sexta-feira, 25 de maio de 2018

O livro de Jô. Uma autobiografia desautorizada.

Um livro simplesmente maravilhoso. Um livro leve, de entretenimento, mas com muita informação e, também, de formação e, ainda, de muita sensibilidade. Trata-se de O livro de Jô - uma autobiografia desautorizada - Volume 1, de Jô Soares, em colaboração com Matinas Suzuki. Este deve ter ajudado na redação do livro. O livro é editado pela Companhia das Letras, datado de 2017, com a apresentação de José Eugênio Soares, o Jô, por Millôr Fernandes, com texto de 1983.
O maravilhoso livro de Jô Soares. Suas memórias desautorizadas.

Na contracapa do livro temos a seguinte referência: "Em O livro de Jô, suas aguardadas memórias (desautorizadas!), um de nossos maiores atores, comediantes, diretores, entrevistadores e contadores de casos se revela em todas as suas dimensões pessoais e artísticas. Neste primeiro volume, Jô, além de resgatar fatos, lugares e pessoas marcantes de sua juventude, e de reconstituir os primeiros passos no mundo dos espetáculos, nas décadas de 1950 e 1960, conta histórias maravilhosas dos principais personagens com os quais conviveu. Entre a infância dourada no Copacabana Palace e a dura conquista do estrelato - conjugando universos que raramente fazem parte de uma mesma existência -, o livro descortina os bastidores de sua vida com humor e inteligência irresistíveis".

Na apresentação dos "Dados Internacionais de Catalogação na Publicação" (CIP), lemos - I. Apresentadores (Teatro, televisão etc) - Brasil - Biografia. Estão dadas as dicas sobre o conteúdo do livro. O tempo memorizado é o dos anos, 1950 e 1960, como já vimos, pela referência da contracapa. Para uma melhor localização ainda, Jô Soares nasceu em 1938, em berço, absolutamente esplêndido. Assim também foi a sua infância e anos de juventude, viajando pelo mundo e estudando nos melhores colégios do Brasil e do mundo, com passagem pela Suíça, onde teve como colegas os filhos dos maiores magnatas mundiais. Depois vieram as vacas magras. Mas a formação inicial estava assegurada em bases sólidas.

O livro tem 11 capítulos, distribuídos ao longo de 477 páginas e mais três álbuns de fotografias. E isso, porque se trata apenas do primeiro volume sobre duas décadas de sua intensa vida, as dos anos 1950 e 1960. No primeiro capítulo ele apresenta, o que ele chama, de sua predestinação para o teatro, com cenas de Paris e do Copacabana Palace. O segundo capítulo é dedicado ao seu nascimento, no mesmo dia em que no Carnegie Hall, acontecia um espetáculo de jazz, isso no ano de 1938. No capítulo descreve também o pai e mãe e relembra cenas da infância, buscando nas memórias mais profundas, algumas lembranças dos anos 1940, anos de Vargas e do Estado Novo.

O terceiro capítulo é dedicado à infância e, nas anotações do meu caderno, sobre o capítulo, a maior importância recai sobre o tio Kanela, o do basquete, que o influenciou no gosto pelo esporte. No momento em que escrevo este post, li que o Jô fechou contrato para mais uma cobertura de Copa do Mundo, neste 2018, a copa que se realizará na Rússia. Coberturas, ou presenças, em jogos de copa, fazem parte das memórias, inclusive, as tristes lembranças de 1950 no Maracanã, quando o Brasil perdeu para a seleção uruguaia.

No quarto capítulo continua a apresentação de sua família, os tios e tias, a sua alfabetização e os estudos nos Colégio São Bento e no internato São José, em Petrópolis. Creio que, internato não é bom para ninguém e Jô não guarda boas recordações deste tempo. Estes são também os tempos de iniciação ao cinema e na arte de representar. No quinto capítulo conta um pouco de sua doce vida no Copacabana Palace, onde os pais moravam, no seu anexo residencial. Retrata um pouco do que foi o governo Dutra e chega até o fatídico jogo da copa de 1950. Na página 93, última deste capítulo, relata o preconceito de racismo latente na sociedade brasileira, com relação ao goleiro Barbosa, acusado de ter culpa no segundo gol uruguaio. Jô o entrevistou em um programa seu, apresentado em 1998, no Jô Soares Onze e Meia, no SBT. Vejamos: "Barbosa talvez tenha sofrido a maior injustiça que o Brasil fez com um de seus filhos: foi acusado de ser o responsável pela nossa derrota com os uruguaios. Como somos um país que esconde o seu racismo, depois daquela final passou-se a ter nos meios futebolísticos a superstição, nunca dita abertamente, de que goleiro negro não dava sorte". O horror de sempre, de nossas elites brancas. Não se tratava apenas de vira latas, termo consagrado por Nelson Rodrigues.

A partir do sexto, os capítulos passam a ser mais longos. Neste sexto, retrata a ida para Nova York, onde passa a ter os seus primeiros contatos com a publicidade e a televisão e, para horror seu, com o Macarthismo e a intolerância. Depois de um período em Nova York o seu paraíso se estende para um novo internamento em colégio, desta vez na Suíça, mas já com quarto individual e um ambiente altamente intelectual. Se familiariza com literatura, línguas e viagens. Recorda as visitas da mãe, com quem sempre se encontrava em Paris. Quando se preparava para prestar vestibular nas universidades inglesas, volta o Rio de Janeiro, em virtude de abalos financeiros em família.

Mesmo com as finanças arruinadas, na volta ao Brasil, a família continua no Copacabana, do qual ele conta os bastidores, no sétimo capítulo. Fala das celebridades e de seus atrevimentos para com elas. Por elas passa a ser conhecido como o "Joe", Bangô. O oitavo capítulo continua com a convivência com os artistas, de suas incursões no mundo do teatro, fala de Paulo Francis, que, como crítico de teatro, é apresentado como meio destrutivo. É o tempo de definições em sua vida e profissão. Casa-se e muda para São Paulo, agora com o nome que o acompanha até hoje - JÔ.

Seguem os três capítulos mais densos. No nono, ele já está em São Paulo, com 22 anos, precisando ganhar a vida. Mostra os bastidores do mundo da TV, os acordos salariais para baixo, combinadas entre as grandes emissoras. que agiam em conluio.  As principais emissoras eram a Record e Excelsior. Além do espírito pioneiro destas, mostra também o arruinamento financeiro dos proprietários da TV Excelsior, a família Simonsen (Os descendentes de Roberto Simonsen - ex presidente da FIESP e articulador da política econômica de Vargas), a partir do golpe de 1964. No capítulo dez já mostra a ascensão da Globo, com o golpe de 1964 e a tendência de unificação das programações pela possibilidade de transmissão em Rede. Para isso se tornar possível houve a atuação do Estado, através da EMBRATEL. Fala também dos principais programas, dando forte ênfase à Família Trapo.

Mas. disparadamente, o capítulo 11 é o mais significativo, bonito e emotivo. Pessoas com maior sensibilidade, certamente, chegarão às lágrimas. Destacaria três temas. O encontro com o taxista que atropelou a sua mãe, fato que a levou à morte; o medo sob a ditadura militar e a preocupação em alertar os jovens para o erro que seria a sua repetição, e o terceiro, que é a relação com o filho Rafael, autista, que morre aos 51 anos de idade. Da ditadura, eu escolhi um parágrafo em que recorda uma cena com Mário Schenberg, que era físico e de quem era amigo: "Penso em quanto a física brasileira, historicamente necessitada de apoio, pode ter sido prejudicada em seu desenvolvimento pelo fato de Mário Schenberg não poder trabalhar. O prejuízo que a ditadura causou ao país com as perseguições aos cientistas de esquerda é incalculável. Quando ouço, hoje em dia, jovens falando na volta dos militares ao poder, fico pensando como seria importante esclarecê-los sobre as consequências amplas e profundas de uma vida sob o tacão ditatorial. O país retrocede não só nos direitos da cidadania, mas também no conhecimento, na inovação, na cultura e no avanço científico." Página 422.

Quanto ao filho, Jô chegou a ser acusado de tê-lo ocultado, em virtude de seu autismo, mas isso é contestado por depoimentos dos quais eu destaco um de Nilton Travesso e outro de Luiz Fernando Vianna. Vamos ao de Travesso: "A maneira como o Jô protegeu o Rafael eu chamo coisa de Deus. Eu entrei um dia no quarto do Rafael, um quarto azulado, tocava Haydin e o Rafael dormia. Eu guardei o retrato daquele momento para o resto da minha vida. Eu quase chorei quando eu vi o jeito que o Jô cuidava, guardava, protegia seu filho. Poucas pessoas entenderão o que era o interior do Jô Soares, a alma dele, o comportamento dele, a dedicação que ele teve ao Rafael". E o do Luiz Fernando Vianna: "Há alguns anos lia-se na internet que o Jô escondia seu filho autista. Mentira. Ele levava Rafael ao clube, às ruas, mostrou-o na imprensa". Havia ainda poucos conhecimentos sobre a doença, mas pelo que eu entendi, o autista prefere uma vida mais interior.

