quarta-feira, 28 de março de 2018

O grande mentecapto dá uma aula de história do Brasil e de sociologia.

Cheguei ao livro O grande mentecapto - Relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações através da indicação de livros cobrados na realização dos vestibulares de nossas universidades. No caso específico, este é uma indicação da Unicamp. Um livro maravilhoso. Justifica plenamente a sua indicação. O grande mentecapto foi concebido na jovem cabeça de Fernando Sabino, já em 1946, quando ele tinha 23 anos. O nascimento se deu 33 anos depois, em 1979, em pelo regime militar.
Geraldo Viramundo, o grande mentecapto. Do andar debaixo. Magnífica charge de Edgar Vasques.

Neste post não vou fazer a resenha do livro. Já o fiz em outro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/03/o-grande-mentecapto-fernando-sabino.html  Vou apenas recortar trechos do oitavo e último capítulo, que eu considero uma preciosidade. Uma aula de história do Brasil e de sociologia. Digo apenas que Geraldo Viramundo, ou o grande mentecapto é um brasileiro. Este Viramundo é das Minas Gerais, mas bem poderia ser o de qualquer outro estado brasileiro, especialmente, dos chamados estados mais 'desenvolvidos', onde se formaram grandes centros urbanos, que tiveram a maioria de sua população formada por viramundos retirantes, para dar espaços para o agronegócio. Estes se encontram nas 'cidades livres dos mendigos', ou centros de cidades livres dos mendigos, em eternas políticas de higienização, onde políticas públicas são absolutamente criminalizadas. Sempre aponto em falas, duas características fundamentais de nossa elite, ao longo de nosso processo de formação histórica: a eterna presença do espírito escravocrata e bandeirante. Mas a vez é de Fernando Sabino. Antes, uma pequena contextualização.

Viramundo nascera em Rio Acima, nas proximidades de Belo Horizonte, e depois de passar por Mariana, Ouro Preto, Barbacena, Juiz de Fora, São João del Rei, Tiradentes, Diamantina, Congonhas, Uberaba e tantas outras, termina por chegar em Belo Horizonte ou na grande cidade. Lá procura os lugares mais distantes e tranquilos, mas abrigo mesmo, só encontrará sob as marquises ou debaixo de viadutos da região central. Mas vamos à narrativa:

"Buscou então lugares públicos onde pudesse passar despercebido, misturando-se a outros párias como ele, e foi debaixo do viaduto que se viu finalmente integrado à sua raça e gente. Chegara ao mais baixo degrau na escala social, além do qual só restavam os do vício, da delinquência e do suicídio. E mergulhara numa negra fase de completa e absoluta indiferença a tudo que o cercava.

Por essa época era desencadeada pelo governo a segunda providência (a primeira fora a da retirada do meretrício do centro da cidade) de ordem administrativa entre as três a que me referi (a segunda era a criação da 'cidade livre dos mendigos' e a terceira, não vem ao caso - uma questão interna no manicômio). As autoridades, como já se viu, não haviam encontrado no extermínio a solução para o problema da mendicância. Ora, uma luminosa inspiração do governador Ladisbão, no momento em que tomava banho, fez com que Sua Excelência saltasse da banheira como Arquimedes a gritar Eureka! pelos corredores do palácio. Convocou seus auxiliares e assim mesmo, completamente nu, expôs-lhes o seu plano, sem que ninguém pusesse reparo na nudez governamental, adeptos que eram do que preconizava a fábula do rei nu. Consistia a ideia do Governador em fazer construir um local fora da cidade especialmente destinado aos mendigos, onde seriam concentrados e de onde não pudessem sair. O perigo de que tal providência acabasse esvaziando a cidade e criando outra mais populosa, tal o número de mendigos, era um risco a enfrentar. Daí a ideia de chamar o local a ser construído de Cidade Livre dos Mendigos, valendo a ambiguidade da designação entre significar que os mendigos naquele local eram livres, ou que a cidade ficaria livre deles.
Que livro!

E assim se fez. E a partir de então as batidas policiais pelas ruas se intensificaram. Pôde enfim a polícia planejar a grande operação de recolher os abrigados sob o viaduto, executada justamente na noite em que Viramundo ali foi ter.

Nem bem ele havia chegado, e se viu perdido no tumulto de mendigos e retirantes, compelidos por guardas armados, aos empurrões, a entrar nos grandes tintureiros que cercavam o local por todos os lados. Alguns protestavam, outros tentavam fugir e eram logo apanhados, as mulheres choravam, agarrando-se desesperadas aos filhos, como se os protegessem contra os centuriões de Herodes.

Ao contrário da maioria, o grande mentecapto se deixou levar sem resistência, como se tal procedimento fosse perfeitamente natural. Onde estava a chama que ardia em seu peito, de destemido amor à liberdade, que antigamente o levaria a morrer por ele? Eram cinzas - mas cinzas das quais em breve renasceria o Fênix de sua indomável rebeldia. Quando chegasse a sua hora.

Em meio aos outros, transportados como bichos naqueles estranhos veículos, foi levado até um descampado onde se erguiam compridos galpões de madeira e zinco, cercados de arame farpado. Depois do desembarque, que se fez também com empurrões, os guardas conduziram todos ao local de triagem, um imenso pátio iluminado por poderosos holofotes, onde se viram separados em grupos de homens, mulheres e crianças. Alguns que já ali se achavam tinham a cabeça raspada e vestiam todos uma espécie de macacão azul, o que tornava iguais uns aos outros como um rebanho de estranhos animais".

Bem, meninada - o sinal tocou e aula acabou. Apenas duas observações ainda: Se quiserem continuar lendo busquem as páginas, a partir da 206, que foi onde eu parei e deixo ainda uma dica. O governador de Minas não era o Dória, a remover a Cracolândia e nem o Temer. Este, em ato posterior, no Rio de Janeiro, não satisfeito com a ação da polícia, chamou até uma intervenção militar convocando para tais trabalhos o exército brasileiro. O mundo continua viramundando.

sábado, 24 de março de 2018

O grande mentecapto. Fernando Sabino. Vestibular Unicamp.

Este livro ficou numa longa fila de espera. Ele chegou a mim através de uma lista de livros com indicações para vestibular, que, confesso, é uma das minhas orientações de leitura. No caso, foi a Unicamp. Não sei a razão pela qual demorei em lê-lo. Cheguei a Fernando Sabino através de Luís Fernando Veríssimo, que coloca O Encontro marcado entre os dez livros de sua preferência. Ler O grande mentecapto - Relato das aventuras e desventuras de Viramundo e de suas inenarráveis peregrinações foi uma bela aventura para o espírito.
O extraordinário livro de Fernando Sabino.

Na orelha do livro tem uma observação interessante. Antes vamos dizer que Fernando Sabino nasceu em 1923 e morreu em 2004. O local de nascimento foi Belo Horizonte e o da morte, o Rio de Janeiro. Geraldo Viramundo, virou apenas o mundo das Minas Gerais. Foi o suficiente para ser universal.O grande mentecapto foi concebido em 1946, quando o escritor tinha apenas 23 anos. Ficou como um embrião, sob a forma de pequenas anotações. Em 1979, com apenas 18 dias de trabalho, ele ganhou a sua forma definitiva. São oito capítulos e um epílogo. Eram tempos da ditadura militar.

