam o seu aval.

Um dos fatos que mais me chamou atenção foi a sua atuação nos movimentos políticos de 1930 e 1932, com derrotas para São Paulo. Essas derrotas foram atribuídas à ausência de lideranças. E veio a reação, com a criação de entidades para suprir essa deficiência. Assim foi criada a Escola de Sociologia e Política e a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da recém criada Universidade de São Paulo e o Departamento Municipal de Cultura. São Paulo não queria mais perder no cenário político brasileiro. Mário de Andrade teve ativa participação em tudo. São as teses recém trabalhadas por Jessé Souza.

Sérgio Miceli também dá destaque a ampla correspondência por ele mantida com toda a intelectualidade brasileira, especialmente com Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Anita Malfatti. Aí foi se tecendo a modelagem de uma cultura autenticamente nacional e o modelo de intelectuais muito ativos na vida brasileira. São os anos 1920 e 1930. A sua relação com intelectuais estrangeiros, como Lévi Strauss e Roger Bastide lhe abre o campo para a antropologia e a sociologia.

Quanto a Macunaíma, o livro do nacionalismo modernista brasileiro, de 1928 merece o seguinte comentário de Miceli: "Valendo-se de processos criativos da música popular, Macunaíma se apoia nas roupagens do fenômeno musical e demais experiências da cultura popular, trajeto construtivo que garantiu ao autor o passo entre as fulgurações do povo e as interpretações em etnografia, folclore e psicanálise". E continua:

"Despido de intento mimético, o livro resulta desse cruzamento entre a pesquisa sobre a criação popular, o projeto de uma literatura nacionalista e a reciclagem de fontes documentais eruditas sobre lendas indígenas, cerimônias africanas, canções ibéricas e narrativas autóctenes. Mário juntou ao manancial heteróclito uma miscelânea de variada procedência: vida pessoal, textos etnográficos, cronistas coloniais, locuções idiomáticas e uma profusão de procedimentos retóricos. A salada de ingredientes lhe permitiu conceber um protagonista, Macunaíma, impregnado pela ambivalência física, psicológica e cultural, dilacerado entre ordens contrastantes de valores, incapaz de ajustar a cultura do povo ao ideário liberal do progresso, na corda bamba entre o Brasil e a Europa, 'um tupi tangendo um alaúde'".

Sobre Pauliceia desvairada, Miceli tece o seguinte comentário: "Os versos de Pauliceia desvairada (1922) vazam as suscetibilidades do autor diante de um trançado urbano radicalmente transformado pela presença imigrante, as energias de novas etnias e ocupações impulsionando a expansão citadina". Também outros poemas são analisados, inclusive os de publicação póstuma. Miceli assim termina a sua resenha:

"As cartas, Macunaíma e a poesia oferecem acesso privilegiado à obra magistral desse brasileiro de mil instrumentos, que sintetizou a si mesmo no verso lapidar: 'Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta'".

Li Macunaíma e o resenhei para o blog:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/01/macunaima-uma-rapsodia-de-mario-de.html

E ainda, o trabalho anterior do presente projeto, sobre Oliveira Vianna.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_24.html


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 10. Oliveira Vianna.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país.

A décima resenha do presente trabalho analisa o pensamento de Oliveira Vianna. Este é analisado por Ângela de Castro Gomes, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sua resenha leva por título - Um statemaker na Alameda São Boaventura. Vamos procurar entender o significado: State = Estado e Maker = fazedor, aquele que faz. Um "fazedor" do Estado, portanto. Já a Alameda de São Boaventura é uma das principais vias da cidade de Niterói. Oliveira Vianna era natural de Saquarema. Quanto ao Estado que ele ajudou a construir, é uma referência às instituições que ele ajudou a construir ao longo do governo Vargas.

A resenhista inicia a sua análise afirmando que a obra de Oliveira Vianna foi retomada nas décadas finais do século XX. Antes ela caíra no ostracismo em virtude de sua vinculação com o autoritarismo e com o racismo. A sua obra foi construída ao longo de 1920 até 1951. A longa ditadura civil militar (1964-1985) marcou uma aversão aos temas contidos em sua obra, mas foram estes mesmos temas que também o trouxeram de volta. Sérgio Buarque de Holanda afirma a sua importância pela vasta construção jurídica e política, da legislação trabalhista da era Vargas como contribuição sua.

Oliveira Vianna nasceu no ano de 1883, na cidade de Saquarema. Tornou-se bacharel em Direito no Rio de Janeiro, em 1905. Depois passou a ser professor de Direito em Niterói, onde também teve uma vasta contribuição na imprensa. Em 1926 torna-se sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e ingressa no serviço público. Após 1930 trabalhará como consultor do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, quando diversifica as suas leituras  e visões. Já a partir de 1940, como membro do Tribunal de Contas da União (TCU) oferecerá ao país diagnósticos e prognósticos para a implementação de políticas públicas. Defende um autoritarismo corporativo, pensamento que prosperou no período entre guerras. Com os fracassos militares e ideológicos do período ele migrou para a última etapa do seu pensamento marcado por um "abandono crescente dos determinismos biológicos e geográficos, em proveito da força do 'ambiente' social e cultural", nos afirma a resenhista. 