Termino com uma referência à morte de seu pai, em consequência do cigarro, que eu não considero moralista nem piegas, mas uma advertência significativa: "O cigarro e a ausência de mamãe o levaram. Minha mãe sofreu muito as consequências do cigarro, meu pai sofreu muito as consequências do cigarro. É um vício diabólico. O Max Nunes me dizia ter visto, num hospital público, um paciente com a mesma doença de mamãe, provocada pelo tabagismo. O cara já tinha as pernas e um braço amputados, mas estava com um cigarro na boca".

Escolho ainda mais uma passagem, especialmente, por ser divertida e mostrar muita burrice. É sobre a prisão de Mário Schenberg, em 1964. "Na invasão da casa dele, logo depois do golpe, um dos delegados que comandaram a ação começou a olhar a sua valiosa biblioteca. Pegava os livros, dava uma olhada, depois os jogava no chão. Aí ele tirou da prateleira "Os Diálogos", de Platão. Folheou com ar de quem tinha achado um documento importante e falou em tom severo para o Mário.
-E isso aqui?
-É "Diálogos", de Platão.
E o delegado:
-Sim, mas diálogos de Platão com quem?
O Mário se segurou para não rir.
-Este livro é subversivo. O senhor não é professor? Então isso o senhor vai nos revelar: com quem foram estes diálogos e qual era o assunto!" Página 421.


sábado, 19 de maio de 2018

Feminismo em comum. Márcia Tiburi.

Como sempre, mais uma vez, um extraordinário livro de Márcia Tiburi. Trata-se de Feminismo em comum. Para todas, todes e todos. O todes não é um modismo, é um mecanismo para "não criar barreiras para a acessibilidade do conteúdo por deficientes visuais", como explica uma nota de rodapé. A edição é da Rosa dos Tempos, a primeira editora feminista do país. A edição é de 2018 e já está em sua 5ª edição.
O pequeno grande livro da Márcia Tiburi.


O livro, acima de tudo, é um convite para a reflexão. Ele foi escrito numa linguagem de fácil compreensão, para que possa, efetivamente, ser lido e compreendido por muitas pessoas. Arriscaria dizer que as duas palavras com as quais mais me deparei na sua leitura foram patriarcalismo e misoginia. A sociedade patriarcal é apontada como a causadora dos males maiores. Me fez lembrar o Livro de Boaventura Sousa Santos, A difícil democracia - Reinventar as esquerdas. Neste livro, o capitalismo, o colonialismo e o patriarcalismo são apontados como os grandes inimigos da democracia. O feminismo, que se integra no campo do patriarcalismo, é apontado no livro de Márcia como um luta por uma democracia radical.

Também, como em outros livros, os capítulos são curtos, cinco as seis páginas em média. A cada um é dedicado um tema específico e o livro vai evoluindo na apresentação dos temas, no rumo de uma grande compreensão. O feminismo é mostrado como um elemento do complexo e intrincado mundo da dominação, do qual também os homens não estão livres. O livro, em formato pequeno, nem mesmo é longo, 125 páginas que abrigam 17 capítulos.

Vamos à apresentação do livro pela orelha da capa: "Podemos definir o feminismo como o desejo por democracia radical, voltada à luta por direitos de todas, todes e todos que padecem sob injustiças sistematicamente armadas pelo patriarcado. Incluem-se todos os seres cujo corpo é medido por seu valor de uso - corpos para o trabalho, a procriação, o cuidado e a manutenção da vida e a produção do prazer alheio -, que também compõem a ampla esfera do trabalho, na qual está em jogo o que se faz para o outro por necessidade de sobrevivência.

O que chamamos de patriarcado é um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições, o qual o feminismo busca desconstruir. Ele tem por estrutura a crença em uma verdade absoluta, que sustenta a ideia de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas ainda são seguidos por muitos.

Por este livro, Márcia Tiburi nos convida a repensar essas estruturas e a levar o feminismo muito a sério, para além de modismos e discursos prontos. Espera-se que, ao criticar e repensar o movimento - com linguagem acessível tanto a iniciantes  quanto aos mais entendidos no assunto -, Feminismo em comum seja capaz de melhorar nosso modo de ver e de inventar a vida". Os objetivos do livro também estão bem explícitos no capítulo final. Dele tomo o primeiro e o último parágrafos:

"O que somos capazes de perceber do mundo em que vivemos? Contradições sociais são complexas, e a produção de ilusões não para de se reproduzir. Talvez não haja nada mais evidente do que a necessidade do feminismo como chave de acesso a um mundo melhor. As mulheres continuam oprimidas, humilhadas e violentadas. Os homens, mesmo em seus privilégios, vivem afundados na miséria do espírito, em uma sociedade que se autodestroi. Não haverá mundo melhor se não houver uma construção conjunta capaz de pensar em um comum que emancipará a todos. [...] O feminismo em comum é um convite e um chamado para o diálogo e a luta. Aceitá-lo é uma questão de inteligência sociopolítica e de amor ao mundo". Portanto, o livro é um convite à emancipação.
Márcia Tiburi numa fala na Universidade Federal do Paraná.


Para melhor conhecimento do livro vamos ao títulos de seus capítulos: 1. Feminismo já; 2. Pensar o feminismo; 3. Somos todas trabalhadoras; 4. Autocrítica: o feminismo para além do medo e da moda; 5. O feminismo é o contrário da solidão; 6. Da misoginia ao diálogo; 7. O feminismo e o feminino; 8. Lugar de fala e lugar de escuta: feminismo dialógico como encontro das lutas. 9. Ideologia patriarcal; 10. Direito de ser quem se é; 11. Mulheres e feministas: o problema da identidade. 12. As potências do feminismo: da ético-política à poético-política. 13. Ser feminista: relatar a si mesma; 14 A violência e o poder. 15. Minorias políticas, lugar de fala e lugar da dor: a questão do diálogo em nome de direitos. 16. Política da escuta; 17. Pensar juntas, juntes e juntos: por um feminismo em comum.

Gostei mais, creio que em função das lutas que travamos na direção da APP-Sindicato, dos capítulos que se referem à construção da identidade, como condição necessária para empreender qualquer luta, e da questão da presença da ético-política-poética, absolutamente necessária para não se cair na burocratização insossa de qualquer movimento que objetive a transformação de mundo. Aliás, a crença do pensar para transformar também acompanha o livro, do começo até o final. Um livro absolutamente necessário. Sim, antes de terminar, a dominação é exercida por um complexo de fatores interligados que envolvem as questões de classe, de raça e de gênero, com as suas devidas especificidades.


terça-feira, 15 de maio de 2018

O Edito de Milão e o Concílio de Niceia. Alberto Manguel.

Este post tem como destinatários específicos os participantes do grupo de leituras formado por professores da Rede Estadual de Ensino do Paraná, que tem como objetivo estimular o exercício da leitura e a metabolização do conhecimento. Ao curso foi dado o nome de Formação do Pensamento Ocidental. Já lemos O Banquete e a Apologia de Sócrates, e este texto visa a leitura das Confissões de Santo Agostinho. Como usamos a História do Cristianismo, de Paul Johnson, para falar de São Paulo e do Concílio de Jerusalém, vamos agora, ampliar nossas fontes com Alberto Manguel, Uma história da leitura. Ele irá nos falar da afirmação do cristianismo com o Edito de Milão e com o Concílio de Niceia. Vamos ao texto de Manguel:
Um livro simplesmente maravilhoso. Dele tiramos este texto.

"No ano de 330, Flávio Valério Constantino, que a história lembraria como Constantino, o Grande, tendo derrotado seis anos antes o exército do imperador rival Licínio, afirmou sua posição de chefe do maior império do mundo mudando a capital das margens do Tibre para as margens do Bósforo, em Bizâncio. Para sublinhar o significado dessa mudança de margem, rebatizou a cidade de Nova Roma; a vaidade do imperador e a bajulação de seus cortesãos mudaram o nome novamente - para Constantinopla, a cidade de Constantino.

De modo a tornar a cidade adequada ao imperador, Constantino alargou a velha Bizâncio tanto física quanto espiritualmente. Sua língua era o grego; sua organização política era romana; sua religião - em grande medida graças à influência da mãe de Constantino, santa Helena - era cristã.  Criado em Nicomédia, no Império Romano do Oriente, na corte de Dioclesiano, Constantino familiarizara-se com boa parte da rica literatura latina da Roma clássica. No grego, sentia-se menos à vontade; quando mais tarde foi obrigado a fazer discursos em grego aos seus súditos, escrevia-os primeiro em latim e depois lia traduções preparadas por escravos cultos. A família de Constantino, originalmente da Ásia Menor, havia cultuado o sol como Apolo, o deus inconquistado, introduzido pelo imperador Aureliano como suprema divindade de Roma em 274. Foi do sol que Constantino recebeu uma visão da Cruz com o dístico in hoc vinces (Com isto serás vitorioso) antes de sua batalha contra Licínio; o símbolo da nova cidade de Constantino tornou-se a coroa com raios de sol, feita, assim se acreditava, com os pregos da Santa Cruz, que sua mãe desenterrara perto do morro do Calvário. Tão poderoso era o fulgor do deus Sol que, apenas dezessete anos após a morte de Constantino, a data do nascimento de Cristo - o Natal - foi transferida para o solstício de inverno - o nascimento do sol.

