quinta-feira, 8 de março de 2018

O processo de Adeodato, último chefe rebelde do Contestado.

Numa das minhas idas a União da Vitória, recebi da professora Delamar um documento valioso. Trata-se do livro O processo de Adeodato, último chefe rebelde do Contestado. Ele é organizado pelos professores Paulo Pinheiro Machado e Gunter Axt. É uma publicação do Centro de Estudos Jurídicos, CEJUR, contando com o patrocínio do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, numa edição comemorativa dos 125 anos deste Tribunal. A edição é de 2017.
Um importante documento histórico. O processo de Adeodato.

O livro consta de uma apresentação, feita por José Antônio Torres Marques, presidente do TJSC e duas, por parte dos organizadores, contextualizando o Contestado, um dos mais violentos conflitos que envolveram as terras paranaenses e, especialmente, as catarinenses, num longo período (1912-1917) que trouxe para o campo de lutas, segundo o título do livro de Renato Mocellin, Pelados X Peludos. Os pelados eram formados pelas populações abandonadas da região e os peludos, os que detinham o poder oficial e estavam a serviço dos interesses da Ordem e do Progresso, da República, ainda em fase de afirmação.

As contextualizações são preciosas. Gunter Axt, em menos de dez páginas, nos põem em contato com os problemas da região. Fundamentalmente dois, com todos os seus desdobramentos. O primeiro é o da disputa territorial entre os estados do Paraná e de Santa Catarina, no início do século XX. Em 1904 o STF, onde a disputa fora parar, deu ganho de causa a Santa Catarina, decisão não acatada pelo Paraná. Por isso a região é a do território contestado. As terras, com a marca da ausência do Estado, não tem demarcações precisas, gerando inúmeros e violentos conflitos. Na região também se encontravam remanescentes da Revolução Federalista, que forjara seres habituados com a violência.

Mas o segundo era maior. Foi o da construção da estrada de ferro que ligaria São Paulo ao Rio Grande do Sul. A República brasileira garantiria a ordem na região, para possibilitar o avanço do progresso. O grupo americano Farquhar não poderia encontrar empecilhos. Ao grupo americano se somaram os interesses das companhias colonizadoras interessadas na limpeza da região, isto é, afastar as populações indesejadas das margens da ferrovia. Eram os pelados. Estes encontraram refúgio no amparo dos monges e do messianismo que grassava entre os desamparados. Mais de nove mil pessoas foram mortas, sendo a ampla maioria formada por caboclos. Adeodato foi o último comandante rebelde. No imaginário popular, a sua imagem precisava ser desconstruída, a fim de legitimar os vencedores.

A apresentação de Paulo Pinheiro Machado também relata a origem dos conflitos, especificando-os um pouco mais, lembrando que o objetivo do livro é a apresentação do processo, já que a literatura sobre o Contestado é ampla. O que está mais detalhado em Paulo Pinheiro Machado é a denominação das companhias presentes na região, a Southern Brazil Railwey e a Brazil Lumber and Colonization. Elas receberiam 15 quilômetros de cada lado da ferrovia, que se estenderia de União da Vitória (PR) até Marcelino Ramos (RS) e de União da Vitória até Rio Negro (PR). A região era habitada por criadores de gado, ervateiros e exploradores da madeira, abundante na região. É óbvio que não haveria paz.

Já que o processo de Adeodato é o tema da obra, o professor conta dos conflitos, antes e depois deste personagem. Relata quem eram os chefes anteriores e descreve as suas características. Relata também a entrada de Adeodato na guerra, bem como seus métodos de comando. Ele foi o comandante na fase final, defrontando-se com a desagregação do grupo. Para evitá-la, usou de extrema violência e afrontou os costumes, sofrendo, em função disso, muitas animosidades, inclusive, dentro de seu grupo. O professor ainda descreve algumas características do comandante, como a sua veia poética e o seu espírito debochado para com as autoridades. Como amostra, publica uma poesia, a ele atribuída.

Mais de cem anos após a ocorrência do conflito, as suas consequências ainda são sentidas. A região então contestada é a que apresenta os piores indicadores sociais, o pior IDH de Santa Catarina, estado mais envolvida no conflito. Santa Catarina também cultiva mais o simbólico da imagem, sendo o povo induzido a cultivar com orgulho o fato de serem os bravos descendentes e herdeiros do Contestado. Um povo forjado na luta. Mas a parte fundamental do livro é o registro de toda a transcrição do julgamento do chefe, retirado dos autos do processo, que ocorreu no Fórum da Comarca de Curitibanos. Sem dúvida um documento de fundamental importância, destinado a historiadores e  especialistas da historiografia.

Em meus estudos, tenho me dedicado muito ao tema da violência, sempre presente ao longo de toda a história do Brasil. É de estarrecer. Canudos, a Revolta da Armada, a higienização do Rio de Janeiro, a Revolução Federalista, o Contestado e tantos outros fatos, não menos importantes, porém menos estudados ou então, não tiveram a descrição de um Euclides da Cunha. Todos estes conflitos acompanham a lógica da acumulação e da ausência de políticas públicas por parte do Estado. Este apenas cumpria a função policial de manutenção da ordem a serviço desta acumulação. A esta acumulação é que denominavam e continuam denominando de progresso. Meus agradecimentos, professora Delamar.

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