Dois livros seus ganharam destaque maior: Populações meridionais do Brasil (1920) e Instituições políticas brasileiras (1949). No primeiro diagnostica as razões de nossos atrasos. Somos incapazes de criar vínculos solidários e uma organização autônoma. Somos "insolidários" e por isso, incapazes de criar uma moderna sociedade urbano-industrial. Investimentos em educação, saúde e opinião pública seriam os antídotos para essa situação.

Com as crises do entre guerras, também a filosofia do liberalismo econômico entra em crise. Vejamos uma parte da resenha: "... Assim, para um grande número de intelectuais não se tratava mais de apontar a existência de condições adversas à vigência do modelo de Estado liberal, mas sim de afirmar sua impossibilidade de adaptação à realidade nacional. O que tais transformações de referenciais de análise e de valores indicavam era a importância da criação e/ou do fortalecimento de instituições e práticas políticas estatais, algumas já conhecidas, outras nem tanto, como mecanismo de start para o estabelecimento de um novo modelo político de Estado e de modernidade. O Brasil, por conseguinte, é apenas um dos países que se insere em um grande conjunto de experiências que marca o período entre guerras. A defesa do poder de intervenção do Estado e do avanço de sua governabilidade sobre a sociedade - uma regularidade em sociedades de 'modernização retardatária - acaba dominando esses novos projetos, que desembocam, com frequência, na defesa de Estados autoritários, concentrando poder no Executivo". É aí que entra em cena o Vianna Statemaker.

Ele se coloca com um dos feitores de um novo Estado, como uma organização corporativa do Estado. Desapareceria assim o "insolidarismo". Creio que o New Deal dos Estados Unidos nos dá uma ideia que marcou este período: intervenção, centralização e planejamento e expansão das funções do Estado. Economia e sociedade caminhariam em paralelo. É a ideia do Estado/nação. Vianna ainda defendia  soluções abrasileiradas, isto é, não copiadas do estrangeiro.  Os sindicatos, nesse sistema ganhariam grande importância, mas deveriam permanecer sob a tutela do Estado. É o corporativismo. São estas as ideias básicas de seu livro tardio - Instituições políticas brasileiras.

Vejamos o parágrafo final da resenha: "Oliveira Vianna é, obviamente, um homem de seu tempo, o que significa dizer um autor cujo pensamento se configura, é divulgado e reconhecido ainda nos anos 1920, alcançando sucesso até o final dos anos 1940. Dessa forma, ele dialoga com as tradições e paradigmas que vigoram nesse tempo, debatendo, preferencialmente, com os autores, que são também os atores políticos, dessa primeira metade do século XX".

Já trabalhei o autor em dois outros trabalhos, do livro Um banquete no trópico. Primeiro, Populações meridionais do Brasil.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-32-populacoes.html 

Em segundo, Instituições políticas brasileiras.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-14-instituicoes.html

E também a resenha anterior do presente projeto de trabalho, sobre Paulo Prado.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_20.html


quinta-feira, 20 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 9. Paulo Prado.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país.

O nono texto do presente trabalho é sobre o aristocrata paulista Paulo Prado. Ele é apresentado por Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicação da USP, num texto sob o título - Entre tradição e modernismo. Ao final do livro encontramos alguns dados biográficos seus:

"Nasce em São Paulo em 1869. Em 1887, participa da criação da Sociedade Promotora de Imigração e da empresa Casa Prado-Chaves & Cia., exercendo o cargo de presidente a partir de 1897. Gradua-se na Faculdade de Direito de São Paulo (1889). Representa seu estado na Comissão de Valorização do Café (1913-6). Incentiva o meio artístico paulista, promovendo, inclusive, a Semana de Arte Moderna de 1922. Comanda a Revista do Brasil (1923-5) com Monteiro Lobato e a Revista Nova (1931-2) com Mário de Andrade e Alcântara Machado. Com o último, funda a revista Terra Roxa e Outras Terras (1926). Publica: Paulística (1925) e Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928). Falece no Rio de Janeiro em 1943".

"O fautor verdadeiro da Semana da Arte Moderna foi Paulo Prado". A afirmação é de Mário de Andrade. Essa é uma das primeiras referências que Carlos Augusto Calil faz sobre o seu resenhado. É uma referência ao modernismo, em seu título. Já a tradição o relaciona a uma das mais tradicionais famílias da aristocracia paulista, que ele tanto busca descrever. Um de seus tios era Eduardo Prado, autor de A ilusão americana. Também merece um destaque inicial a sua amizade com Capistrano de Abreu, autor de Capítulos de história colonial, que o influenciou profundamente. 