Em 313, Constantino e Licínio (com quem Constantino compartilhava então o império e a quem mais tarde trairia) encontraram-se em Milão para discutir "o bem-estar e a segurança do reino" e declararam, num edito famoso, que, "das coisas que são de proveito para toda a humanidade, a adoração a Deus deve ser justamente nossa primeira e principal preocupação, e é justo que cristãos e todos os outros tenham liberdade de seguir o tipo de religião que preferem". Com esse edito de Milão, Constantino eliminou oficialmente do Império Romano a perseguição aos cristãos, que até ali tinham sido considerados proscritos e traidores, recebendo a punição correspondente. Mas os perseguidos transformaram-se em perseguidores: para afirmar a autoridade da nova religião estatal, vários líderes da nova religião adotaram os métodos dos velhos inimigos. Em Alexandria, por exemplo, onde se supunha que a lendária Catarina fora martirizada pelo imperador Maximiliano numa roda circundada de pontas, em 361 o bispo em pessoa comandou o assalto ao templo de Mitra, o deus persa preferido pelos soldados e único competidor sério da religião de Cristo; em 391, o patriarca Teófilo pilhou o templo de Dionísio - o deus da fertilidade, cujo culto era celebrado em mistérios de grande sigilo - e incitou a multidão cristã a destruir a grande estátua do deus egípcio Serápis; em 415, o patriarca Cirilo ordenou a uma multidão de jovens cristãos que entrasse na casa da filósofa e matemática pagã Hipatia, arrastasse-a para a rua, esquartejasse-a e queimasse seus restos em praça pública. Deve-se dizer que o próprio Cirilo não era muito querido. Depois de sua morte, em 444, um dos bispos de Alexandria pronunciou o seguinte panegírico fúnebre: "Finalmente este homem odioso está morto. Sua partida traz júbilo aos que lhe sobrevivem, mas está destinada a atormentar os mortos. Eles não demorarão muito a se fartar dele, mandando-o de volta para nós. Portanto, ponha uma pedra bem pesada sobre seu túmulo, para que não corramos o risco de vê-lo novamente, mesmo como fantasma.
O grupo de leitura em um de seus encontros.

O cristianismo tornou-se, como religião da poderosa deusa egípcia Ísis ou do Mitra persa, uma religião da moda e na igreja cristã de Constantinopla, superada apenas pela de São Pedro em Roma, os devotos ricos iam e vinham entre os devotos pobres, desfilando uma tal quantidade de sedas e joias (nas quais histórias cristãs esmaltadas ou bordadas haviam substituído os mitos dos deuses pagãos) que são João Crisóstomo, patriarca da igreja, parava nos degraus e seguia-os com olhares de censura. Os ricos queixavam-se em vão; depois de transfixá-los com os olhos, o santo começou a fustigá-los com a língua, denunciando do púlpito seus excessos. Era indecente, trovejava com eloquência (o nome Crisóstomo significa 'língua de ouro") que um único nobre fosse dono de dez ou vinte casas e até 2 mil escravos, e possuísse portas esculpidas em marfim, chãos de mosaicos e móveis incrustados de pedras preciosas.

Mas o cristianismo estava longe de ser uma força política segura. Havia o perigo da Pérsia sassânida, que, antes uma nação de partos sem força, tornara-se um estado em expansão feroz e três séculos mais tarde conquistaria todo o Oriente romano. Havia  o perigo das heresias: os maniqueus, por exemplo, para quem o universo não era controlado por um deus onipotente, mas por dois poderes antagônicos, a exemplo dos cristãos tinham missionários e textos sagrados e estavam ganhando adeptos até no Turquestão e na China. Havia o perigo da dissensão política. Constâncio, o pai de Constantino, controlara apenas a parte oriental do Império Romano, e, nos recantos mais distantes do reino, havia administradores que estavam deixando de ser leais a Roma. Havia o problema da inflação alta, que Constantino piorou inundando o mercado com ouro apropriado dos templos pagãos. Havia os judeus, com seus livros e argumentos religiosos. E havia ainda os pagãos. Não era da tolerância pregada em seu próprio edito de Milão que Constantino precisava, mas de uma cristandade autoritária, rígida, sem evasivas, de longo alcance, com raízes profundas no passado e uma promessa inflexível para o futuro, estabelecida mediante poderes, leis e costumes terrenos para maior glória do imperador e Deus.

Em maio de 325, em Niceia, Constantino apresentou-se aos seus bispos como "o bispo das coisas externas" e declarou que suas recentes campanhas militares contra Licínio haviam sido "uma guerra contra o paganismo corrupto". Graças aos seus feitos, Constantino seria visto a partir de então como um líder sancionado pelo poder divino, um emissário da própria divindade. (Quando morreu, em 387, foi enterrado em Constantinopla ao lado dos cenotáfios dos doze apóstolos, isto implicando que ele se tornara um décimo terceiro póstumo. Após sua morte, foi geralmente representado na iconografia eclesiástica recebendo a coroa imperial das mãos de Deus.

Constantino percebeu que era necessário determinar a exclusividade da religião que escolhera para seu estado. Com tal propósito, decidiu brandir contra os pagãos os próprios herois deles. Na Sexta Feira Santa do mesmo ano 325, em Antióquia, dirigiu-se a uma congregação de seguidores cristãos, entre eles bispos e teólogos, e falou-lhes sobre o que chamou de "verdade eterna do cristianismo". À assembleia, que batizou de "Assembleia dos Santos", disse: "Meu desejo é derivar, mesmo de fontes externas, um testemunho da natureza divina de Cristo. Pois, diante de tal testemunho, é evidente que mesmo aqueles que blasfemam Seu nome deverão reconhecer que Ele é Deus e o Filho de Deus, se de fato acreditarem nas palavras daqueles cujos sentimentos coincidem com os deles próprios. Para provar isso, Constantino invocou a sibila Eritreia.

O imperador contou à plateia de que modo a Sibila, em tempos longínquos, fora entregue "pela insensatez de seus pais" ao serviço de Apolo, e de que modo, "no santuário de sua vã superstição", ela respondera às perguntas dos seguidores de Apolo. "Em certa ocasião, no entanto", explicou ele, a sibila "ficou realmente cheia de inspiração do alto e declarou em versos proféticos os propósitos futuros de Deus, indicando claramente o advento de Jesus pelas letras iniciais de uma série de versos, os quais formavam um acróstico com estas palavras: JESUS CRISTO, FILHO DE DEUS, SALVADOR, CRUZ." Constantino então declamou o poema da sibila.

Magicamante, o poema (cuja tradução começa com "julgamento! Os poros exsudante da terra marcarão o dia") contém de fato o acróstico divino. Para refutar todo e qualquer cético, Constantino imediatamente admitiu a explicação óbvia: "que alguém professando nossa fé e não estranho à arte poética foi o autor desses versos". Mas descartou tal possibilidade: A verdade, porém, nesse caso, é evidente, uma vez que a diligência de nossos compatriotas fez um cômputo cuidadoso dos tempos, não havendo espaço para suspeitar que esse poema tenha sido composto depois do advento e condenação de Cristo".  Ademais, "Cícero conhecia esse poema, que traduziu para o latim e incorporou às suas próprias obras". Infelizmente, o trecho em que Cícero menciona a sibila - a de Cumes, não a de Eritreia - não contém referências nem aos versos nem ao acróstico, sendo na verdade uma refutação das previsões proféticas. Todavia essa maravilhosa revelação era tão conveniente que, durante muitos séculos, o mundo cristão aceitou a sibila entre seus antepassados. Santo Agostinho deu-lhe um lar entre os abençoados em sua Cidade de Deus. No final do século XII, os arquitetos da catedral de Laon esculpiram na fachada a sibila Eritreia (decapitada durante a Revolução Francesa) com suas tabuletas oraculares, no mesmo formato das de Moisés, e inscreveram a seus pés a segunda linha do poema apócrifo. E, quatrocentos anos depois, Michelangelo colocou-a no teto da capela Sistina, como uma das quatro sibilas que complementavam os profetas do Velho testamento.

A sibila era o oráculo pagão, e Constantino a fez falar em nome de Jesus Cristo. Em seguida o imperador voltou sua atenção para a poesia pagã e anunciou que o "príncipe dos poetas latinos" também fora inspirado por um Salvador que não poderia ter conhecido. Virgílio escrevera uma écloga em honra de seu patrono, Gaio Anísio Polião, fundador da primeira biblioteca pública de Roma; a écloga anunciava a chegada de uma nova idade de ouro, nascida sob o disfarce de um bebê:
Começa, doce menino! Com sorrisos tua mãe conhece
Quem carregou teu peso durante dez longos meses.
Nenhum pai mortal sorriu quando nasceste;
Alegria nupcial ou deleite  na Terra não conheceste.

Tradicionalmente, as profecias eram consideradas infalíveis; logo, era mais fácil mudar as circunstâncias históricas do que alterar as palavras da profecia. Um século antes, Ardachir, o primeiro rei sassânida, mudara a cronologia histórica para fazer uma profecia de Zoroastro beneficiar seu império. Zoroastro profetizara que o império e a religião persas seriam destruídos depois de mil anos. Ele vivera cerca de 250 anos antes de Alexandre, o Grande, que morrera 549 anos antes do reinado de Ardachir. Para acrescentar dois séculos à sua dinastia, o rei sassânida proclamou que havia começado a reinar quase 260 anos depois de Alexandre. Constantino não alterou a história, nem as palavras proféticas: mandou traduzir Virgílio para o grego, com uma licença poética elástica que serviu a seus propósitos políticos.

