sexta-feira, 25 de maio de 2018

O livro de Jô. Uma autobiografia desautorizada.

Um livro simplesmente maravilhoso. Um livro leve, de entretenimento, mas com muita informação e, também, de formação e, ainda, de muita sensibilidade. Trata-se de O livro de Jô - uma autobiografia desautorizada - Volume 1, de Jô Soares, em colaboração com Matinas Suzuki. Este deve ter ajudado na redação do livro. O livro é editado pela Companhia das Letras, datado de 2017, com a apresentação de José Eugênio Soares, o Jô, por Millôr Fernandes, com texto de 1983.
O maravilhoso livro de Jô Soares. Suas memórias desautorizadas.

Na contracapa do livro temos a seguinte referência: "Em O livro de Jô, suas aguardadas memórias (desautorizadas!), um de nossos maiores atores, comediantes, diretores, entrevistadores e contadores de casos se revela em todas as suas dimensões pessoais e artísticas. Neste primeiro volume, Jô, além de resgatar fatos, lugares e pessoas marcantes de sua juventude, e de reconstituir os primeiros passos no mundo dos espetáculos, nas décadas de 1950 e 1960, conta histórias maravilhosas dos principais personagens com os quais conviveu. Entre a infância dourada no Copacabana Palace e a dura conquista do estrelato - conjugando universos que raramente fazem parte de uma mesma existência -, o livro descortina os bastidores de sua vida com humor e inteligência irresistíveis".

Na apresentação dos "Dados Internacionais de Catalogação na Publicação" (CIP), lemos - I. Apresentadores (Teatro, televisão etc) - Brasil - Biografia. Estão dadas as dicas sobre o conteúdo do livro. O tempo memorizado é o dos anos, 1950 e 1960, como já vimos, pela referência da contracapa. Para uma melhor localização ainda, Jô Soares nasceu em 1938, em berço, absolutamente esplêndido. Assim também foi a sua infância e anos de juventude, viajando pelo mundo e estudando nos melhores colégios do Brasil e do mundo, com passagem pela Suíça, onde teve como colegas os filhos dos maiores magnatas mundiais. Depois vieram as vacas magras. Mas a formação inicial estava assegurada em bases sólidas.

O livro tem 11 capítulos, distribuídos ao longo de 477 páginas e mais três álbuns de fotografias. E isso, porque se trata apenas do primeiro volume sobre duas décadas de sua intensa vida, as dos anos 1950 e 1960. No primeiro capítulo ele apresenta, o que ele chama, de sua predestinação para o teatro, com cenas de Paris e do Copacabana Palace. O segundo capítulo é dedicado ao seu nascimento, no mesmo dia em que no Carnegie Hall, acontecia um espetáculo de jazz, isso no ano de 1938. No capítulo descreve também o pai e mãe e relembra cenas da infância, buscando nas memórias mais profundas, algumas lembranças dos anos 1940, anos de Vargas e do Estado Novo.

O terceiro capítulo é dedicado à infância e, nas anotações do meu caderno, sobre o capítulo, a maior importância recai sobre o tio Kanela, o do basquete, que o influenciou no gosto pelo esporte. No momento em que escrevo este post, li que o Jô fechou contrato para mais uma cobertura de Copa do Mundo, neste 2018, a copa que se realizará na Rússia. Coberturas, ou presenças, em jogos de copa, fazem parte das memórias, inclusive, as tristes lembranças de 1950 no Maracanã, quando o Brasil perdeu para a seleção uruguaia.

No quarto capítulo continua a apresentação de sua família, os tios e tias, a sua alfabetização e os estudos nos Colégio São Bento e no internato São José, em Petrópolis. Creio que, internato não é bom para ninguém e Jô não guarda boas recordações deste tempo. Estes são também os tempos de iniciação ao cinema e na arte de representar. No quinto capítulo conta um pouco de sua doce vida no Copacabana Palace, onde os pais moravam, no seu anexo residencial. Retrata um pouco do que foi o governo Dutra e chega até o fatídico jogo da copa de 1950. Na página 93, última deste capítulo, relata o preconceito de racismo latente na sociedade brasileira, com relação ao goleiro Barbosa, acusado de ter culpa no segundo gol uruguaio. Jô o entrevistou em um programa seu, apresentado em 1998, no Jô Soares Onze e Meia, no SBT. Vejamos: "Barbosa talvez tenha sofrido a maior injustiça que o Brasil fez com um de seus filhos: foi acusado de ser o responsável pela nossa derrota com os uruguaios. Como somos um país que esconde o seu racismo, depois daquela final passou-se a ter nos meios futebolísticos a superstição, nunca dita abertamente, de que goleiro negro não dava sorte". O horror de sempre, de nossas elites brancas. Não se tratava apenas de vira latas, termo consagrado por Nelson Rodrigues.

A partir do sexto, os capítulos passam a ser mais longos. Neste sexto, retrata a ida para Nova York, onde passa a ter os seus primeiros contatos com a publicidade e a televisão e, para horror seu, com o Macarthismo e a intolerância. Depois de um período em Nova York o seu paraíso se estende para um novo internamento em colégio, desta vez na Suíça, mas já com quarto individual e um ambiente altamente intelectual. Se familiariza com literatura, línguas e viagens. Recorda as visitas da mãe, com quem sempre se encontrava em Paris. Quando se preparava para prestar vestibular nas universidades inglesas, volta o Rio de Janeiro, em virtude de abalos financeiros em família.