Em 1922, Paulo Prado escreve O caminho do mar. Nele, ele afirma que o relativo isolamento de São Paulo lhe foi muito benéfico, uma que o afastou das nefastas influências da corte. Esse isolamento também tornou o seu povo mais insubmisso. Exalta o "paulista", uma mistura de branco e índio e, herdeiro das virtudes das duas raças. De Capistrano de Abreu herdou o esquema de suas obras futuras. Um roteiro paulista das etapas, da sua ascensão e clímax, da decadência e regeneração. A ascensão teria sido o resultado de seu isolamento, o clímax pela ação dos bandeirantes, a decadência, pela presença dos portugueses em Minas Gerais (Guerra dos Emboabas) e a regeneração com a lavoura cafeeira. 

Em 1925 ele reúne uma série de ensaios no livro Paulística, que obedece ao esquema acima exposto. Com relação aos bandeirantes, aos quais ele era bastante simpático, ele questiona se a expansão territorial que veio com eles, teria compensado toda a matança das populações indígenas. Considerava o "paulista" mais destro do que os bichos. Existe efetivamente uma raça paulista? A resposta, ele a persegue ao longo de toda a sua obra. Ele lhe aponta valores, como a independência, mas o considera desprovido de coesão e movido pelo afã dos ganhos materiais. O acúmulo de riqueza constituía a sua única preocupação.

Paulística não teve uma boa recepção por parte do público, em parte, devido a crise que envolveu a editora de Monteiro Lobato, A Companhia Editora Nacional. Já por parte da crítica contou com a percepção favorável de Mário e Oswald de Andrade. Depois de Paulística surge a sua obra mais famosa, Retrato do Brasil (1928). Observemos o seu subtítulo: Ensaio sobre a tristeza brasileira.

Retrato do Brasil se divide em duas partes. A primeira versa sobre a tristeza, apontada no subtítulo e a segunda é um post scriptum. Nos primeiros capítulos, de acordo com Calil, ele fixa comportamentos, descreve paisagens e associa fatos. Denuncia ainda  o romantismo. Já no Post scriptum ele fustiga a incompetência brasileira e ataca o primado da política sobre o interesse público. O livro, rapidamente se transformou em sucesso de público, alcançando várias edições. Ele chegou a prever os movimentos de 1930, bem como o fato de que ela não superaria os vícios herdados em nossa formação.

A sua última escrita está no prefácio para a segunda edição de Paulística. Nele, o seu pessimismo se transformou em algo pior, o desencanto. Chegou a perguntar até quando duraria a unidade nacional. Calil chega a apontar uma tendência moralizante nesse seu escrito. "Quem nele aparece é a voz do moralista, afirma". Vejamos ainda a parte final da resenha de Calil:

"Lívio Xavier, intelectual trotskista, numa rara resenha da segunda edição, aponta as contradições do autor percebidas a partir da comparação entre os prefácios das duas edições e sua tendência irrefreável à moralização. Tem razão o crítico, em ambos os livros de Paulo Prado predomina a palavra do moralista.

Por ocasião de sua morte, a obra submergira, com a colaboração do próprio autor, que não autorizou a reedição de seus livros. Reapareceram em volume único em 1972, no âmbito da celebração do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, sob os cuidados do amigo Geraldo Ferraz. As reedições promovidas recentemente recolocaram a obra de Paulo Prado na estante dos leitores contemporâneos. E o interesse de Retrato do Brasil voltou a se repetir". 

Em Um banquete no trópico, já me tinha deparado com o autor e com o seu Retrato do Brasil.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-9-retrato-do.html

E também o trabalho anterior, dessa série, sobre Manoel Bomfim.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_19.html




quarta-feira, 19 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 8. Manoel Bomfim.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país.

O oitavo trabalho apresentado neste livro versa sobre o médico sergipano Manoel Bomfim. Ele é apresentado por André Botelho, um dos organizadores do livro e professor do Departamento de Sociologia da UFRJ. O título de sua apresentação é: Um percurso de cidadania no Brasil. Que percurso difícil de ser trilhado! Mas antes de mais nada vejamos alguns dados biográficos do autor:

"Nasce em 1868 na cidade de Aracaju, Sergipe. Titula-se como bacharel pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1890). Nessa cidade, assume a cátedra de Pedagogia e Psicologia da Escola Normal (1898). Entre 1902 e 1903 realiza estudos de psicologia em Paris. [...] São de sua autoria: América Latina: males de origem (1905), Através do Brasil (1910), O Brasil na América (1930) e O Brasil nação (1931), entre muitos outros títulos. Morre no Rio de Janeiro em 1932".