Constantino leu trechos do poema traduzido para sua plateia e tudo o que a Bíblia contava estava lá, nas palavras antigas de Virgílio: a Virgem, o esperado Messias, os eleitos, o Espírito Santo. Constantino escolheu discretamente esquecer aqueles trechos em que Virgílio mencionava os deuses pagãos, Apolo, Pã e Saturno. Personagens antigos que não podiam ser omitidos tornaram-se metáforas da vinda de Cristo. "Outra helena outras guerras criará,/Eo grande Aquiles apressa o destino de Troia", escrevera Virgílio. Isso, disse Constantino, era Cristo "fazendo guerra contra Troia, entendendo por Troia o próprio mundo". Em outros casos, explicou Constantino ao seu público, as referências eram estratagemas, com os quais Virgílio enganou as autoridades romanas. "Suponho", disse ele (e podemos imaginá-lo baixando a voz depois de declamar Virgílio), "que tenha sido consagrado pelo sentimento de perigo que ameaçava quem atacasse a credibilidade da antiga prática religiosa. Com cuidado, portanto, e com segurança, tanto quanto possível, ele apresentava a verdade àqueles que têm faculdades para entendê-la.

"Aqueles que têm faculdades para entendê-la": o texto tornou-se uma mensagem cifrada que só podia ser lida por uns poucos eleitos dotados das necessárias "faculdades". Não estava aberto a qualquer interpretação; para Constantino, somente uma leitura era a verdadeira, e desta, somente ele e seus companheiros de crença tinham a chave. O edito de Milão oferecera liberdade de fé a todos os cidadãos romanos: o Concílio de Niceia limitou essa liberdade àqueles que adotavam o credo de Constantino. Passados apenas doze anos, gente que ganhara em Milão o direito público de ler o que quisesse e como quisesse agora era informada, em Antióquia e Niceia, de que somente uma leitura  era verdadeira, sob pena de punição legal. Estipular uma leitura única para um texto religiosos era necessário, segundo a concepção de Constantino de um império unânime. Mais original e menos compreensível é a noção de uma única leitura ortodoxa para um texto secular como os poemas de Virgílio. MANGUEL. Alberto. Uma história da leitura. Companhia das Letras. São Paulo.2002. Páginas 230-236.
O monumental livro de Paul Johnson.


No livro de Paul Johnson, História do cristianismo, tema está na parte dois - De mártires a inquisidores, a partir da 83.

domingo, 13 de maio de 2018

A Revolta da Chibata. Edmar Morel.

Há tempos tinha vontade de ler algo mais aprofundado sobre a Revolta da Chibata. Procurando bibliografia, creio que tive sorte. Me deparei com o livro de Edmar Morel, que mesmo sem ter lido outros, sobre o tema, afirmo, com firme convicção, que encontrei a melhor das referências. Trata-se do livro de Edmar Morel, A Revolta da Chibata, cuja primeira edição data de 1959. A edição por mim adquirida é da Paz e Terra, datada de 2016 e organizada por Marco Morel. Uma verdadeira preciosidade.
A monumental obra de Edmar Morel. Edição da Paz e Terra - 2016.

Trago, primeiramente, as qualidades do livro apresentadas na contracapa. Vejamos: "João Cândido, num relato simples, contou-me como deflagrou a revolta: Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte temporal sobre a parada militar e o desfile naval. [...] O Comitê Geral decidiu, por unanimidade, deflagrar o movimento no dia 22. [...]  O sinal seria a chamada da corneta das 22h. [...] Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate'". Vamos à outra:

"O mais polêmico e audacioso livro de Edmar Morel, dedicado ao marujo João Cândido, ganha de qualquer outro na bibliografia brasileira, tendo custado ao autor a cassação de seus direitos políticos. Morel pagou pelo crime de ter redimido dos insultos da historiografia dos donos do poder o magnífico marinheiro João Cândido". Jorge Amado. E a última: "Grande repórter que é, Morel incursionou pelo começo do século e de lá trouxe documentos inéditos, informações vivas, palpitantes sobre a famosa revolta da esquadra comandada pelo marinheiro João Cândido, o Almirante Negro". Rubem Braga.

Lembrando que a letra da música de João Bosco e Aldir Blanc, em homenagem ao almirante, fala de Navegante Negro, por obra da censura da ditadura militar, instaurada a partir de 1964. Mas vamos aproveitar e mostrar a estrofe mais famosa da homenagem que lhe foi prestada em O mestre sala dos mares. Glória à farofa, à cachaça, às baleias//Glória a todas as lutas inglórias//Que através da nossa história//Não esquecemos jamais//Salve o Navegante Negro//Que tem por monumento//As pedras pisadas dos cais. Mas, voltamos ao livro, agora à orelha da capa e contracapa, primeiramente, numa homenagem ao autor:

"Tão grande quanto o ato de João Cândido de comandar o motim dos marinheiros, em 1910, equivale o gesto de Edmar Morel ao redigir o livro A Revolta da Chibata". Maria Lúcia Corrêa Ferreira, historiadora. Depois segue uma pequena trajetória percorrida pelo livro:

"Publicado originalmente em 1959, A Revolta da Chibata apresenta a história da rebelião da Marinha de Guerra, em 1910, liderada pelo marinheiro João Cândido, o Almirante Negro, cujo objetivo era acabar com os castigos corporais e, num plano mais elevado, instaurar justiça social e dignidade na sociedade brasileira da época.

https://www.youtube.com/watch?v=lBOg8w9V-FA
Link de "mestre sala dos mares", homenagem de João Bosco e Aldir Blanc, na voz de Elis Regina.

A obra lembra fatos que a História oficial havia esquecido: os tenebrosos massacres na Ilha das Cobras, lugar em que os revoltosos, já anistiados, foram confinados em uma masmorra cheia de cal; e o navio Satélite, que levou, em seu porão, centenas de marinheiros para os confins da Amazônia, onde muitos foram vendidos como escravos e outros tantos simplesmente fuzilados, como comprovam os documentos do comandante do Satélite, Carlos Storry, publicados neste livro.

Referência bibliográfica sobre o movimento dos marinheiros e a figura de João Cândido, este trabalho de Edgar Morel passou a se confundir com a história que narra. Inclusive o termo "Revolta da Chibata", pelo qual o episódio ficou conhecido, foi criado pelo autor". E termina com uma informação da presente edição da paz e Terra: Em 2010, a Paz e Terra publicou uma edição comemorativa, organizada por Marco Morel, pelo centenário da Revolta da Chibata. A presente edição (2016), revisada, mantém os acréscimos daquela edição".

Como Edmar Morel, o seu autor, também já pertence à história, vamos à sua biografia, também mostrada na contracapa: "Edmar Morel (1912-1989) foi um pioneiro do jornalismo investigativo no Brasil, com reportagens de impacto sobre temas sociais e políticos. Trabalhou em grandes veículos da comunicação e na imprensa alternativa de esquerda entre 1930 e 1980. Publicou em 1959 A Revolta da Chibata, após dez anos de pesquisa. Entrevistou o próprio Almirante Negro - protagonista da rebelião -, cujas declarações se encontram na presente obra".

Creio que perceberam, por estas referências, a grandeza e importância do livro. As primeiras cinquenta páginas são dedicadas à apresentações, do autor, do tema e de um prefácio para a terceira edição, de autoria de Evaristo de Morais Filho, cujo pai fez a apaixonada defesa do Almirante, absolvendo-o de suas incriminações. O corpo do livro é formado pelos capítulos, cujos títulos apresento e que mostram a evolução dos acontecimentos: Introdução - Herois; Árbitro (um texto de Gilberto Amado); Conspiração; Revolta; Vitória; Massacre; Satélite; Covardia; Justiça; Perseguição; Crepúsculo; Ressurreição; depois de 64; o heroi popular. 

Seguem três anexos. Um espetáculo para a memória: I. A vida de João Cândido (suas memórias, publicadas em doze capítulos, pela Gazeta de Notícias). Estas memórias ganharam um sub título maravilhoso - Um sonho de liberdade; II.Reminiscências de um rábula criminalista (Trata-se de Evaristo de Moraes, que atuou na defesa de João Cândido - Texto extraído do livro de memórias do autor - Reminiscências de um rábula criminalista); III. Versão oficial. Trata-se da versão apresentada pela Marinha, de autoria do capitão de mar e guerra Luís Alves de Oliveira Bello. Um texto ignominioso.

Os grandes destaques do livro vão para a coragem e patriotismo de João Cândido, o seu espírito humanitário, a sua perícia técnica no comando da frota rebelada. Ele esteve no comando do Minas gerais, um navio couraçado (O Potemkim brasileiro), operando-o com destreza, o que lhe valeu o codinome de Almirante Negro. Ainda são temas relevantes, a forma de arregimentar os marinheiros e os maus tratos (chibata) recebidos, o não bombardeio da cidade do Rio de Janeiro pelos rebeldes, a rápida anistia concedida e a traição pelo comando da presidência da República, onde estava o recém eleito Marechal Hermes da Fonseca e os massacres da Ilha das Cobras de navio Satélite e, ainda, como este tema continuou proibido ao longo de nossa história.