Na leitura dos primeiros capítulos tive uma leve decepção. Imaginei que Fernando Sabino estava brincando conosco e, algumas brincadeiras, achei-as meio infantis. Me recordaram até a minha infância. Brincadeiras que eu fazia, não no seminário de Mariana, mas nos de Bom Princípio e de Gravataí. Isso, não nas Minas Gerais, mas nas terras gaúchas. Mas o livro veio num crescendo e, chegando ao último capítulo, eu estava simplesmente maravilhado. Outra vez eu me flagrei lendo o Dom Quixote em seus momentos de lucidez e de mentecaptez, sendo estes últimos melhores do que os da iluminação. Estes representavam a hipocrisia das convenções. Encontrei até a doce Dulcineia, que em Minas, necessariamente, teria que responder pelo nome de Marília. Teria sido, o seu amor, maior? Sancho Panças encontrei dois, Batatinhas e Barbecas. Aí parei de procurar.

A narrativa é breve e andante, como o foi a vida de Geraldo Viramundo. Apenas 33 anos. A causa mortis, consta que era ignorada, mas nela estava envolvido o seu irmão. Coisas de patrimônio.  Nasceu em Rio Acima (hoje oito mil habitantes e trinta e quatro quilômetros distante de Belo Horizonte), em meio a numerosa família e o seu destino e êxito na vida seria trabalhar na olaria ou no armazém do pai. Um padre o levou para o seminário de Mariana, onde, para se esconder de uma molecagem ou fazer uma meditação, cometeu outra maior. Se escondeu dentro do confessionário e aí atendeu a confissão da insaciável Pietrolina, ou seria Peidolina, que irá reencontrar, sempre no ofício, apenas como Dona Lina. Ainda em Rio Acima ocorreu uma tragédia em virtude de proezas com a chegada do trem.

A estas alturas, já no terceiro capítulo, encontramos o Viramundo em Ouro Preto. Aí mantém íntimos contatos com os estudantes da universitária e histórica cidade. Aí conhece a única amada de sua vida, Marília, a filha do governador. Com ela troca intensa e apaixonada correspondência, não acreditando na sacanagem que lhe fizeram os seus amigos estudantes. A sua despedida da cidade ocorreu em função de um festivo baile, em que, literalmente, jogou merda no ventilador. A caminho de Barbacena quer tomar um roseiral inteiro para oferecer rosas para a sua amada. Lá irá conhecer, pela primeira vez o hospício,  mas ainda lhe sobra tempo para mandar prender o alemão, dono do roseiral, e ser candidato a prefeito, contra o candidato único, imposto pelo governador. Dá um verdadeiro show de habilidade política. Esta habilidade lhe custa a prisão, que terá de cumprir em Juiz de Fora.

Em Juiz de Fora, ele, mandado cuidar de cavalos, se afeiçoa a um deles e, com ele, passa a conversar regularmente. Ganha notoriedade. Nesta cidade trava amizade com o general Batatinhas, que também enlouqueceu. É mandado para São João del Rei, fica preso em Tiradentes e, em Congonhas do Campo, passa por uma séria crise espiritual junto aos profetas da cidade. Sempre lhe faltara, desde a meninice, assunto para meditar. Nestas andanças encontra um sonhador, João Tocó, que sonha o sonho de muitos. Enriquecer com os diamantes. No caso, os de Diamantina. Em sua crise religiosa confessa não mais se sentir bem dentro das igrejas.

Em suas viramundices não poderia faltar a cidade de Uberaba, pegar vaca à unha e participar da grande exposição. De Uberaba vai rumando por uma centena de cidades, até chegar em Belo Horizonte. Nesta cidade, tem um reencontro com praticamente todos os personagens que encontrara em suas andanças. O reencontro se dará debaixo de um viaduto, de onde serão levados para  a "Cidade Livre dos Mendigos".  É o encontro dos retirantes do povo brasileiro, na busca de um destino na cidade grande. O mesmo destino também é reservado para as mulheres das casas de tolerância da área central. Lá reencontra Pietrolina, agora apenas Dona Lina, a comandar uma familiar casa de pensão. Geraldo Viramundo vira Antônio Conselheiro, disposto a fazer uma revolução.

Ainda sobra tempo para mostrar o governador em apuros, tanto para receber os revolucionários, como por causa de um fato ocorrido com o seu barbeiro. O novo Conselheiro veta as propostas de conciliação, interrompendo a leitura de um possível acordo cheio de palavras vãs. Confusão generalizada e o Viramundo se retira de Belo Horizonte no rumo da corte, no Rio de Janeiro. Lá, junto com o seu Estado maior, formado pelos dois Sanchos, levaria as suas reivindicações. A caminho, na sua terra natal, ocorre uma grande tragédia, envolvendo a sua família e o armazém. Assim, Geraldo Viramundo, ou, simplesmente, um brasileiro, encontra o seu final trágico de forma absolutamente precoce. Este oitavo capítulo é simplesmente genial. É uma síntese muito bem feita da história do sofrido povo brasileiro, empilhado nas grandes cidades e desassistido de políticas públicas. Estas, quando ocorrem, passam a ser criminalizadas imediatamente. Que força nas palavras! No início da 'República" esta criminalização recebia o nome de higienização. A história da favelização do Rio de Janeiro, onde se encontram milhares de grandes mentecaptos, é exemplar).

Na contracapa do livro temos três referências ao livro. Tristão de Ataíde, Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade. Fico com o poeta e conterrâneo de Fernando Sabino: "Fernando Sabino, na posse madura da arte de escrever, mostra-se sempre à vontade neste livro ágil, matreiro e comovente, em que loucura e razão se entrelaçam e não se sabe ao certo onde está o absurdo. [...] A gente sai do livro amando o mentecapto como o irmão que não tivemos". Muito humor e a poderosa arma da ironia. E, como acabo de ler, deixo aqui registrado. É uma frase do Henfil, um outro mineiro: "O humor que vale para mim é aquele que dá um soco no fígado de quem oprime".

O grande mentecapto também foi levado ao cinema. Geraldo Viramundo é interpretado por Diogo Vilela. Deixo o link. https://www.youtube.com/watch?v=y2AD9XNA8QI






quarta-feira, 21 de março de 2018

O Rei Midas. Fabricante de armas.

Lendo o livro Juliano de Gore Vidal, numa edição do Círculo do Livro, encontrei uma passagem em que o Imperador, em luta contra os persas e querendo restaurar a crença nos deuses helênicos, após o cristianismo ter sido proclamado como a religião oficial do Império Romano, chega na cidade de Pessinus, a cidade de Cibele e do famoso rei Midas. Procurei até a localização da cidade. É Gordiom, hoje Yassihüyük, capital da Frígia, na Turquia. Mas vejamos a passagem que me chamou atenção. É o Imperador Juliano conduzindo a narrativa:


"E chegando em Pessinus fui diretamente para o Templo de Cibele, ao pé da acrópole da cidade. O templo é muito antigo e imponente, mas dilapidado. É um lugar sagrado desde que a estátua da deusa caiu do céu. Isso aconteceu quando deu à luz seu filho, o lendário rei Midas, que construiu o primeiro santuário em honra da mãe". Mas vamos à narrativa da história, para depois ver a versão de Juliano. A história eu a tomo da Wikipedia mesmo.