Manoel Bomfim, na qualidade de médico e, de acordo com as teorias dominantes na época, era para ter sido um adepto do "racismo científico", do determinismo biológico para explicar a formação da sociedade brasileira. Essas teorias afirmavam a rígida hierarquização das raças, divididas entre as superiores e as inferiores. Mas, ele não o foi. Seus estudos o fizeram adepto da prevalência dos fatores socioculturais sobre os influxos naturalistas. Uma mudança profunda. As sociedades são modeladas por fatores histórico-sociológicos e não biológicos. As reformas para uma estruturação cidadã da sociedade adviriam com um amplo programa de alfabetização.

O seu olhar, desde América Latina: males de origem, de 1905, já está voltado para apontar que a origem de nossos males tem causas em nossa formação histórica, em nossa formação colonial, fundada, usando uma imagem da zoologia, no "parasitismo social". Existiu em nosso processo de colonização uma relação de parasita e parasitado, uma relação de determinismo histórico social e não biológico, portanto. Entre essas heranças culturais aponta especialmente para o sistema da escravidão e a forma de ser da monarquia "bragantina". Para "redimir" a sociedade brasileira, precisaríamos nos libertar de nossa herança ibérica, de sua influência degenerativa.

Entre as críticas que Bomfim recebeu está uma incongruência entre o diagnóstico e o prognóstico. Para eliminar os nossos males, bastaria a realização de reformas. Não prognosticava a necessidade de reformas estruturais e apontava para a educação como antídoto para os males herdados. Alguns analistas de sua obra afirmam que, posteriormente, ele teria superado esta visão reformista por teorias revolucionárias. Somente por uma revolução, que depusesse as nossas elites, alcançaríamos o ideal de uma sociedade igualitária e democrática. As elites, tanto as do Império, quanto as da República deixaram os nossos problemas intactos.

Para corroborar essa afirmação, vejamos um trecho da resenha de André Botelho: "Como o Império que a antecedera, a República parecia deixar os males de origem da sociedade brasileira intactos. Não tendo constituído objeto de políticas públicas efetivas, a educação formal continua a ser, ao longo da Primeira República liberal-burguesa, prerrogativa quase exclusiva das elites: na década de 1890, a República havia encontrado 84% de brasileiros analfabetos, na de 1920, eles continuariam sendo 75% da população. E como a alfabetização permanecia como critério do exercício do voto, a maioria da população brasileira continuava, obviamente, excluída do processo político". Tristes permanências, continua Botelho. E eu acrescento, essas elites continuam presentes até hoje e se manifestam sempre que a sociedade apontar, mesmo que minimamente, para qualquer mudança que aponte para os caminhos da cidadania. O fantasma dos golpes de Estado ronda permanentemente a nossa frágil democracia. Só depois de golpe de 2016, quantas tentativas do inominável presidente nós tivemos, autogolpes para a permanência no poder, com a marca da destruição de qualquer processo civilizatório.

Creio que no seguinte trecho, já ao final de sua resenha, encontramos uma síntese de seu pensamento, que também reflete toda a sua importância: "... Manoel Bomfim pode filtrar em pontos decisivos o influxo naturalista predominante no seu tempo e educar sua perspectiva na própria figuração das relações sociais. Enfrentando de modo crítico, e criativo, os recursos intelectuais que o seu tempo e seu contexto tornaram disponíveis, Bomfim pode contribuir para a afirmação da autonomia da dimensão histórico-social e do seu potencial explicativo da formação da sociedade brasileira". 

Botelho termina a sua resenha com um trecho de um artigo de Bomfim, publicado no Jornal do Brasil, em 28 de janeiro de 1919, ainda hoje extremamente atual. Vejamos: "Uma nação é a associação completa de todas as criaturas humanas fixadas num território, e vale pelo que valem os indivíduos que a compõem. Para elevar o país, para dar-lhe vida, força e progresso, há um meio seguro - preparar e elevar o homem que o povoa, e que resume a própria vida e força da nação. É o meio absolutamente necessário, e único. Não pode haver progresso, nem grandeza para um povo, se, na sua maioria, ele permanece anulado, aviltado, na ignorância e no analfabetismo".

Eu tive o meu primeiro contato com Manoel Bonfim, lendo o seu América Latina: males de origem. O li, sem a devida contextualização, de situá-lo em seu tempo e contexto. Mesmo assim ele me impressionou muito. A forte imagem do parasitismo. Deixo aqui essas impressões:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2013/11/a-america-latina-males-de-origem-manoel.html

O reencontrei depois, em Introdução ao Brasil - um banquete no trópico:  

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/07/um-banquete-no-tropico-29-america.html

E ainda o último texto deste trabalho, sobre Euclides da Cunha:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_17.html



segunda-feira, 17 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 7. Euclides da Cunha.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país.