Edmar Morel, com o seu livro, devolveu vida a este importante personagem de nossa história popular. Já quanto ao governo das elites, a obra reflete o espírito escravista de nossa elite, de uma abolição jamais metabolizada, de seu espírito traiçoeiro e intolerante, que sob o imponente nome de RES PUBLICA, não titubeava em cometer as mais desumanas atrocidades. E, por fim, lamentar que o espírito de nossas elites continua, ainda hoje, praticamente o mesmo. Um livro necessário.



sexta-feira, 11 de maio de 2018

História do cristianismo. Parte um. Ascensão e resgate da Seita de Jesus. Paul Johnson.

A finalidade deste post atende a um grupo de leitura formado por professores da Rede Pública do Estado do Paraná, que tem por objetivo fomentar a leitura e o conhecimento. O curso recebeu a denominação  de - Formação do Pensamento Ocidental. Este texto é preparatório para a Leitura das Confissões de Santo Agostinho (354 - 430). Por ele se mostra a importância de São Paulo na sedimentação do cristianismo. O texto é retirado do livro História do Cristianismo, de Paul Johnson. É o início de seu primeiro capítulo - Ascensão e resgate da Seita de Jesus.
 O monumental livro de Paul Johnson, donde retiramos este texto.

"Em algum momento, em torno de meados do primeiro século d.C., e muito provavelmente no ano 49, Paulo de Tarso saiu de Antióquia e rumou para Jerusalém, ao sul, onde encontrou os seguidores sobreviventes de Jesus de Nazaré, crucificado cerca de dezesseis anos antes. Essa Conferência Apostólica, ou Concílio de Jerusalém, foi o primeiro ato político na história do cristianismo e o ponto inicial a partir de que podemos procurar reconstruir a natureza da doutrina de Jesus, bem como as origens da religião e da igreja que ele trouxe à luz.

Temos dois relatos quase contemporâneos desse concílio. Um, datando da década seguinte, foi ditado pelo próprio Paulo em sua carta às congregações cristãs da Galácia, na Ásia Menor. O segundo é posterior, e provém de uma série de fontes ou relatos de testemunhas oculares, reunidos por Lucas nos Atos dos Apóstolos. É uma descrição branda e quase oficial de uma disputa na Igreja e sua resolução satisfatória. Examinemos essa segunda versão antes. Ela conta que "acalorado debate e controvérsia" tinham surgido em Antióquia porque "certas pessoas", de Jerusalém e da Judeia, em direta contradição com a doutrina de Paulo, vinham dizendo aos convertidos ao cristianismo que não poderiam ser salvos, a menos que se submetessem ao ritual judaico da circuncisão. Por consequência, Paulo, seu companheiro Barnabé e outros da missão para os gentios em Antióquia viajaram para Jerusalém para consultar "os apóstolos e os anciãos".

Ali, tiveram uma recepção mista. Receberam as boas-vindas da "Igreja, apóstolos e anciãos"; todavia, "algumas pessoas do partidos fariseus, que tinham abraçado a fé", insistiam em que Paulo estava errado e que todos os convertidos deveriam não apenas ser circuncidados como também aprender a seguir a lei judaica de Moisés. Houve "uma longa discussão", seguida de discursos de Pedro, que apoiava Paulo, do próprio Paulo e de Barnabé, e uma síntese de Tiago, o irmão mais novo de Jesus. Ele propôs um meio-termo que foi, aparentemente, adotado "com a concordância de toda a Igreja". Assim sendo, Paulo e seus companheiros seriam enviados de volta para Antióquia, acompanhados por uma delegação de Jerusalém, que levava uma carta. Esta estabelecia as regras da conciliação: os convertidos não precisariam submeter-se à circuncisão, mas teriam de observar certos preceitos da lei judaica, em termos de regime alimentar e conduta sexual. O relato de Lucas, nos Atos, assevera que se chegou a essa posição intermediária "por unanimidade", e que, quando a decisão foi comunicada à congregação de Antióquia, "todos se rejubilaram". Os delegados puderam, portanto, retornar a Jerusalém, tendo solucionado o problema, e Paulo prosseguiu com sua missão.

Essa, pois, é a descrição do primeiro concílio da Igreja, tal como narrada por um documento consensual, que se poderia considerar uma versão conciliatória e ecumênica, designada para apresentar a nova religião como um corpo místico dotado de uma vida própria, coordenada e unificada, encaminhando-se para conclusões inevitáveis e predestinadas. Os Atos, de fato, afirmam especificamente que a determinação do concílio foi "decisão do Espírito Santo". Não admira que tenha sido aceita por unanimidade! Não admira que "todos" em Antióquia se tenham "rejubilado frente ao ânimo por ela proporcionado".

A versão de Paulo, no entanto, apresenta um quadro bem diferente. E seu relato não é o de uma mera testemunha ocular, mas o do participante principal e central, talvez o único que compreendia a magnitude das questões em jogo. Paulo não está interessado em apurar as arestas ásperas da controvérsia. Ele está apresentando um caso a homens e mulheres cujas vidas espirituais são dominadas pelas questões com que se defrontaram os anciãos naquela sala em Jerusalém. Seu objetivo não é pacificador nem ecumênico, e muito menos diplomático. É um homem determinado a dizer  a verdade e imprimi-la como fogo nas mentes de seus leitores. Nos apócrifos Atos de Paulo, escritos talvez cem anos após sua morte, a tradição de sua aparência física é preservada com nitidez: "... um homem pequeno com uma grande cabeça careca. Suas pernas eram curvas, mas seu porte era nobre. Suas sobrancelhas eram bem unidas e ele tinha um grande nariz. Um homem que inspirava amistosidade". Ele mesmo diz que sua aparência não impressionava. Admite que não era orador; tampouco, externamente, um líder carismático. Contudo, as cartas autênticas que sobreviveram irradiam seu carisma interior: possuem a marca indelével de uma personalidade maciça, ávida, aventurosa, incansável, volúvel, um homem que luta heroicamente pela verdade e, então, apresenta-a com incontrolável entusiasmo, correndo à frente de sua capacidade de articulação. Não um homem com quem se poderia trabalhar, ou a quem confutar em uma discussão, fazer calar ou propor compromissos com facilidade: um homem perigoso, rígido, inesquecível, inspirando amistosidade, de fato, mas criando monstruosas dificuldades e declinando de resolvê-las por meio de qualquer sacrifício de verdade.

Ademais, Paulo tinha certeza de estar com a verdade. Não faz referência a nenhum endosso, nem mesmo sugestão, por parte do Espírito Santo, da solução conciliatória tal como apresentada por Lucas. Em sua epístola aos gálatas, algumas frases antes de sua versão do Concílio de Jerusalém, ele repudia, como tal, toda e qualquer ideia de um sistema conciliar que orientasse as questões da Igreja, todo e qualquer apelo ao julgamento dos mortais ali reunidos. "Tenho de deixar claro para vocês, meus amigos", escreve ele, "que o evangelho que me ouviram pregar não é nenhuma invenção humana. Não o recebi de homem algum; nenhum homem ensinou-o para mim; recebi-o por meio de uma revelação de Jesus Cristo". Assim sendo, ao descrever o concílio e suas consequências, Paulo escreve como se sente, de forma crua, concreta e inequívoca. Seu concílio não é uma reunião de espíritos inspirados, agindo de acordo com a infalível orientação do espírito, mas uma conferência humana de homens fracos e vulneráveis, dos quais somente ele possuía mandato divino. Como poderia ser diferente, sob seu ponto de vista? Os elementos judaicos estavam arruinando sua missão em Antióquia, que ele conduzia por instruções explícitas de Deus,"que me havia destinado desde o nascimento e chamado por meio de sua graça, escolheu seu Filho para mim e através de mim, a fim de que eu pudesse proclamá-lo entre os gentios". Para derrotá-los, pois, ele foi a Jerusalém "porque fora revelado por Deus que eu deveria fazê-lo". Viu os líderes dos cristãos de Jerusalém, "os homens de renome", como ele os chama "em uma entrevista particular". Esses homens - Tiago, o irmão de Cristo, os apóstolos Pedro e João, "esses bem considerados pilares de nossa sociedade" - sentiram-se inclinados a aceitar o evangelho tal como Paulo o ensinava e a reconhecer suas credenciais como apóstolo e mestre da doutrina de Cristo. Dividiram o território missionário, "concordando que deveríamos ir para os gentios enquanto eles iam para os judeus". Tudo que pediram foi que Paulo se certificasse de que suas congregações gentílicas proporcionassem apoio financeiro para a Igreja de Jerusalém, "exatamente o que me encarreguei de fazer". Tendo chegado a esse acordo, Paulo e os pilares "firmaram o pacto". Não se faz referência a qualquer concessão feita por Paulo quanto à doutrina. Pelo contrário, ele se queixa de que a imposição da circuncisão aos convertidos fora, até então, "estimulada" como aliciamento de "certos falsos cristãos, intrusos que se haviam imiscuído para espreitar a liberdade de que usufruímos em companhia de Jesus Cristo". Mas "nem por um momento cedi aos seus ditames". Encontrava-se "determinado na verdade plena do evangelho". Infelizmente, prossegue Paulo, sua aparente vitória em Jerusalém não encerrou a questão. Os "pilares", que se haviam comprometido a permanecer firmes contra os "falsos cristãos" judeus, em troca de apoio financeiro, não o fizeram. Quando Pedro, posteriormente, veio a Antióquia, estava pronto, a princípio, para tratar os cristãos gentios como iguais em termos religiosos e raciais, e comer suas refeições com eles; porém, depois, quando os emissários de Tiago chegaram à cidade, ele "retrocedeu e começou a manter-se à parte, por temer os partidários da circuncisão". Pedro encontrava-se "claramente em erro", o que Paulo lhe disse "em sua cara". Infelizmente, outros mostraram "a mesma falta de princípios", até Barnabé, que "agiu com a mesma falsidade dos demais". Paulo escreve em um contexto que a batalha, longe de estar ganha, continua e intensifica-se; e dá a clara impressão de que teme estar perdido.
Um encontro do nosso grupo de leitura.