"Midas era um rei que vivia em abundância em seu castelo, junto com a sua amada filha. Embora possuísse muitas riquezas, Midas sempre desejava aumentar suas posses. Era tão aficionado pelo seu ouro, que um de seus passatempos favoritos era contar moedas de ouro.

Certa vez Baco (ou Dionísio, deus do vinho) deu por falta de seu mestre e pai de criação, Sileno, enquanto realizavam um passeio. O velho andara bebendo e, tendo perdido o caminho, foi encontrado por alguns camponeses que o levam ao seu rei, Midas. Midas reconheceu-o, tratou-o com hospitalidade, conservando-o em sua companhia durante dez dias, no meio de grande alegria. No 13º dia, levou Sileno de volta e entregou-o são e salvo a seu pupilo. Baco ofereceu, então, a Midas o direito de escolher a recompensa que desejasse, qualquer que fosse ela. Midas pediu que 'tudo que tocasse virasse ouro'. Baco consentiu, embora pesaroso por não ter feito uma escolha melhor.

Midas seguiu caminho, jubiloso com o poder recém adquirido, que se apressou a por em prova. Mal acreditou nos próprios olhos quando viu um raminho que arrancara de um carvalho transformar-se em ouro em sua mão. Segurou uma pedra; ela mudou-se em ouro. Pegou um torrão de terra; virou ouro. Colheu um fruto da macieira; ter-se-ia dito que fartura do jardim das Hespérides.

Sua alegria não conheceu limite e, logo que chegou em casa, ordenou aos criados que servissem um magnífico repasto. Então verificou, horrorizado, que, se tocava o pão, este enrijecia em suas mãos; se levava comida à boca, seus dentes não conseguiam mastigá-la. Tomou um cálice de vinho, mas a bebida desce-lhe pela boca como ouro derretido, sua filha tocou nele e se transformou em ouro.

Consternado com essa aflição sem precedentes, Midas lutou para livrar-se daquele poder: detestava o dom. Tudo em vão, porém; a morte por inanição parecia aguardá-lo. Ergueu os braços, reluzentes de ouro, numa prece a Baco, implorando que o livrasse daquela destruição fulgurante. Baco, divindade benévola, ouviu e consentiu. 'A água corrente desfaz o toque', disse-lhe Baco, 'mergulhas o que tocastes num rio e os objetos em que tocaste voltarão a ser o que eram'. Midas correu a cumprir o que dissera o deus do vinho e, com a água do rio Pactolo, que correu num jarro, foi banhando todos os objetos em que tocara, restituindo-lhes a natureza primitiva, a começar pela própria filha, que ele, então, pode abraçar sem perigo de torná-la de ouro. Dizem que Midas, ao se abaixar para colher a água na margem do rio, tocou na areia com as mãos e que, por isso, ainda hoje, o rio Pactolo corre por sobre um leito de areias douradas.

Voltamos a Juliano. Ele continua a sua narrativa: "O mito de que tudo o que Midas tocava transformava-se em ouro, embora simbolicamente fascinante - e sem dúvida admonitório! - provavelmente é baseado no fato de a região de Pessinus ser rica em ferro. Midas foi um dos primeiros a fabricar e vender armas de ferro, o que o tornou fabulosamente rico. Na verdade, tudo o que ele tocava se transformou em metal, mas o metal era ferro. Ao lado da acrópole, perto do túmulo de Midas, vi com meus próprios olhos a primeira oficina de fundição do mundo, presente da mãe ao rei Midas". Página 325.
Neste livro, a bela passagem sobre o rei Midas.



Ao acaso, e na primeira consulta ao google, sobre a indústria bélica, encontrei, na Revista Brasil, os seguintes dados. Ricos, poderosos, sem limites. O trilionário negócio das armas
Num mundo de 840 milhões de famintos, as despesas militares dos países superam US$ 1,7 trilhão em três anos, o equivalente a US$ 260 dólares por habitante do planeta. E neste mundo, Baco, o deus da generosidade está sepultado há muito tempo. É impressionante a força do poder simbólico.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Juliano. Gore Vidal.

Na leitura do magnífico livro O Oráculo - O segredo da antiga Delfoshttp://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/03/o-oraculo-o-segredo-da-antiga-delfos.html me chamou atenção uma referência a Juliano, o Imperador Romano que tentou restaurar as crenças do helenismo, após a declaração do cristianismo como religião oficial do Império por Constantino e de ter unificado o principal de sua doutrina, através do Concílio de Niceia, em 323. Numa rápida busca, vi que o Imperador mereceu uma biografia escrita por Gore Vidal, fato que me motivou para a sua leitura.
Uma das edições do livro de Gore Vidal, Juliano.

Eu conhecia algumas coisas sobre Constantino e o Concílio de Niceia, mas muito pouco sobre Juliano. Uma vaga lembrança dos tempos de seminário me remetia a um tal de Juliano, o apóstata. Comprei o livro e empreendi a leitura. A sua biografia foi escrita sob a forma de um romance, com uma tríplice narração. As memórias do imperador, escritas pelo próprio e complementos de dois professores dos seus tempos de juventude e que o acompanharam em seu curto reinado, Libânio e Prisco. Prisco havia se apoderado destas memórias. Libânio, um fervoroso admirador de Juliano, as negocia com Prisco, para efeitos de publicação e de perpetuação do ídolo. 

O livro, por sinal bastante longo, inicia com a troca de correspondência entre Libânio, residente em Antioquia e Prisco que morava em Atenas. Libânio não mediu esforços para tornar públicas estas memórias, em virtude de compartilhar com o Imperador a defesa da restauração da cultura helênica no Império Romano, depois de sua cristianização. Quando Prisco envia para Libânio as cópias é que começa efetivamente a história de Juliano. O livro está dividido em três partes: Juventude; César e Augusto. Tempos de formação do jovem, tempos do César das Gálias e tempos de Augusto Imperador.
Os tempos de juventude mostram o interesse do menino pelos estudos clássicos e o desejo da família em torná-lo padre da religião do galileu, religião que passara a ser, sob o reinado de seu tio Constantino, a religião oficial. É educado junto com o seu meio irmão, Galo, alguns anos mais velho. O medo assolava os dois. Galo logo terá um destino trágico e Juliano não espera melhor sorte. Mas como está colocado na linha de sucessão, o imperador Constâncio, o nomeia como César nas Gálias. Se sai bem. Obtém vitórias contra os germanos e passa a ser muito querido pelos soldados e por seus comandantes. Constâncio assim o estava preparando para a sucessão. 