O sétimo trabalho do livro apresenta o grande escritor e intérprete do Brasil, Euclides da Cunha. A resenha é assinada por Nísia Trindade Lima, professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz da Fiocruz e atual ministra da saúde do governo Lula - 2023-2026. Basicamente ela examina a obra e suas repercussões. A resenha tem por título - O Brasil como sertão. Vejamos alguns dados biográficos do autor, constantes ao final do livro:

"Nasceu em 1886, em Cantagalo, Rio de Janeiro. Forma-se engenheiro pela Escola Militar da Praia Vermelha (1890). Trabalha no Exército até 1896, quando passa a atuar como engenheiro civil em São Paulo (1895-1904). [...] Colabora com jornais e revistas desde 1884, trabalhando inclusive como repórter em Canudos. É eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras em 1903. Assina, dentre outros, Os sertões (1902), Contrastes e confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907) e À margem da história (1909). Morre no Rio de Janeiro em 1909).

Nísia Trindade inicia sua resenha, afirmando que o autor oferece diferentes chaves para a interpretação de sua obra. Nela se identifica a presença do positivismo e do romantismo e o desejo de encontrar meios que consolidem no Brasil um projeto de nação. Ele busca aquilo que seria autenticamente nacional. Sua obra contém noções de geologia, história, biologia, antropologia e sociologia, além de tensões entre um texto científico e ficcional. Pelos elementos científicos iremos encontrar em sua obra traços deterministas (a questão da raça) e dilemas para a formação histórica. Os sertões, a sua principal obra, obedece ao princípio da natureza, do homem e dos processos sociais. Assim os capítulos do livro são: A terra, o homem e a luta. Esta última parte se desdobra em: preliminares; travessia do cambaio; expedição de Moreira César; quarta expedição; nova fase da luta e últimos dias.

Quem escreverá Os sertões? Será o engenheiro militar, positivista e republicano, frustrado com a carreira militar, que irá cobrir as três semanas finais da Guerra de Canudos (1896-1897). A sua grande preocupação, inicialmente era a de dar uma visão favorável à República e ao Exército Nacional, mostrando que as instituições brasileiras funcionavam a contento. Não foi, no entanto, o que ele viu. Viu a grave ameaça às instituições e o triste massacre dos sertanejos. Ele passa por muitas transformações entre o que ele viu, as reportagens que fez para o jornal O Estado de São Paulo e a publicação da obra (1902). Vai se afastando das teorias racistas de Nina Rodrigues, para afirmar que o sertanejo não é um degenerado, mas um retrógrado. Para definir o sertanejo ele recorre a figura de Hércules/Quasímodo, isto é, um misto de fragilidade e força, monstruosidade e caráter heroico. 

A grande conclusão a que chega é a de que o sertanejo será a base para a construção do país. Por isso mesmo, não se conformou com o uso de dinamite para implodir os poucos sertanejos que ainda restavam em Canudos, pelo próprio exército brasileiro: "Atacava-se a fundo a rocha viva da nossa raça", nos conta em uma passagem do livro. Um sinal evidente da mudança de seus paradigmas está também na proposta para o título original do livro: Os sertões - a nossa Vendeia. Quando da publicação, o título foi simplificado, omitindo-se o caráter laudatório de que este massacre fosse a nossa Vendeia. No livro, os determinismos de raça, também já não aparecem.

Ao longo da obra aparecem as contradições entre o litoral e o sertão. Vejamos, nas palavras da resenhista: "Certamente, esse sentido convive com a representação negativa do homem sertanejo que, com sua mentalidade e religiosidade atávica, resistiria à mudança e ao fatalismo de um processo civilizatório do qual não poderia escapar. Mas é essa ambivalência que, na perspectiva euclidiana, torna não apenas possível, como positivo e necessário, para a civilização do litoral, o projeto de incorporação efetiva do interior à construção do Estado nacional no Brasil". Pouco adiante, ela conclui sobre a importância desse livro: "Os sertões permanecem, entretanto, como o livro monumento da nacionalidade brasileira. A força expressiva do texto contribuiu para seu impacto na gênese de uma teoria do Brasil, na qual sobressai a imagem de uma sociedade dividida entre um polo atrasado, no sertão, porém considerado a base da nacionalidade, e um polo civilizado, formado, entretanto, por copistas, por elites políticas e intelectuais que permaneciam com os olhos voltados para a Europa, de costas para o país".

As obras do autor sobre a Amazônia, onde esteve por um tempo mais longo, em missões diplomáticas no estabelecimento de fronteiras, obedecem ao mesmo princípio da dicotomia entre o litoral e o interior. Considerava a Amazônia como o outro sertão, ainda mais complicado, com as populações nômades e seus desenraizamentos. Ele se autoconsiderava como o profeta Jeremias dos tempos modernos. Lembrando que Jeremias era o profeta das lamentações. Por causa das queimadas, considera esses povos nômades como "fazedores do deserto". Isso já naquele tempo.