Paulo escreve com paixão, urgência e medo. Discorda do relato nos Atos não apenas por ver os fatos de outro modo, mas porque tem uma ideia rematadamente mais radical de sua importância. Para Lucas, o concílio de Jerusalém é um incidente eclesiástico. Para Paulo, é parte da maior luta já travada. O que há por trás dele são duas ideias por resolver. Jesus Cristo havia fundado uma nova religião, a verdadeira, por fim? Ou, em outras palavras, ele era um Deus ou um homem? Se Paulo for vindicado, nascerá o cristianismo. Se for desautorizado, os ensinamentos de Jesus não passarão das peculiaridades de uma seita judaica, fadada a submergir no fluxo principal de um antigo credo". JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro. Imago. 2001. Páginas 11-14.




quarta-feira, 9 de maio de 2018

A formação da cultura ocidental. O encontro e a fusão de três culturas.

Estou participando de um grupo de leituras, formado por professores da rede estadual de ensino público do estado do Paraná, que tem por objetivo principal a formação de leitores, além de, obviamente, metabolizar conhecimento. Depois da leitura do Banquete e da Apologia de Sócrates, a próxima grande leitura proposta é a das Confissões de Santo Agostinho. Com isso entramos numa das características mais marcantes da cultura ocidental, que é a presença do cristianismo.

Para que as leituras tenham maior significado, algumas ligações precisam ser feitas. A primeira é esta, este texto do Antônio Joaquim Severino, do seu maravilhoso livro, Filosfia, onde o capítulo 3 é dedicado à formação da cultura ocidental. Ainda, em outros posts, vamos falar de Paulo e de Constantino, que além de Agostinho, deram consistência à doutrina e à afirmação do cristianismo. Neste sentido é que recorremos ao livro de Severino.
Um encontro do grupo. Desta vez foi o Banquete de Platão.

"O encontro e a fusão de três culturas

Quaisquer que tenham sido as condições econômico-sociais da formação e do desenvolvimento histórico da sociedade e da cultura do ocidente, é possível constatar que o nosso mundo, forjado no espaço geográfico do Mediterrâneo, resultou do entrecruzamento de três grandes vetores culturais: o judaísmo, o helenismo e o cristianismo. As feições da cultura ocidental são resultantes do confronto, do diálogo, da afirmação ou da negação de princípios fundamentais que embasavam a concepção da existência humana e a visão de mundo dessas três culturas. Essas concepções básicas dão conta das orientações que os homens buscaram imprimir em sua ação e em sua história, justificando, ideologicamente o mais das vezes, as suas opções políticas.

Assim, é possível dizer que o atual Ocidente deve sua origem histórica ao encontro de três pequenos povos: os romanos, os judeus e os gregos. Os povos judeu e grego, do ponto de vista quantitativo, político e militar, pouca significação teriam. Tanto isso é verdade que sua atuação só foi eficaz e fecunda quando entrou em cena o povo romano, este sim, militar, política e administrativamente forte, embora pouco significativo do ponto de vista específico da cultura filosófica. A história do Ocidente começa, pois, quando os romanos conquistam militar, econômica e politicamente o mundo banhado pelo Mediterrâneo, impondo sua organização administrativa imperial que desmantelava os círculos fechados das culturas dos vários povos que até então viviam, até certo ponto, isolados uns dos outros.

O mundo romano tornara-se um mundo cosmopolita, abrigando todos os povos da época, subjugados pela pax romana. Foi nesse contexto do Império Romano que as duas culturas mais importantes daquele momento puderam se encontrar e se expandir. Esse encontro provocou novas mudanças nas concepções de mundo, como ocorreu no caso do cristianismo.
O extraordinário livro de Antônio Joaquim Severino, donde extraímos este texto.

A cosmovisão judaica

Mas quais as posições básicas do judaísmo? O judaísmo era não só uma religião, uma doutrina mística e teológica, mas também todo um substrato cultural de uma civilização mediterrânea. Tem sua história e seus princípios registrados na Bíblia, na parte correspondente ao Velho Testamento. Em sua literatura teológica, o povo judeu sempre se entendeu como um povo privilegiado, com quem Deus fizera uma aliança e a quem prometera um destino muito importante e significativo, ultrapassadas as dificuldades de toda ordem que deveria enfrentar historicamente.

O que subjaz a toda essa narrativa bíblica? Que é um Deus todo-poderoso, senhor e criador do Universo, que promete salvar o povo judeu, por ele escolhido para ser seu representante na Terra. Note-se que não se trata de salvar o indivíduo como tal, mas a comunidade, o povo que for fiel a Deus, sendo essa salvação um acontecimento histórico, uma vez que se dará no decorrer da história; os homens que constituem a comunidade que será salva são os indivíduos concretos: os judeus não enfatizam então a dualidade corpo e alma. Portanto, o que se tem de básico na visão judaica são os seguintes princípios: 1. a historicidade, o sentido histórico dos acontecimentos; 2. o sentido do coletivo, do caráter comunitário prevalecendo sobre o individual; 3. o sentido da unidade do homem e da valorização do corpo; 4. a visão de Deus como um ser pessoal, cheio de reações análogas às dos homens com quem a comunidade judaica se relaciona e faz alianças.

O texto seguinte, extraído do Deuteronômio, um livro bíblico do Antigo Testamento, dá bem a ideia de como o judaísmo considerava Deus e suas relações com os homens. Esse livro é tido como o Evangelho do Antigo Testamento e expõe os discursos de Moisés ao povo israelita (Segue a transcrição dos capítulos 7 e 8 do Deuteronômio).

A cosmovisão grega

Do outro lado do Mediterrâneo, na Grécia, surgia de um pequeno agrupamento humano uma outra importante cultura e que também elaborara todo um sistema teórico de interpretação do real e da existência do homem. Não se julgava ligado a nenhum Deus pessoal, o universo se explicava, sim, por um princípio puramente racional, por um logos; os homens, naquilo que lhes é específico, são assim por "participarem" desse logos. Cada homem responde individualmente por seu destino e por seu agir nesta terra, devendo, pois, adequar-se o mais possível às exigências do logos, agindo assim sempre racionalmente, o que implica apoiar-se cada vez mais na sua alma, o corpo sendo apenas um obstáculo ao pleno desenvolvimento da alma.

Ao contrário dos judeus, os gregos: 1. privilegiavam a estabilidade, a permanência, já que o logos é sempre idêntico a si mesmo, imune ao tempo - desconheciam assim a historicidade; 2. valorizavam o individual, a "salvação" sendo uma responsabilidade exclusiva de cada homem; 3. enfatizavam o dualismo do ser humano, contrapondo matéria e espírito, corpo e alma, a "salvação" interessando apenas à alma; 4. o princípio divino é uma entidade totalmente impessoal; 5. o todo é visto sob a unidade de princípio fundador, que é uno.

A cosmovisão grega se expressa bem no fragmento que se segue, de autoria de Anaxágoras, pensador pré-socrático que viveu de 500 a 428 a. C., em Atenas. O jeito de pensar e de falar do "espírito" é bem diferente daquele do autor bíblico: o espírito é como se fosse um princípio, racional e impessoal.

"11 - Em cada coisa, há uma porção de cada coisa, exceto no espírito; em algumas, contudo, também há espírito.
12 - Todas as outras coisas participam de todas as coisas; o espírito contudo, é ilimitado e autônomo, com nada misturado, mas só, por si e para si. Pois se não fosse para si mesmo e se estivesse misturado com qualquer outra coisa, participaria de todas as coisas, desde que estivesse misturado a qualquer uma delas. porque em todas as coisas há uma parte de todas as coisas, como foi dito por mim no que precede; e o que lhe estaria misturado impediria qualquer poder sobre toda coisa, assim como tem agora sendo só para si. Pois é a mais fina de todas as coisas e a mais pura e tem todo conhecimento de todas as coisas e a maior força. E o espírito tem poder sobre todas as coisas que tem alma, tanto as maiores como as menores. Também sobre toda a revolução tem o Espírito poder, e foi ele quem deu o impulso a esta revolução. E esta revolução moveu-se em um pequeno começo; agora estende-se mais e estender-se-á ainda mais. E todas as coisas que com ela se misturaram, se separaram e se distinguiram, são conhecidas pelo Espírito. E o Espírito ordenou todas as coisas, como deveriam ser e como eram e agora não são, e as que são e como serão; e também a esta revolução na qual se movem agora as estrelas e o Sol e a Lua o ar e o éter, que estão separados. E esta mesma revolução operou a separação. E do ralo separou-se o denso, o quente do frio, o luminoso do escuro, o seco do úmido. E há muitas partes de muitas coisas. Mas nenhuma coisa é completamente separada ou distinta de nenhuma outra coisa, exceto o Espírito. O Espírito é sempre o mesmo, tanto o maior como o menor. Ao passo que nenhuma outra coisa é semelhante a outra coisa, mas cada coisa singular é e era manifestamente aquilo que mais contém.
13 - E quando o Espírito começou o movimento, separou-se de tudo o que era posto em movimento; e tudo o que o Espírito pôs em movimento foi separado. E quando as coisas foram postas em movimento e separadas, a revolução separou-as ainda mais umas das outras.
14 - O Espírito, que é eterno, é certamente também agora, lá, onde é toda outra coisa, na massa circundante, e naquilo que foi por separação unido a ela, e no separado. (Fragmentos 11-14. In Gerd Bornheim (org.) Os filósofos pré-socráticos).