Esta veio quando Constâncio foi acometido por uma violenta febre que o vitima. Juliano assume o Império, passando a ser o Augusto. O Império estava em combate com os persas. Juliano obtém vitórias significativas. Como era apaixonado pela cultura helênica, procurou restaurá-la. Este fato provocou o ódio e o desespero dos cristãos, que após a oficialização de sua religião passaram a destruir, sistematicamente, os antigos símbolos religiosos. Juliano sofre muitas represálias em função desta sua devoção. Interrompia batalhas para prestar homenagens para as antigas divindades helênicas, sempre envolvidas em mistérios e predições, especialmente, no que dizia respeito ao futuro e o destino das batalhas.

Deixo aqui algumas datas para facilitar a compreensão do tempo histórico. Constantino foi Imperador entre os anos 306 e 337, Constâncio entre 337 e 361 e Juliano entre 361 e 363. Todos eram da mesma linhagem familiar. O livro se torna longo em função da descrição das batalhas e das intrigas no governo de Constâncio. Com a ascensão, Juliano obtém significativas vitórias contra os persas e, quando já está voltando destas batalhas, ainda enfrentando pequenas escaramuças, ele é ferido por uma lança, ferida branda, tudo indicava. Mas não. A ferida atingira o fígado e foi mortal. Acontece que a lança era uma lança romana.

Aí a narrativa ganha o sua fase de suspense. Prisco, com quem estão as anotações de Juliano e  passados 20 anos, lembra de Calisto, soldado que lutara ao lado do Imperador, quando de seu seu ferimento. Prisco o procura e lhe arranca segredos inconfessáveis. Fora ele o portador da lança romana e autor do ferimento mortal. Vejamos a sua confissão: "Depois da batalha de Maranga, parti as presilhas do peitoral dele. - Os olhos de Calisto cintilavam de prazer com a lembrança. - Felizmente para nós, os persas atacaram no dia seguinte, e o imperador foi obrigado a entrar em combate sem a armadura. Ele e eu fomos apanhados na confusão dos persas em retirada. Juliano ia voltar quando eu gritei: 'Senhor, por aqui!' E levei-o para o mais aceso da luta. Por um momento, pensei que os persas iam matá-lo. Mas estavam apavorados demais. Quando reconheceram o imperador, fugiram. Foi então que compreendi que Deus me havia escolhido para instrumento de sua vingança. Calisto ainda reclamou para Prisco sobre o seu anonimato, depois deste seu ato heroico. Heroico do ponto de vista dos cristãos.

Tramas por tudo que era lado. Calisto agia a mando de Vítor, um dos generais cristãos do imperador. Com a morte de Juliano o Império Romano voltaria a ser cristão. Gore Vidal produziu um belo romance. Por ele nos ambientamos a estes terríveis anos em que o Império já prenunciava o seu ocaso. Ainda demoraria mais um pouco. O que mais me motivou para a leitura foi este histórico da construção do cristianismo, primeiro como a religião oficial do Império Romano e, depois, a sua expansão por toda a Europa para, finalmente, atingir o mundo inteiro, sempre com as suas duas armas, as armas da cruz e da espada, a força do poder da violência e a força do poder simbólico. O livro foi fruto de uma exaustiva pesquisa histórica. A bibliografia aparece ao final da obra, bem como uma breve biografia de Gores Vidal, famoso como roteirista do filme Ben-Hur. Quem não se lembra?

domingo, 11 de março de 2018

O Oráculo. O segredo da antiga Delfos.

Em 2012 o Brasil vivia tempos de bonança. Depois de 43 anos dedicados a sala de aula, optei pela aposentadoria. Queria me livrar de todos os compromissos rígidos, envolvendo metas, avaliações e horários. Queria usufruir de tempo livre. Como os tempos eram de bonança resolvi me presentear. 30 dias, conhecendo o berço da civilização ocidental. 30 dias pela Grécia e pela Itália. Maravilhamento total. Registrei a viagem no blog, que eu iniciava.
 Uma incursão pelo misticismo e pela ciência. Os mistérios de Delfos.

Por esses dias, rememorando a postagem sobre Delfos, alguém me sugeriu o livro O Oráculo. O segredo da antiga Delfos. Como sou facilmente influenciável e nada pão duro para a compra de livros, fiz isso, aproveitando as facilidades da Estante Virtual. Que agradável surpresa. Para além da leitura, uma vontade enorme para rever este maravilhoso lugar, o centro do mundo, como os gregos se referiam à cidade do oráculo. Lembrando que pelos oráculos, as sacerdotisas se relacionavam com Apolo, o deus da luz, do discernimento, da razão. Além de Apolo, também Dionísio era cultuado. A humanidade não poderia ser ingrata, a tal ponto, de esquecer a divindade que a brindou com a uva e o vinho e suas decorrências. O caráter místico e mítico do lugar também era atribuído a vapores e odores, sentidos no templo de Apolo.

O Oráculo se centra em torno destas questões. Desvendar, pela ciência, o caráter mítico deste sagrado lugar. Tomo do epílogo algumas frases para contextualizar a obra. "O oráculo começou a falar em nome dos deuses há mais de três milênios. Durante boa parcela desse tempo, a pítia gozou de uma reputação literalmente estelar, unida que era a Apolo e às maravilhas do firmamento. Quando, porém, a luz da civilização grega perdeu o brilho, sua imagem passou por vários estágios de deterioração, deixando-a maculada, demonizada, esquecida, romantizada e, após as escavações francesas, desprezada e até mesmo ridicularizada".

Quatro cientistas trouxeram a respeitabilidade do oráculo de volta e, recuperados de certa forma, os poderes ocultos da mente, as sacerdotisas, ou os oráculos dão conselhos à arrogante humanidade do mundo das ciências. "Sede sensíveis às lições da liberdade, parece dizer a pítia. Valorizai a ciência, mas entendendo que ela é um guia finito para a imensidão do tempo e do espaço, não uma religião, não uma visão de mundo. Será ela capaz de vos salvar? Poderá explicar meus lampejos e ações? Com relação a Delfos, não deixeis que a descoberta dos vapores vos feche os olhos para outras verdades, outras noções. Olhai mais longe. Dançai com o mundo em lugar de tentar reduzi-lo a explicações. Vide o barco, não apenas suas tábuas. Apegai-vos ao conhecimento. Fazei perguntas difíceis, sabendo, porém, que o vosso intelecto não passa de uma pequena janela e o que por ele se vê pode estar surpreendentemente incompleto. Abri-vos ao sentimento profundo e reverenciai a verdade em todas as formas. 'Sim', parece dizer ela, 'descobristes um dos meus segredos. Tenho outros'".

O segredo revelado se refere aos vapores e odores e os poderes alucinógenos que eles possuíam e que deram fama ao oráculo. Quanto aos outros segredos, trata-se de todo o mundo de magia que por doze séculos encantou e inclinou o mundo para o sagrado e o profano do lugar, ou seja, a luz de Apolo para guiar o sagrado da humanidade e o profano de Dionísio para aguentar o peso da tensão das pulsões vitais. Delfos nos instiga para entender os princípios máximos de sua sabedoria. "Conhece-te a ti mesmo" e "Evita os extremos".
Em 2012. Ruínas de Delfos.