A sua obra sobre a Amazônia não teve o mesmo fôlego e a mesma repercussão de sua obra prima. Ainda deixo uma observação sua, muito perspicaz, de que a Cabanagem (1835- 1840) fora uma prefiguração de Canudos. Nísia termina sua resenha com uma definição do que é uma obra obra clássica: "Afinal, este é um dos mais importantes sentidos de nos aproximarmos de um clássico: entendê-lo em sua individualidade histórica e como um texto que ultrapassou o seu tempo". Os sertões, um clássico.

Deixo também uma resenha anterior, focado mais especificamente em Os sertões.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2022/06/um-banquete-no-tropico-7-os-sertoes.html

E também a resenha anterior desse presente trabalho.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_9.html


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. 6. Nina Rodrigues.

Continuo hoje mais um trabalho referente aos intérpretes do Brasil. Desta vez o livro referência é Um enigma chamado Brasil - 29 intérpretes e um país. O livro é organizado por André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz. É um lançamento da Companhia das Letras do ano de 2009. A edição que usarei é de 2013. Quem são os personagem trabalhados? Os organizadores respondem: "Os teóricos do racismo científico e seus críticos na Primeira República; modernistas de 1920 e ensaístas clássicos dos anos 1930; a geração pioneira dos cientistas sociais profissionais e seus primeiros discípulos". A abordagem sempre será feita por algum especialista. O livro tem uma frase em epígrafe/advertência. O Brasil não é para principiantes, de Antônio Carlos Jobim.

Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país.

O sexto trabalho do livro retrata o médico maranhense Nina Rodrigues, que nasceu na cidade de Vargem Grande em 1862, e morreu em Paris, em 1906. Nina Rodrigues formou-se na primeira escola de medicina do Brasil, a Faculdade de Medicina da Bahia. A resenha é de autoria de Lilia Moritz Schwarcz, também uma das organizadoras do livro. O seu texto tem um título um tanto sombrio, o que faz antever um autor com posições bastante complicadas - Um radical do pessimismo.

Pouco conhecia do médico maranhense. O conhecia por citações, que o implicavam com o racismo e pela obra de Jorge Amado, Tenda dos milagres, pelos embates que ele travava com o bedel da escola de medicina da Bahia, Pedro Archanjo, um dos mais belos personagens já criados pela literatura brasileira. Confesso que é pela primeira vez que vejo algo mais sistematizado sobre o autor. É um personagem de seu tempo, pelo qual podemos conhecer todo o pensamento de uma parte da elite brasileira de seu tempo. Observem as datas: nascimento em 1862 e morte em 1906. Libertação dos escravos, proclamação da República e República Velha, os fatos mais marcantes de seu tempo. Qual seria o destino dos ex escravizados, recém libertos? Quem, afinal de contas eles eram?

Como não é tão fácil fazer uma abordagem desse autor, vou recorrer bastante à autoridade de Lilia Schwarcz, para a apresentação do cerne de seu pensamento. Começamos pelos dois primeiros parágrafos de seu texto:

"Nina  Rodrigues legou uma imagem paradoxal. A despeito de ser frequentemente destacado como o primeiro antropólogo brasileiro a fazer um levantamento dos povos africanos residentes no país, ele é também lembrado como aquele que defendeu a existência de diferenças ontológicas entre as raças aqui residentes, e em especial por considerar a mestiçagem como um sinal de degenerescência.

As teses deste médico maranhense, professor da escola de medicina da Bahia, mesmo em sua época, foram entendidas como radicais e de difícil doma. De um lado, é evidente a adoção das teorias do darwinismo social e da antropologia criminal. De outro, é igualmente clara sua tentativa de classificar as diferenças entre os grupos; temas e propostas hoje, de certa maneira, datados. No entanto, a análise cuidadosa de certas obras deste cientista revelará impasses ainda presentes, seja no debate acerca das potencialidades dos grupos e etnias, seja na questão da diferença e em sua defesa absoluta. Nina Rodrigues foi, mesmo, um grande leitor e tradutor de seu próprio tempo; mas não só".

Schwarcz apresenta o pensamento de Nina Rodrigues, por suas obras, num subtítulo que representa também uma síntese: Mestiçagem e degenerescência. Vejamos: "Parte da "maldição" que recaiu sobre Nina Rodrigues advém de seus livros e estudos sobre criminalidade, que se concentraram no final do século XIX e início do XX. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894), Negros criminosos (1895), O regicida Marcelino Bispo (1899), Mestiçagem, degenerescência e crime (1899), entre outros ensaios, representam um novo momento na carreira desse médico que vê na criminalidade mestiça uma particularidade nacional".