O encontro dessas duas cosmovisões no cristianismo.


Essas duas concepções de mundo, que durante séculos se desenvolveram isoladas, se encontraram e se confrontaram graças a expansão do Império Romano. O cristianismo vai então entrar em cena como sua síntese cultural.  Originando-se como um movimento social e religioso enquanto dissidência do judaísmo, vai incorporando os princípios fundamentais do pensamento grego, no seus elementos gerais: o helenismo. É através do cristianismo que esses princípios serão legados ao Ocidente, marcando-lhe as feições. De meu ponto de vista, a impregnação dos princípios filosóficos gregos no cristianismo foi profunda e radical, prevalecendo de maneira expressiva sobre os princípios teológicos judaicos. Toda a história da filosofia e da teologia no Ocidente, a partir da constituição do cristianismo, só faz comprovar esse movimento contínuo de helenização do judaísmo. Não é, pois, sem razão que se pode afirmar que o Ocidente é filho do racionalismo grego.

O próprio Novo Testamento já testemunha essa transformação. Mas foi sobretudo São Paulo, judeu formado no espírito do helenismo e que foi o grande organizador da Igreja primitiva, quem consolidou o espírito grego no seio do próprio cristianismo. Na sua postura apostólica, na sua atividade pastoral, buscando atingir e convencer os "gentios", é levado a incorporar cada vez mais elementos helênicos na sua doutrina, fundindo-os harmoniosamente com pontos básicos do judaísmo: Deus criador e salvador dos homens, através de Cristo, o verdadeiro Messias.

Vejamos agora como a visão cristã, expressa na Introdução do Evangelho de São João, já soa helenizada e sintetiza bem, unindo-os intimamente, elementos do judaísmo e do helenismo. Evangelho de São João. 1. 1-18.

Nos primeiros quatro séculos de nossa era, a tarefa dos padres da Igreja foi justamente a de sistematizar e organizar a doutrina cristã para divulgá-la aos habitantes do Império Romano. Precisavam marcar sua identidade frente ao paganismo romano mas também frente ao pensamento grego; contudo, ao mesmo tempo, era necessário elaborar um discurso acessível a essa população de "gentios", uma vez que o cristianismo visava ultrapassar o mundo judeu.

Após o fim do Império Romano, com a doutrina já consolidada, a tarefa que se impunha então era não só a evangelização mas até mesmo a educação dos novos "bárbaros", vindos do Norte da Europa, invadindo o seu território.  Os teólogos da Igreja continuariam assim a desenvolver a doutrina cristã ao mesmo tempo em que construíam um método pedagógico para "civilizar" essas populações. Tanto para um como para outro objetivo, é novamente o pensamento grego que servirá de base. Tal é o sentido do trabalho desenvolvido pela Igreja na Idade Média. E o fato de a Igreja ter seguido esse caminho, ter se apoiado, agora explicitamente, na filosofia grega, serve para comprovar a afinidade de concepções básicas do cristianismo com aquelas do pensamento grego.

Nessa reelaboração, dois pensadores medievais cristãos tiveram papel de destaque: santo Agostinho e santo Tomás de Aquino. O primeiro compatibilizando a teologia e a ética cristã com a filosofia platônica; o segundo fazendo o mesmo com a filosofia aristotélica. Em ambos os casos salvaguardando os princípios básicos da herança judaica.
Platão e Aristóteles representados por Rafael. Depois santo Agostinho batizou Platão e santo Tomás de Aquino Aristóteles.


Todo o pensamento moderno procede da cosmovisão grega

Os elementos fundamentais do modo de pensar grego se incorporaram definitivamente ao pensamento ocidental, permanecendo até hoje. Assim, no Renascimento há uma crítica ao pensamento medieval, à escolástica e, aparentemente à filosofia aristotélico-tomista que a fundamentava. Mas isso é só aparência. Na realidade, a crítica renascentista era uma retomada ainda mais apurada do naturalismo e do racionalismo dos gregos, livrando-os dos elementos metafísicos e teológicos que ainda os limitavam. A força desse movimento é tão grande que o próprio protestantismo, ao pleitear o livre exame da consciência, nada mais fazia do que reforçar o racionalismo e o individualismo. Mas, de modo particular, a ciência é fruto acabado do naturalismo e do racionalismo gregos. Ela surge em decorrência direta da convicção dos pensadores modernos de que o mundo constituído de acordo com as leis racionais, "geometricamente", pode ser perfeitamente lido e manipulado pela razão humana, mediante um atento trabalho de observação e de raciocínio matemático, sem ter que se recorrer a qualquer outro tipo de ajuda ou de inspiração.

Sobre essa influência profunda do pensamento grego na formação do pensamento moderno, voltaremos a tratar, de maneira mais aprofundada, nos capítulos 7 e 8. Por enquanto, estou apenas adiantando o quanto a revolução científica da época moderna, que fundava o projeto iluminista da cultura ocidental, com suas consequências tecnológicas e sociais, é toda baseada na reafirmação dos pressupostos do pensamento filosófico grego.

O próprio capitalismo é fundado nesse racionalismo

Por outro lado, o modo de formação econômico-social, tal qual se dá sob o capitalismo moderno, também está relacionado com essa visão de mundo que, por sua vez, já é também um reflexo das forças econômicas e sociais relacionadas com a produção que estiveram atuando na constituição da sociedade ocidental, dando-lhe sua configuração. O capitalismo é o modo de produção que encontra no naturalismo e no racionalismo não só sua expressão epistemológica como também a sua justificação ideológica. Por isso nunca fomos tão gregos como atualmente...

Como teremos a oportunidade de constatar na análise de vários aspectos da realidade socicultural do Ocidente, mesmo na sua atualidade, nossas concepções de mundo continuam profundamente marcadas pelos pressupostos da filosofia grega. E isso explica muitas coisas".

SEVERINO, Antônio Joaquim. Filosofia. São Paulo: Cortez. 1992.  Páginas 45 - 53.


"No olvidemos que Roma es sinónimo de civilización, en la medida en que ha garantizado, a través de su estructura imperial, una lengua oficial común, la fluidez de las comunicaciones, la transmissión de la cultura, la vigencia del derecho, la organización comercial, la defensa de la frontera; es decir, en última instancia, las condiciones de possibilidad de la vida humana en sociedad. BORON, Atilio A. (Compilador) La Filosofia Política Clássica - De la Antiguidad al Renacimiento. Colección Clacso - Eudeba. Capítulo III. Augustín: El pensador político. Página 134 - 135.

sexta-feira, 4 de maio de 2018

A Verdade Vencerá. Luiz Inácio Lula da Silva.

O livro é de março de 2018. Lula já estava condenado em segunda instância, mas ainda não estava preso. Trata-se de A Verdade vencerá - O povo sabe por que me condenam. A autoria é atribuída a Luiz Inácio Lula da Silva e, de fato é, pois trata-se de uma entrevista concedida para Ivana Jinkings, Gilberto Maringoni, Juca Kfouri e Maria Inês Nassif. A organização do livro é de Ivana Jinkings, a editora é a Boitempo. A  transcrição da entrevista ficou a cargo de Mauro Lopes. O livro tem também textos de Eric Nepomuceno, Luiz Fernando Veríssimo, Luiz Felipe Miguel e Rafael Valim. As notas de rodapé, contextualizando dados da entrevista, se constituem numa preciosidade, o mesmo deve ser dito a respeito de dois álbuns de fotografias.


O trabalho foi realizado em tempo recorde. Havia muita urgência. Sobre a realização desta hercúlea tarefa, Ivana Jinkings, em nota da edição, nos relata o que segue: "Na quarta feira, 31 de janeiro deste ano (2018), fui conversar com o Lula em seu escritório, no bairro do Ipiranga em São Paulo. Recebeu-me pontualmente para uma conversa que deveria durar trinta minutos, mas se prolongou por duas horas e meia. Falamos de tudo: do processo movido contra ele, da vida, de livros e, claro, de minha proposta de colher dele um depoimento que se tornasse livro. Pediu-me um tempo para pensar e conversar com seus advogados. Dois dias depois, telefonou e disse: 'Vamos fazer'.

A partir daí, criou-se uma força-tarefa para a montagem da edição, incorporando autores dos textos complementares e a equipe de entrevistadores. Nos encontros que se seguiram, o ex-presidente mostrou-se aberto e não evitou responder nenhuma pergunta - talvez nunca tenha havido uma entrevista em que se desnudasse tanto. O resultado, os leitores poderão conferir no volume que ora apresentamos".