Bem, vamos à essência do livro. Já na sua orelha lemos sobre o oráculo, sobre o monte Parnaso, Pítia e Apolo e sobre Plutarco historiando sobre o fenômeno Delfos. E alerta para um encontro entre ciência e espiritualidade. Um curto prólogo nos põem em contato com o oráculo, que na verdade, foram várias mulheres a decifrar os enigmas de Apolo. Também nos mostra as profecias mais famosas, como a de proclamar Sócrates como o mais sábio entre os gregos. Fala ainda sobre vapores inebriantes, êxtases e transes. Também fala das festas dionisíacas, reservando para estas, o poente. O leste, o sol, era de Apolo. Seguem sete capítulos.

O primeiro destes capítulos, O centro do universo, é para o leigo o mais interessante. Narra a história do misterioso local. São umas cinquenta páginas memoráveis. É uma viagem ao longo da história e do lugar. Os sábios antigos estão arrolados e envolvidos. Sócrates, Platão, Aristóteles. Heródoto, Pausânias, Píndaro, entre outros. O declínio chega junto com o declínio grego e com a ascensão do cristianismo, implacável na destruição real e simbólica do QG das coisas e das forças demoníacas.

O segundo capítulo, Os céticos, nos mostra, 15 séculos após o apogeu, a entrada do mundo das ciências nos mistérios do lugar sagrado. O imaginário do mundo se volta para o lugar, merecendo pinturas e representações, chegando até a Capela Sistina. O lugar passa por uma descrição, onde se ergue a pequena Kastri. No século XIX chegam os cientistas para escavações. Os franceses saem na dianteira. Predomina o cetiscismo.

No terceiro capítulo, Um homem curioso, os cientistas entram em cena. Primeiramente um indonesiano/holandês, De Boer, que, após os horrores da 2ª Guerra, se interessa pelo local. Ele é geólogo por profissão e se estabelece nos Estados Unidos. Visita Delfos e faz as suas observações. Discorda dos resultados das missões francesas. Nos próximos capítulos os outros três cientistas se somam aos estudos. No quarto, Os detetives, entra em cena John Halle, um arqueólogo. Halle e De Boer se encontram e formam uma parceria entre a geologia e a arqueologia. São os detetives a pesquisarem os mistérios de Delfos, os seus vapores e odores, de modo especial. No quinto, O "X" marca o lugar, mostra os estudos da dupla e o encontro de duas fendas que se cruzam. Seria o local de onde escapavam os vapores alucinógenos. As pesquisas evoluem do "pode ter sido" para o "foi". A esta altura já estamos no sexto capítulo, Êxtase, quando a equipe dos quatro cientistas se completa, com a entrada em cena de Chanton, um químico que estuda os gases retirados de blocos de mármore travertino e os identifica. Por fim, o quarteto se completa com Spiller, o médico toxicologista, que submete os gases presentes em Delfos à experiência humana e constata os seus efeitos anestésicos e alucinógenos.

O sétimo capítulo, A pista mística, é uma bela defesa do mundo como complexidade. Os quatro cientistas decifraram os gases presentes em Delfos e constataram os seus efeitos sobre o comportamento humano, mas nem de longe atingiram toda a mística que envolveu o lugar. O mundo é bem mais complexo do que os reducionismos que o mundo da ciência pode proporcionar com os seus desvelamentos. Uma bela mensagem. Bem, já vimos sobre o Epílogo, que é seguido por uma cronologia, muitas notas explicativas e de fontes, além de um glossário. Eu estou meio, como enuncia o título do sexto capítulo, em êxtase. O autor, William J. Broad, é jornalista e detentor de um prêmio Pulitzer. Que livro maravilhoso.

quinta-feira, 8 de março de 2018

O processo de Adeodato, último chefe rebelde do Contestado.

Numa das minhas idas a União da Vitória, recebi da professora Delamar um documento valioso. Trata-se do livro O processo de Adeodato, último chefe rebelde do Contestado. Ele é organizado pelos professores Paulo Pinheiro Machado e Gunter Axt. É uma publicação do Centro de Estudos Jurídicos, CEJUR, contando com o patrocínio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, numa edição comemorativa dos 125 anos deste Tribunal. A edição é de 2017.
Um importante documento histórico. O processo de Adeodato.

O livro consta de uma apresentação, feita por José Antônio Torres Marques, presidente do TJSC e duas, por parte dos organizadores, contextualizando o Contestado, um dos mais violentos conflitos que envolveram as terras paranaenses e, especialmente, as catarinenses, num longo período (1912-1917) que trouxe para o campo de lutas, segundo o título do livro de Renato Mocellin, Pelados X Peludos. Os pelados eram formados pelas populações abandonadas da região e os peludos, os que detinham o poder oficial e estavam a serviço dos interesses da Ordem e do Progresso, da República, ainda em fase de afirmação.

As contextualizações são preciosas. Gunter Axt, em menos de dez páginas, nos põem em contato com os problemas da região. Fundamentalmente dois, com todos os seus desdobramentos. O primeiro é o da disputa territorial entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, no início do século XX. Em 1904 o STF, onde a disputa fora parar, deu ganho de causa a Santa Catarina, decisão não acatada pelo Paraná. Por isso a região é a do território contestado. As terras, com a marca da ausência do Estado, não tem demarcações precisas, gerando inúmeros e violentos conflitos. Na região também se encontravam remanescentes da Revolução Federalista, que forjara seres habituados com a violência.

Mas o segundo era maior. Foi o da construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul. A República brasileira garantiria a ordem na região, para possibilitar o avanço do progresso. O grupo americano Farquhar não poderia encontrar empecilhos. Ao grupo americano se somaram os interesses das companhias colonizadoras interessadas na limpeza da região, isto é, afastar as populações indesejadas das margens da ferrovia. Eram os pelados. Estes encontraram refúgio no amparo dos monges e do messianismo que grassava entre os desamparados. Mais de nove mil pessoas foram mortas, sendo a ampla maioria formada por caboclos. Adeodato foi o último comandante rebelde. No imaginário popular, a sua imagem precisava ser desconstruída, a fim de legitimar os vencedores.

A apresentação de Paulo Pinheiro Machado também relata a origem dos conflitos, especificando-os um pouco mais, lembrando que o objetivo do livro é a apresentação do processo, já que a literatura sobre o Contestado é ampla. O que está mais detalhado em Paulo Pinheiro Machado é a denominação das companhias presentes na região, a Southern Brazil Railwey e a Brazil Lumber and Colonization. Elas receberiam 15 quilômetros de cada lado da ferrovia, que se estenderia de União da Vitória (PR) até Marcelino Ramos (RS) e de União da Vitória até Rio Negro (PR). A região era habitada por criadores de gado, ervateiros e exploradores da madeira, abundante na região. É óbvio que não haveria paz.