Nina Rodrigues vê erros no Iluminismo, quando este afirma a liberdade e a igualdade como princípios universais, num visível embate com as ciências médicas que não apontavam, segundo ele, para os mesmos princípios. Isso implicava também num conflito entre os advogados e os médicos. Caberia, ainda segundo ele, aos médicos determinarem os fundamentos do Direito Penal e não, como estava sendo, aos juristas. O pensamento de Nina Rodrigues estava dominado pelos princípios de Cesare Lombroso e a predeterminação ou propensão inata para o crime, por parte de raças, tidas por ele como inferiores. Vejam uma afirmação sua: "Nenhum homem de bom-senso, bem esclarecido sobre os fatos, poderá crer que o negro valha tanto quanto o branco". Vejamos uma outra parte do texto: 

"Tomando a degenerescência como consequência de uma desigualdade antropológica e sociológica, Rodrigues passa a analisar casos que comprovam sua teoria. O debate se centra, então, na dicotomia entre universalismo e diferença, devidamente iluminada pela 'pesquisa de campo'. Aí estão os exemplos de parricídio, embriaguez, pederastia e vícios de toda sorte. Aí desfilariam, também, os casos de 'criminosos natos', matéria fundamental da antropologia de Cesare Lombroso".

Outro livro de Nina Rodrigues é Os africanos no Brasil. O livro já estava praticamente pronto em 1906, que, como podem observar, corresponde ao ano da morte de seu autor. Um discípulo seu, Oscar Freire, recebeu o encargo de publicá-lo. Mas ele também morre (1923) e o livro só aparece para o público em 1932. Ele retrata o período em que foi escrito, 1890 a 1905. Vejamos um trecho em que Schwarcz se refere ao livro: "... Nina é o primeiro a esclarecer seus objetivos: o estudo das procedências, sublevações, sistemas totêmicos e religiosos africanos, visando compreender a 'dimensão atual do problema'. O objetivo nunca foi exatamente 'preservar'; o que importava era 'determinar' o grau de inferioridade para então dimensionar a morosidade da civilização. Não por acaso, o livro de Nina traz na abertura uma citação de Sílvio Romero, contendor nas ideias, mas colega nas preocupações": ...'nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido! É uma desgraça"'. Lembrando que Sílvio Romero foi um dos defensores da teoria do "branqueamento", uma forma de miscigenação, portanto.

Sobre o polêmico autor, ainda, os dois parágrafos finais de Schwarcz: "Guardadas todas as especificidades contextuais, a obra de Nina Rodrigues continua atual, a partir do paradoxo que, mesmo sem pretender, evidencia: clamar por uma diferença que não é plural e relacional, mas racial, e que abole o suposto da universalidade humana (destaque meu). E no caso de Nina Rodrigues seu contexto lhe era até favorável. Afinal, o médico não poderia estar a par dos usos contemporâneos do conceito de cultura na Alemanha, que, como diz Norbert Elias, era uma região relativamente pouco conhecida (em contraste com as potências imperiais da Europa Ocidental). Também desconhecia a noção de relatividade cultural, cujo grande bastião seria a antropologia culturalista, que tomava força apenas nesse momento. Ao contrário, nosso autor apoiava-se em bibliografia de ponta e acima de suspeitas. O certo é que seus conceitos de raça não permitem migrar rapidamente para a ideia de cultura: sua base teórica é a biologia determinista e a constante demonstração da hierarquia social.

Nina Rodrigues foi vencido pelo tempo e seus ideais acabaram devidamente datados. Resta saber, porém, o que é datado. O pressuposto da desigualdade com certeza sim; já a noção de raça parece estar de volta. Além do mais, é possível dizer que vários de seus conceitos científicos ressurgem, hoje em dia, no honroso lugar da retórica do senso comum. Tudo faz lembrar o conhecido conto de Machado de Assis - O alienista, de 1882 -, em que Simão Bacamarte interna vários membros da sua cidade para depois liberar a todos e estudar, apenas, a si próprio. O conto de Machado de Assis é anterior ao livro de Nina Rodrigues. E por isso, mesmo que queiramos, não é possível tratá-lo como um exercício de premeditação. No entanto, como diz Roland Barthes, a literatura sempre sabe 'algo das coisas'. Fica evidente como a ciência era, já na época, uma drágea de difícil digestão".

Volto a Jorge Amado, à delícia de seu personagem Pedro Archanjo e a sua máxima "... há de nascer, de crescer e de se misturar" e "... quanto mais misturado, melhor". E ao certeiro título de Lilia Schwarcz nesse seu trabalho: um radical do pessimismo. Quase ao mesmo tempo da publicação  de Os africanos no Brasil (1932) surgiram os nossos intérpretes de que a mistura de raças não era impeditivo para o nosso desenvolvimento, embora, por interesses de dominação, o racismo ainda seja uma força tão persistente em nossa sociedade.