Quero reforçar a ideia do desnudamento. Se pairavam dúvidas sobre o relacionamento de Lula com Dilma após a eleição desta, a reposta a todas as curiosidades possíveis está bem explicitada. Da mesma forma, com relação ao impeachment, de como ele se tornou possível, está tudo bem detalhado. Dilma é, seguramente, uma pessoa de muita competência mas de dificílimo relacionamento. Lula conta, inclusive, sobre o fato de não ter sido ele o candidato a presidente em 2014. Também a nomeação de Levy para a Fazenda recebe ásperos comentários. Se houve complicações no relacionamento, os responsáveis são apontados. João Santana ganha destaque. Quis criar uma Dilma descolada do Lula. Uma Dilma puro-sangue.

Evidentemente que o tema principal da entrevista/livro é a perseguição que Lula sofreu por parte do poder judiciário. Em suas análises entra também na questão da caracterização da elite brasileira e o seu caráter perverso, com seus preconceitos raciais e de classe. Ele fala explicitamente sobre o que mais irritou a esta elite, a questão do ingresso dos filhos de trabalhadores na universidade: "Eu tinha (a questão do acesso à universidade) porque era um compromisso meu. Não tive o direito de fazer, então quero que os filhos dos trabalhadores façam. Vou passar para a história como o presidente que até agora mais fez universidades, mais escolas técnicas, que mais jovens colocou na universidade. Isso é uma coisa de que eu tenho muito orgulho, e por isso recebi muitos títulos (33 honoris causa)".

Aproveita para citar outros feitos, que sob seu julgamento foram os mais importantes de seu governo: "Se somar a isso o combate à fome, os doze anos de aumento de salário, do salário mínimo, e todas as conquistas sociais, os títulos que recebi não foram méritos meus, mas da evolução do povo brasileiro, de muita gente que ajudou" (página 19).

Na contracapa aparece uma frase sua em destaque: "Não fui eleito para virar o que eles são, eu fui eleito para ser quem eu sou. Tenho orgulho de ter sabido viver do outro lado sem esquecer quem eu era". É um livro para a história, contada pelo seu principal protagonista. Uma livro para historiadores, cientistas sociais e políticos e para os juristas.

Também merecem destaque os textos de autores convidados. São belíssimos, repletos de significados. Me levaram a algumas lágrimas. A eles dedicarei posts especiais. Depoimentos que brotam da reverência, da amizade e do reconhecimento a Lula como um líder carismático, que elevou a dignidade e a autoestima de seu povo e que colocou o Brasil no seu mais elevado patamar em suas relações internacionais ao longo de toda a sua história. Um líder e um estadista global, possivelmente uma das maiores lideranças mundiais do início do século XXI. O Nobel da Paz seria um prêmio à sua sensibilidade no combate à fome. Desta fome ele livrou quase quarenta milhões de brasileiros. Não pela caridade mas por políticas públicas. Um livro absolutamente necessário.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

A noite da espera. Milton Hatoum

"Na solidão da viagem, uma parte da minha vida saía de mim, o coração dividido pela amargura e a esperança: não sabia se ia rever Dinah, quem sabe se encontraria minha mãe...".  Assim termina o romance de Milton Hatoum - A Noite da espera. Ele integra a trilogia - O lugar mais sombrio. É o seu primeiro volume, lançado pela Companhia das Letras, em 2017. Os outros ainda estão por serem lançados. É o meu primeiro contato com o autor.

Na contracapa do livro lemos dois parágrafos a respeito do livro. Tomo a liberdade de invertê-los. "Este romance de formação - no qual as memórias do narrador são transcritas e repensadas em Paris - ecoa com força no nosso tempo, em que o impasse político e a desmoralização das instituições estão no centro da crise brasileira. Por isso, pode ser lido como um romance da desilusão, que lança ao futuro o travo amargo dos jovens estudantes cujo sonho era um país mais humanizado e menos desigual e injusto." Um romance de formação. Tenho enorme apreço por romances de formação. Sim é um romance de formação. O jovem Martim está em Brasília, onde cursa o colégio e a universidade. Em seus anos de formação, a mãe estava ausente, pois, ficara em São Paulo. Com o pai, embora presente fisicamente, estava mais distante ainda.

Mas isso está dito no primeiro parágrafo, junto com algumas informações a mais. "Nos cinco anos que Martim passa em Brasília, faz anotações intermitentes sobre sua vida de estudante no colégio e, depois, na universidade. A expectativa de rever a mãe cresce no contexto turbulento e brutal da ditadura. Nessa atmosfera de dúvidas, apreensão, violência e trauma, desenvolve-se o enredo de A noite da espera, até a dissolução final do grupo de amigos. A Tribo de Brasília."

A ida de Martim a Brasília se deve a um casamento desfeito entre Rodolfo e Lina, classe média santista/paulistana. Ele engenheiro, formado na USP. Ela professora particular de francês. Anos luz de distância, que nem Martim conseguia aproximar. Lina se manda e Martim segue para Brasília junto com o filho. O ano é o de 1967. Cinco anos de ausências. Da mãe até as correspondências vão se tornando escassas, até a perda de endereços. O pai.... É a tradicional imagem freudiana de um pai. Um grosso. Dinheiro e igreja são suas únicas preocupações.

Já a Tribo de Brasília vai se formando espontaneamente. Colegas vão se aproximando dentro da diversidade da relacionalidade. Colégio, por sinal, um bom colégio, a tal ponto de ser fechado pela alta insensibilidade dos mandantes usurpadores no Brasil. A Universidade, a famosa Universidade de Brasília, a filha prostituída de Darcy Ribeiro (Não queria estar na situação dos vencedores). O curso é o de arquitetura. Dele são afastados os professores de filosofia e de estética, substituídos por verdadeiros babacas. A Tribo se forma em torno do teatro, da poesia, da literatura e do amor, que começa a ser livre, cada vez mais livre.

Nas relações, os filhos dos pais "das oportunidades" da cidade, a nova capital, começam a se envolver. É filho de senador, de embaixador, de economistas, de engenheiros, todos bem sucedidos mas infelizes, na mesma proporção de seus êxitos materiais. As relações com os filhos estão mais distantes do que as instituições deste país com o seu povo. A cidade vive sob as incertezas dos atos de força do terror, maneira, que acreditavam necessária a manutenção da ordem. 

O livro, escrito em 2017, como vimos, nos remete ao ano de 1968, quando o Brasil se aproxima dos anos de chumbo de sua ditadura civil/militar. O livro é composto das reminiscências de Martim, dez anos depois, morando em Paris. Martim, o pai Rodolfo e a mãe Lina, compõem o trio central da narrativa e que dão substância ao romance. Isso não anula os demais personagens do cenário que se forma a partir de Brasília e da ditadura.

Sob a minha ótica, o pai é o grande personagem. Ele é a própria representação da instituição do Brasil oficial. O tosco de sua elite. Ele vibra, por inteiro, com o endurecimento do regime, sob a proclamação do AI-5. Odeia os estudos de Martim e a sua pendência para o teatro, para a poesia e para as disciplinas de estética e filosofia. Mas, o maior ódio se volta ao livreiro comunista que dera emprego ao filho. A mãe ausente não recebe maior caracterização, desnecessária por sinal, devido a marca da ausência. A ausência revela outras preocupações. Enquanto isso Martim, em seus anos de formação, vai vivendo seus dramas ao dar de frente com as expectativas da vida e do futuro, pois, "não sabia se ia rever Dinah, quem sabe se encontraria minha mãe."

Vivia com "o coração dividido pela amargura e a esperança". Isso é o Brasil, essa é a minha Pátria, mais uma vez, profundamente cindida, onde as elites e suas instituições, que se afastam cada vez mais de seu maravilhoso povo, deixando como resultado um terrível abandono e solidão, com poucas perspectivas de aproximação. Um livro magnífico.


quarta-feira, 2 de maio de 2018

Ricos, podres de ricos. Antonio David Cattani. Um resumo.


Na página 64 do livro Ricos, podres de ricos, de Cícero Antonio Cattani, existe um quadro síntese que significa muito. Ele é apresentado como resumo, sim, um resumo de todo o livro. Por ele são sintetizados os quatro capítulos do pequeno livro: riqueza desmedida; a riqueza mistificada ou a construção de sua legitimidade; a riqueza como problema e, é possível mudar. Já fiz um post referente ao livro.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/04/ricos-podres-de-ricos-antonio-david.html

Capa do livro com a ilustração de Edgar Vasques

Assim vamos de imediato ao que o autor denomina como:

Resumo 

Ricos                                                                               Não Ricos.

Privilégios acumulados                                            Desvantagens cumulativas

Impunidade                                                               Rigor da lei

Regalias tributárias                                                   Peso dos impostos

0,1 a 3% sobre os rendimentos                                 30 a 40% sobre rendimentos

Isenções -elisão fiscal                                               Impostos inevitáveis sobre luz, água,
sonegação                                                                  alimentos e rendimentos do trabalho
Uso de paraísos fiscais

Qualidade de vida                                                      Precariedade e incertezas

Consumo desmedido                                                 Insegurança alimentar, profissional

Melhores escolas                                                       Educação deficiente

Serviços de saúde qualificados                                  Acesso limitado à saúde 


Precisa mais? Meu Deus como é real este quadro. Vale muito a pena a leitura do livro. Recomendo muito.