Já que o processo de Adeodato é o tema da obra, o professor conta dos conflitos, antes e depois deste personagem. Relata quem eram os chefes anteriores e descreve as suas características. Relata também a entrada de Adeodato na guerra, bem como seus métodos de comando. Ele foi o comandante na fase final, defrontando-se com a desagregação do grupo. Para evitá-la, usou de extrema violência e afrontou os costumes, sofrendo, em função disso, muitas animosidades, inclusive, dentro de seu grupo. O professor ainda descreve algumas características do comandante, como a sua veia poética e o seu espírito debochado para com as autoridades. Como amostra, publica uma poesia, a ele atribuída.

Mais de cem anos após a ocorrência do conflito, as suas consequências ainda são sentidas. A região então contestada é a que apresenta os piores indicadores sociais, o pior IDH de Santa Catarina, estado mais envolvida no conflito. Santa Catarina também cultiva mais o simbólico da imagem, sendo o povo induzido a cultivar com orgulho o fato de serem os bravos descendentes e herdeiros do Contestado. Um povo forjado na luta. Mas a parte fundamental do livro é o registro de toda a transcrição do julgamento do chefe, retirado dos autos do processo, que ocorreu no Fórum da Comarca de Curitibanos. Sem dúvida um documento de fundamental importância, destinado a historiadores e  especialistas da historiografia.

Em meus estudos, tenho me dedicado muito ao tema da violência, sempre presente ao longo de toda a história do Brasil. É de estarrecer. Canudos, a Revolta da Armada, a higienização do Rio de Janeiro, a Revolução Federalista, o Contestado e tantos outros fatos, não menos importantes, porém menos estudados ou então, não tiveram a descrição de um Euclides da Cunha. Todos estes conflitos acompanham a lógica da acumulação e da ausência de políticas públicas por parte do Estado. Este apenas cumpria a função policial de manutenção da ordem a serviço desta acumulação. A esta acumulação é que denominavam e continuam denominando de progresso. Meus agradecimentos, professora Delamar.

domingo, 4 de março de 2018

Caio Prado Júnior. Uma biografia política.

Nunca deixei de manifestar o meu apreço por biografias e livros de memória. Estes livros nos situam o biografado ou o autor de memórias dentro de seu tempo e nos oferecem uma contextualização de uma época. É impressionante o número deste tipo de livros que está surgindo, bem como a sua elevada qualidade. Agora terminei de ler Caio Prado Júnior - uma biografia política. O autor é Luiz Bernardo Pericás. A Editora é a Boitempo. O ano da publicação é 2016.
Da Boitempo. Uma biografia política. Um comunista de verdade.

Caio Prado Júnior pertenceu a mais alta elite paulistana, como podemos constatar numa história bem humorada, que consta no livro/biografia, que também, bem nos mostra a sua filiação ideológica. "Ainda naquela época, segundo Florestan Fernandes, ocorreria um episódio divertido. Certo dia, o jovem foi com seu pai visitar Caio Prado Júnior, que tinha acabado de fazer sua corrida matinal. Muito suado, ele contou que, na porta de casa, havia sido parado por dois rapazes da TFP, que lhe entregaram alguns folhetos e alertaram para o perigo vermelho, sem saber que estavam diante de um comunista histórico. A conversa correu desta forma: 'Me diga uma coisa, vocês são de família importante'?, perguntou o intelectual. 'Não!' retrucaram. 'Pois a minha é muito importante, sou da família Prado. Vocês tem tradição'? 'Não!', responderam os jovens. 'Eu tenho, estão vendo essa mansão? É minha. Me digam uma coisa, se vocês não são de família importante, não tem tradição e nem propriedades, porque perdem tempo nas ruas fazendo propaganda para mim'? Os dois arregalaram os olhos, baixaram a cabeça e foram embora. Caio Prado Júnior deu uma gargalhada: 'Florestan, me vinguei do Plínio Correia de Oliveira', desabafou, referindo-se ao fundador da organização de direita Tradição, Família e Propriedade, que naquele dia deve ter perdido dois militantes"! (Página 271).

Para situar e datar o biografado, vamos aos dados. Ele nasceu em São Paulo no ano de 1907 e faleceu, na mesma cidade, em 1990, aos 83 anos de idade. Viveu a plenitude do chamado século curto, com todos os seus grandes acontecimentos: duas guerras mundiais, a ascensão do socialismo e a Guerra Fria. Mas a sua grande paixão era o Brasil, do qual passou a ser um dos mais reconhecidos historiadores. Ao longo de toda a sua vida militou no Partido Comunista do Brasil, o famoso partidão, mas não se enquadrou dentro de sua ortodoxia, manifestou as suas discordâncias, mas também não sofreu a expulsão de seus quadros, como a tantos ocorreu.

O livro é longo e denso. Se estende por mais de quinhentas páginas, entre texto, notas e um belo álbum fotográfico. São doze capítulos, precedidos por uma introdução, que bem nos dão uma ideia do livro. Vamos acompanhá-los. 1. O ingresso no PCB; 2. Leitores (e leituras) marxistas de Caio Prado Júnior; 3. Primeira viagem ao mundo do socialismo; 4. Os anos de fogo: da ANL ao cárcere; 5. Novas trincheiras de luta; 6. A batalha das ideias; 7. De volta ao mundo do socialismo; 8. Do golpe de 1964 aos debates sobre a revolução brasileira; 9. A hora das fornalhas; 10. Reforma, revolução e socialismo; 11. O homem que inventou esse tal de marxismo no Brasil; 12. Últimos anos.

Na introdução nos é apresentado um rico panorama da recepção das obras de Marx na América, tanto no norte, quanto no sul. Ainda na introdução o biografado nos é apresentado, bem como a sua família e o contexto da São Paulo da virada do século XIX para o XX. Entre os seus familiares aparece o seu tio avô, Eduardo Prado, autor de A ilusão americana, primeiro livro censurado no Brasil republicano. 

No primeiro capítulo é mostrado o seu ingresso no PCB, depois de uma breve passagem pelo Partido Democrático. São mostrados os seus primeiros dilemas. Os incômodos na família, no partidão, as acusações de trotskista e de raízes burguesas. No mínimo, era um estranho no ninho. O segundo capítulos nos mostra a formação intelectual e a assimilação da obra de Marx que começa a chegar ao Brasil, ao longo dos anos 1920. É o momento das primeiras grandes interpretações de Brasil (os anos 1930) e ele já oferece a sua primeira grande contribuição para o debate com Evolução política do Brasil. Este livro é a expressão de sua grande vocação como historiador deste país.

No terceiro capítulo é mostrada a sua primeira viagem à URSS e na volta, as impressões de sua viagem são publicadas em URSS - um novo mundo. O livro foi uma antítese à propaganda anti soviética existente em larga escala. Os anos de fogo retratados no quarto capítulo nos narram os anos de Vargas, a formação da ANL, a sua prisão sob o Estado Novo, o seu exílio, a volta e o pessimismo em relação às disputas internas no Partido. Quanto as novas trincheiras de lutas do quinto capítulo, veremos o Partidão na legalidade, a sua disputa eleitoral como candidato a deputado federal constituinte, sua derrota e vitória como deputado estadual e ainda, a chegada da Guerra Fria e o PCB na clandestinidade.