Deixo também o trabalho anterior dessa série, sobre Sílvio Romero.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2023/04/um-enigma-chamado-brasil-29-interpretes_9.html

terça-feira, 11 de abril de 2023

O imoralista. André Gide. Nobel da Paz - 1947.

O imoralista não é a minha primeira leitura de André Gide. O primeiro livro que li dele foi Os subterrâneos do Vaticano (1914). Por sugestão de um leitor do blog, que afirmou ser O imoralista, a melhor obra do autor, atendi agora a sua indicação para essa leitura. O imoralista é uma obra anterior. Ela é datada do ano de 1902 e é totalmente autobiográfica. Quando eu li Os subterrâneos do Vaticano, da coleção Os imortais da literatura universal, busquei, no volume de biografias que acompanha a coleção, dados biográficos seus, que reproduzo aqui. Ao lermos um romance autobiográfico, minimamente precisamos conhecer o autor. Vejamos:

O imoralista. André Gide (1902).

André Gide nasceu em Paris no ano de 1869 e morreu, na mesma cidade, no ano de 1951. A sua vida foi sempre de angústias profundas e ela, a sua biografia, esta sim, daria uma bela obra prima. Em seu diário confessava: "Foi minha infância solitária e mal humorada que me fez o que sou". Mãe protestante e autoritária se complementaram com um colégio, igualmente protestante e autoritário. Ah! Os rigores da moral. Hipocrisia à vista.

Aos nove anos, lemos no livro de biografias que acompanha a coleção, foi flagrado num ato de masturbação e, mãe e educandário zelosos, lhe buscavam a "cura". Passou, continuamos lendo, pela experiência do casamento, com direito à impotência na noite de núpcias e, também, por experiências homossexuais. Temia o mesmo julgamento de Oscar Wilde. No mesmo livro ainda lemos: "Voltado pra si próprio, como Narciso, nascia um escritor". Ao final de sua vida, escritor já consagrado e laureado, partiu do individual para o social e do psicológico para o campo político. Foi então movido por preocupações existenciais e com um mundo de injustiças, provocadas pelo colonialismo francês.

Na contracapa de O imoralista lemos uma pequena síntese do livro: "O imoralista é uma das obras mais ousadas de André Gide. Publicado originalmente em 1902, o romance traz a história de um jovem casado que, depois de se recuperar de uma grave doença, ganha um novo gosto pela vida ao conhecer um adolescente árabe numa terra africana então desconhecida e "selvagem". Nesta narrativa, o escritor francês ergue a voz contra os preconceitos do mundo burguês e denuncia corajosamente os obstáculos à liberdade do homem. Com traços autobiográficos, o livro é um dos trabalhos de maior sucesso de Gide, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura anos depois, em 1947".

Efetivamente, na narrativa Michel reúne três de seus amigos que não via há três anos, para lhes contar o sucedido nesse período. Casamento, viagem ao norte da África, grave doença e início de uma vida que, tudo indicava, seria uma vida normal. Vida afortunada, fruto de herança. Abandono de tudo e nova viagem, agora com o adoecimento de Marceline, a esposa. Muitas viagens por lugares pitorescos da Sicília, da Itália, da França e da Suíça.

No livro de biografias, sobre O imoralista lemos pouco. Vejamos: "Mais claramente autobiográficos seriam O imoralista (1902) e A porta estreita (1909). O primeiro relata a estória de Michel, educado num meio de limitações morais, que lhe impedia a plena expansão da personalidade. O tema não empolgou tanto a crítica quanto a forma: Em O imoralista revela-se, pela primeira vez, a pureza clássica do estilo de Gide, que o consagraria como um dos maiores nomes das letras francesas".

E a grande pergunta a fazer. O que seria o imoral em O imoralista? Arrisco um início de conversa. Seria a moral burguesa, o viver uma vida ausente de significados, entregue a mesmice repetitiva e sem nenhum ato de iniciativa do que se possa dizer, uma criação minha. O mesmo vale com relação ao amor, com a pergunta crucial do que ele realmente é. Com certeza, uma obra profundamente existencial. Todas as grandes interrogações da existência estão presentes. E por falar em existência, vejamos as palavras de Sartre sobre o autor, no livro de biografias:

"Quando morreu André Gide, em 19 de  de fevereiro de 1951, Jean Paul Sartre (nascido em 1905) rendeu-lhe homenagem na revista Les Temps Modernes: 'Todo pensamento francês, no decurso dos últimos trinta anos, quaisquer que fossem as suas coordenadas [...] era obrigado a determinar sua posição também com respeito a Gide'. E conclui: 'Gide é um exemplo insubstituível, porque soube escolher [...] tornar-se sua própria verdade'. Para quem procurou, toda a vida, encontrar-se, era, sem dúvida, o melhor dos reconhecimentos".

Deixo também a resenha de Os subterrâneos do Vaticano. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2021/06/os-subterraneos-do-vaticano-andre-gide.html