Mesmo com as finanças arruinadas, na volta ao Brasil, a família continua no Copacabana, do qual ele conta os bastidores, no sétimo capítulo. Fala das celebridades e de seus atrevimentos para com elas. Por elas passa a ser conhecido como o "Joe", Bangô. O oitavo capítulo continua com a convivência com os artistas, de suas incursões no mundo do teatro, fala de Paulo Francis, que, como crítico de teatro, é apresentado como meio destrutivo. É o tempo de definições em sua vida e profissão. Casa-se e muda para São Paulo, agora com o nome que o acompanha até hoje - JÔ.

Seguem os três capítulos mais densos. No nono, ele já está em São Paulo, com 22 anos, precisando ganhar a vida. Mostra os bastidores do mundo da TV, os acordos salariais para baixo, combinadas entre as grandes emissoras. que agiam em conluio.  As principais emissoras eram a Record e Excelsior. Além do espírito pioneiro destas, mostra também o arruinamento financeiro dos proprietários da TV Excelsior, a família Simonsen (Os descendentes de Roberto Simonsen - ex presidente da FIESP e articulador da política econômica de Vargas), a partir do golpe de 1964. No capítulo dez já mostra a ascensão da Globo, com o golpe de 1964 e a tendência de unificação das programações pela possibilidade de transmissão em Rede. Para isso se tornar possível houve a atuação do Estado, através da EMBRATEL. Fala também dos principais programas, dando forte ênfase à Família Trapo.

Mas. disparadamente, o capítulo 11 é o mais significativo, bonito e emotivo. Pessoas com maior sensibilidade, certamente, chegarão às lágrimas. Destacaria três temas. O encontro com o taxista que atropelou a sua mãe, fato que a levou à morte; o medo sob a ditadura militar e a preocupação em alertar os jovens para o erro que seria a sua repetição, e o terceiro, que é a relação com o filho Rafael, autista, que morre aos 51 anos de idade. Da ditadura, eu escolhi um parágrafo em que recorda uma cena com Mário Schenberg, que era físico e de quem era amigo: "Penso em quanto a física brasileira, historicamente necessitada de apoio, pode ter sido prejudicada em seu desenvolvimento pelo fato de Mário Schenberg não poder trabalhar. O prejuízo que a ditadura causou ao país com as perseguições aos cientistas de esquerda é incalculável. Quando ouço, hoje em dia, jovens falando na volta dos militares ao poder, fico pensando como seria importante esclarecê-los sobre as consequências amplas e profundas de uma vida sob o tacão ditatorial. O país retrocede não só nos direitos da cidadania, mas também no conhecimento, na inovação, na cultura e no avanço científico." Página 422.

Quanto ao filho, Jô chegou a ser acusado de tê-lo ocultado, em virtude de seu autismo, mas isso é contestado por depoimentos dos quais eu destaco um de Nilton Travesso e outro de Luiz Fernando Vianna. Vamos ao de Travesso: "A maneira como o Jô protegeu o Rafael eu chamo coisa de Deus. Eu entrei um dia no quarto do Rafael, um quarto azulado, tocava Haydin e o Rafael dormia. Eu guardei o retrato daquele momento para o resto da minha vida. Eu quase chorei quando eu vi o jeito que o Jô cuidava, guardava, protegia seu filho. Poucas pessoas entenderão o que era o interior do Jô Soares, a alma dele, o comportamento dele, a dedicação que ele teve ao Rafael". E o do Luiz Fernando Vianna: "Há alguns anos lia-se na internet que o Jô escondia seu filho autista. Mentira. Ele levava Rafael ao clube, às ruas, mostrou-o na imprensa". Havia ainda poucos conhecimentos sobre a doença, mas pelo que eu entendi, o autista prefere uma vida mais interior.

Termino com uma referência à morte de seu pai, em consequência do cigarro, que eu não considero moralista nem piegas, mas uma advertência significativa: "O cigarro e a ausência de mamãe o levaram. Minha mãe sofreu muito as consequências do cigarro, meu pai sofreu muito as consequências do cigarro. É um vício diabólico. O Max Nunes me dizia ter visto, num hospital público, um paciente com a mesma doença de mamãe, provocada pelo tabagismo. O cara já tinha as pernas e um braço amputados, mas estava com um cigarro na boca".

Escolho ainda mais uma passagem, especialmente, por ser divertida e mostrar muita burrice. É sobre a prisão de Mário Schenberg, em 1964. "Na invasão da casa dele, logo depois do golpe, um dos delegados que comandaram a ação começou a olhar a sua valiosa biblioteca. Pegava os livros, dava uma olhada, depois os jogava no chão. Aí ele tirou da prateleira "Os Diálogos", de Platão. Folheou com ar de quem tinha achado um documento importante e falou em tom severo para o Mário.
-E isso aqui?
-É "Diálogos", de Platão.
E o delegado:
-Sim, mas diálogos de Platão com quem?
O Mário se segurou para não rir.
-Este livro é subversivo. O senhor não é professor? Então isso o senhor vai nos revelar: com quem foram estes diálogos e qual era o assunto!" Página 421.


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