No sexto capítulo, referente a disputa de ideias, mostra a sua atividade gráfica e literária, com a Editora e a Revista Brasiliense e a publicação de Dialética do conhecimento e a reimpressão de seus livros anteriores História Econômica do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo. Disputa uma cátedra na USP, à qual nunca pertenceu formalmente. Foi o último colocado mas obteve a livre docência. Comenta o famoso XXº Congresso do PCU e se equilibra na manutenção no Partido. No sétimo capítulo é narrada a sua volta à URSS, sua ida à China e assiste as disputas dentro do mundo socialista, como os conflitos entre a URSS e a China. Os debates chegam ao Brasil e se desenham as dissidências do período. Maoísmo, coexistência pacífica, PCB X PCdoB.

No oitavo capítulo o golpe de 1964 ganha destaque, assim como a preocupação de Caio Prado com a Revolução Brasileira, que merece o livro homônimo que publica, defendendo suas posições e mostrando-se contrário à luta armada. É um tempo de grandes dificuldades, passando da clandestinidade para o exílio. A referência às fornalhas, do nono capítulo é a explosão das agitações dos anos sessenta, em particular ao ano de 1968, tanto no mundo capitalista, quanto no socialista. Se posiciona quanto às intervenções soviéticas no leste europeu.

O debate entre a Revolução e as reformas ocupam o décimo capítulo. São as sua teorizações deste difícil período. Defende a democratização radical como o caminho ao socialismo e recusa, mais uma vez, a luta armada como o caminho. Compila as ideias de Marx a respeito do tema. A referência jocosa que dá título ao décimo primeiro capítulo é uma fala de um militar, num julgamento seu, já nos anos de chumbo da ditadura militar brasileira, após a edição do AI-5. Os caminhos do mundo (1968) lhe dão novo ânimo, mas no campo de sua vida particular, sofre um duro golpe, com o suicídio de seu filho Roberto, o mais moço, com apenas 25 anos de idade.

No último capítulo o esgotamento da ditadura é mostrado. Greves, crescimento das oposições sindicais, movimento contra a carestia, a Anistia, entre outros, são os sintomas do declínio. Também começa a sua derrocada pessoal com a chegada do ocaso da vida, com problemas físicos e o mal de Alzheimer. Como ele não quer entregar os pontos, ele sofre uma interdição judicial, para coibir o indesejado. Ao contrário de muitos intelectuais ligados ao Partidão, ele não se filiou ao Partido dos Trabalhadores. O seu momento derradeiro ocorreu em 23 de novembro de 1990.

Numa breve conclusão são mostrados os maiores valores que Caio Prado Júnior teve ao longo de sua existência. Toda a sua vida foi marcada pela sensibilidade social que o levou para o marxismo e a ele sempre permaneceu fiel, em meio a todas as contradições que viveu e analisou em profundidade em sua vida de historiador. Não optou pela vida fácil que a sua condição familiar lhe proporcionou. Um grande brasileiro.


sexta-feira, 2 de março de 2018

A ideologia alemã. Notas para uma contextualização.

Como vamos trabalhar o livro, A ideologia alemã, num grupo de leituras, traço alguns apontamentos a respeito do mesmo, que talvez facilitem a sua compreensão:
A bela edição da Civilização Brasileira, com organização, tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes.

1. De Engels, de seu discurso diante da sepultura de Marx, pronunciado no cemitério de Highgate, Londres, no dia 17 de março de 1883, por ocasião de seu enterro. O discurso como um tudo pode ser encontrado em; MARX. & ENGELS. Obras escolhidas. Volume 2. São Paulo: 1961. Vitória. Ou: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/discurso-diante-da-sepultura-de-marx.html

"Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o fato tão simples, mas que até ele se mantinha oculto pelo ervaçal ideológico, de que o homem precisa, em primeiro lugar, comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião, etc; que, portanto, a produção dos meios de subsistência imediatos, materiais e, por conseguinte, a correspondente fase econômica de desenvolvimento de um povo ou de uma época é a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas e inclusive as ideias religiosas dos homens e de acordo com a qual devem, portanto, explicar-se; e não ao contrário, como se vinha fazendo até então".

2. A ideologia alemã. Crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. (Bruno) Bauer e Stirner e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas. (Uma espécie de subtítulo).

3. Da contracapa do livro A ideologia alema, da Editora Hucitec. "Escrito à época dos primeiros movimentos autônomos da classe operária europeia. A Ideologia alemã é sobretudo uma instigante incursão pela teoria materialista e dialética da história.
Nessa elaboração pioneira e em vigorosa polêmica com o idealismo pós-hegeliano e o materialismo de Feuerbach - principais correntes teórico-políticas na Alemanha de 1845-46 -, Marx e Engels fundam sua concepção do ser social e assentam as bases iniciais do socialismo como ciência".

4. Contracapa de A Ideologia Alemã, da Civilização Brasileira, com organização, tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes (2007). "Bem ao contrário do que acontece com a filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui se sobe da terra para o céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam, ou engendram mentalmente, nem tampouco do homem dito, pensado, imaginado ou engendrado mentalmente para daí chegar ao homem em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e de seu processo de vida real para daí chegar ao desenvolvimento dos reflexos ideológicos e aos ecos desse processo de vida".

5. Parte final da Orelha da contracapa do livro anterior: "Ao descobrir a história como história das relações de reprodução, nas quais as 'ideias dominantes' e formas de expressão culturais configuram apenas um momento, A ideologia alemã fixou um ponto de partida absoluto para toda a crítica subsequente da sociedade. Ela adquire, assim, atualidade justamente em uma  situação de crise como a que vivemos, na qual o nexo entre ideias e formas sociais se obscurece, à medida que o pensamento pós-moderno passa a 'teologizar' as relações sociais e uma barbárie neo-religiosa se propaga cada vez mais". Robert kurz.

6. Prefácio. Retirado da edição da Hucitec. "Até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser.  Organizaram suas relações em função de representações que faziam de Deus, do homem normal, etc. Os produtos de sua cabeça, acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. Libertemo-los, pois, das quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais definham. Revoltemo-nos  contra este predomínio dos pensamentos.  Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem, diz um, a comportar-se criticamente para com elas, diz um outro; a expurgá-las do cérebro, diz um terceiro - e a realidade existente cairá por terra.
Estas fantasias inocentes e pueris formam o núcleo da atual filosofia neo-hegeliana que, na Alemanha, não somente é acolhida pelo público com horror e veneração, mas apresentada pelos próprios herois filosóficos com a solene consciência de sua periculosidade revolucionária mundial e de sua brutalidade criminosa. O primeiro tomo da presente obra tem por finalidade desmascarar estes carneiros que se julgam lobos e que assim são considerados; propõe-se a mostrar como nada mais fazem do que balir filosoficamente as representações dos burgueses alemães e que as fanfarronices desses intérpretes filosóficos apenas refletem a derrisória pobreza da realidade alemã. Tem por finalidade colocar em evidência e desacreditar essa luta filosófica com as sombras da realidade, que convém ao sonhador e sonolento povo alemão.
Certa vez, um bravo homem imaginou que, se os homens se afogavam, era unicamente porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se retirassem da cabeça tal representação, declarando, por exemplo, que se tratava de uma representação religiosa, supersticiosa, ficariam livres de todo perigo do afogamento. Durante toda sua vida, lutou contra essa ilusão da gravidade, cujas consequências perniciosas todas as estatísticas lhe mostravam, através de provas numerosas e repetidas. Esse bravo homem era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães". 17-8.

7. Da minha dissertação de mestrado Faxinal do Céu - Universidade do professor. A redução dos conceitos de educação e uma ameaça à sua forma pública e democrática. 1.3.1. A educação em meio a uma formação social. ..."Para nos aprofundarmos nesta autoconstrução do ser e do gênero humano, examinaremos em primeiro lugar, a forma como o ser humano produz a sua existência. Nesta produção da existência, encontramos a atividade vital humana, pela qual, além de atender as suas necessidades mais primárias, o ser realiza um ato histórico. Esta realidade é assim expressa por Marx e Engels: "Somos forçados a começar constatando que o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda a história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder 'fazer história'. É preciso viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, qua ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias  e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos" 39.
[...] "O segundo ponto é que, satisfeita esta primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades - e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico". 40.
As investigações que se seguem, levam-nos à questão de como o homem satisfaz estas necessidades, o que nos leva à mais importante das categorias trabalhadas por Marx, qual seja, a atividade vital humana, ou o trabalho. Pelo trabalho o homem não assegura apenas a sua própria base material de sobrevivência, mas dá início a todo o processo de desenvolvimento do gênero humano, da humanidade, pela relação entre a objetivação e a apropriação.......Páginas 36 e 37 da dissertação. As páginas 39 e 40 referidas são da edição da Hucitec.

8. Conceito de práxis: "Mas é em Marx que o conceito se torna central, no novo ideal filosófico de transformar o mundo por meio da atividade revolucionária. A subordinação da teoria à prática relaciona-se com a incapacidade da razão para resolver contradições, que são removidas através do progresso dialético da história. A práxis relaciona-se também com a atividade livre, autêntica e autoconsciente, que se opõe ao trabalho alienado que é exigido pelo capitalismo". Dicionário Oxford.
Do livro Filosofia, de Antônio Joaquim Severino: "Usou-se também o conceito de práxis: ele designa a prática humana enquanto é atravessada por uma forma de intenção reflexiva; distingue-se assim de uma prática puramente mecânica". 28.
"O que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade". Marx em O Capital.

9. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/02/as-tres-esferas-da-existencia-humana-o.html

10.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2015/11/conceitos-de-infraestrutura-e.html

11. O filme - O jovem Marx. https://www.youtube.com/watch?v=2M5vo2n6G7Y 






quinta-feira, 1 de março de 2018

Trama Fantasma.

Com a data da cerimônia do Oscar se aproximado, fui novamente ao cinema, para assistir mais um dos indicados à estatueta maior. Agora foi a vez de Trama fantasma. Um belo filme, diga-se, antes de tudo. Gosto dos dramas vividos pelo ser humano. Uma complexidade inexplicável. Muitas vezes, como é o caso do filme, ele é incapaz de estabelecer a característica que mais o marca e que o constitui, a sua relacionalidade. Reynolds Woodcock se relacionava apenas com o seu sucesso. Os seres humanos, para ele, não passavam de fantasmas, a seu serviço.


O tema do filme é o mundo da alta costura, da exploração da vaidade humana, do ser em ostentação, para se diferenciar dos comuns. Isso por si só já entra no complexo mundo das relações sociais e das diferenças que se estabelecem. É um mundo à parte. Este mundo cria os seus mitos. E um destes mitos é Reynolds Woodcock, da famosa casa Woodcock, a casa que vestiu o mundo dos notáveis, da realeza e da alta elite britânica do mundo pós guerra. Parece que a felicidade de Reynolds é inversamente proporcional ao seu grande êxito profissional.

Reynolds Woodcock é absolutamente excêntrico. Solteiro por convicção, vive de lembranças de sua mãe e, aparentemente, a única pessoa que o compreende e com quem estabelece relações, é a sua irmã Cyril (Freud que nos ajude). É um perfeccionista e a busca da perfeição o torna um homem unidimensional. Esta unidimensionalidade o afasta do convívio social, que poderia servir, inclusive, para a manifestação de seu reconhecimento. Ele é um ser absolutamente recluso, com raras aberturas para a alteridade.

Num desses raros momentos, num café da manhã, Reynolds é atendido por uma bela garçonete. A ela exibe uma fome voraz. Ela o atende com toda a presteza. Parece haver um toque de sensibilidade humana. Ou seria um engano. Estes momentos se alternam com outros de extrema estupidez e, digamos, grossura. Os momentos mais aflitivos são aqueles em que ela procura seduzi-lo com gestos de grandeza, delicadeza e agrado. Ela tem o significativo nome de Alma. Cyril constantemente previne Alma das excentricidades do irmão, avesso a qualquer tipo de agrado. Como o ser humano é capaz de desagradar, quando assim o quer.

Alma dá vida nova ao artista. Passa a ser a sua grande inspiração. Quando tudo parece encaminhar-se para um gran finale, ele tem as recaídas. Seriam poucas as mulheres que teriam a paciência de Alma, no lidar com o gênio em seus piores momentos. A cena do jantar íntimo que ela lhe prepara e o elogio que lhe dirige sobre o vestido de noiva para a princesa da realeza britânica ultrapassam até o inimaginável. Ele reage na direção oposta da aposta de Alma. Se existem algumas raras cenas em que a afetividade aflora, em momento algum isso ocorre com a sexualidade. Alma não passa de uma bela fantasma a ser vestida, a lhe despertar a imaginação criativa de seu veio artístico.

É fácil imaginar a dificuldade que o roteirista e diretor encontrou para concluir o seu filme, mas mais alguns momentos de expansão da relacionalidade passam a ocorrer. Mas não ocorre o Happy and, dos filmes mais tradicionais. Meio misterioso e transcendental. Retratar um artista não é tarefa fácil. Mergulhar na profundidade da complexidade do ser humano é uma aventura em que poucos se atrevem. O ser humano é complexo e multidimensional.

O filme não teve um glamour tão grande e algumas de suas indicações ao Oscar não eram nem mesmo esperadas, incluindo aí, inclusive, direção e melhor filme. É isso que aponta a crítica. Não entro nesse mérito. O certo é que eu gostei do filme. Ele tem seis indicações ao Oscar: melhor filme; melhor direção (Paul Thomas Anderson, que também assina o roteiro); melhor ator (Daniel Day Lewis no papel de Reynolds Woodcock); melhor atriz coadjuvante (Lesley Manville no papel de Cyril Woodcock, a irmã de Reynolds); melhor figurino e melhor trilha sonora original.

Teria que necessariamente ganhar esta estatueta e ganhou. Também foi a única. Melhor figurino.