quinta-feira, 27 de abril de 2017

Como votou a bancada paranaense para o fim da CLT.

Mais uma vez, para ficar registrado na história. Veja os deputados que retrocederam ao período posterior a 1943, quando foi instituída a CLT pelo presidente Getúlio Vargas. São 20 deputados que sistematicamente votam contra o interesse dos trabalhadores. Mas nem todos os que votaram contra o fim da CLT são confiáveis. Alguns tiveram permissão para votarem NÃO como foi o caso do delegado, de Luciano Ducci e Leopoldo Meyer, que são da base do golpista Temer. A lista não é muito diferente daquela em que votaram em favor da terceirização total. Confira a lista. Minha fonte é o Congresso em Foco.

O item mais importante é o que estabelece o princípio do acordado sobre o legislado, o que anula toda a legislação. Os governistas argumentaram em seu favor com o hilário princípio de que isso geraria empregos. Não sabem eles que o emprego é gerado por fatores econômicos, por políticas de industrialização e de distribuição de renda. O que fizeram foi aderir ao jogo internacional da passagem de uma regulação de trabalho fordista para uma regulação competitiva.  Votaram junto com o governo do golpista Temer, que tem menos de 5% de aprovação popular. É a anti representação popular.

Paraná (PR)

Alex Canziani PTB Sim
Alfredo Kaefer PSL Sim
Aliel Machado REDE Não
Assis do Couto PDT Não
Christiane de Souza Yared PR Não
Delegado Francischini Solidaried Não
Dilceu Sperafico PP Sim
Edmar Arruda PSD Sim
Enio Verri PT Não
Evandro Roman PSD Sim
Giacobo PR Sim
João Arruda PMDB Sim
Leandre PV Sim
Leopoldo Meyer PSB Não
Luciano Ducci PSB Não
Luiz Carlos Hauly PSDB Sim
Luiz Nishimori PR Sim
Nelson Meurer PP Sim
Nelson Padovani PSDB Sim
Osmar Bertoldi DEM Sim
Reinhold Stephanes PSD Sim
Rocha Loures PMDB Sim
Rubens Bueno PPS Sim
Sandro Alex PSD Sim
Sergio Souza PMDB Sim
Takayama PSC Sim
Toninho Wandscheer PROS Sim
Total Paraná: 27


Fonte Congresso em Foco. Estiveram ausentes ou não votaram:
Diego Garcia PHS
Hermes Parcianello PMDB
Zeca Dirceu PT.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Democracia - capitalismo, colonialismo e patriarcado. Boaventura Sousa Santos.

A difícil democracia - reinventar as esquerdas é um livro fundamental para quem quiser efetivamente discutir a difícil democracia nos dias de hoje. Dias de absoluto domínio da ideologia neoliberal e da mudança de conceitos de territorialidade - desterritorialidade, de países ou de nações, para se chegar ao chamado mercado mundial globalizado. Se o Estado, até certo ponto, era um antídoto aos males do liberalismo econômico, o liberalismo político, pela ação do Estado, procurava mitigar, ao menos um pouco, os seus efeitos sociais perversos. O neoliberalismo é a mais anti social de todas a ideologias.
 Livro imprescindível para a democratização do espaço das relações humanas.

Neste livro Boaventura Sousa Santos trabalha com os conceitos de democracia de baixa e alta intensidade. A democracia de baixa intensidade é a democracia liberal, representativa, formal e cujo principal componente é o fenômeno das eleições. Marx designava o poder decorrente desta democracia liberal como a trincheira da defesa dos interesses burgueses. É uma democracia estática, que odeia e abomina a participação e qualquer movimento ascensional nas bases da sociedade.

Sob esta democracia representativa o atual poder mundial institui o que o autor chama de "fascismo social", isto é, um sistema que aboliu todos os direitos ligados ao trabalho e à seguridade social, assim como o estamos vendo no Brasil após o golpe de 2016. Este fenômeno ocorre, mesmo sob a aparência da normalidade democrática, de baixa intensidade. Este poder mundial está associado ao capital financeiro, que para continuar com a finalidade primeira do capitalismo, isto é, a acumulação, precisa destruir direitos para continuar atingindo os seus perversos intentos. É um tempo em que se soma a ideologia política com os interesses econômicos das minorias. É um tempo em que pretendem transformar a dominação em hegemonia, para que os pobres se sintam como os culpados pela sua própria pobreza.

Estes são os difíceis tempos para a democracia, a qual se refere o título, ao mesmo tempo que procura alternativas democráticas para às esquerdas, como sugere a segunda parte do título. Diante desta difícil democracia o sociólogo português propõe a radicalização da democracia, a democratização da própria democracia e transformá-la numa democracia representativa, de alta intensidade. Muitos outros espaços, para além da política, precisam ser atingidos.

Esta alta intensidade implicaria em transformar radicalmente as esferas de seis diferentes espaços e tempos sob os quais está estruturada a nossa sociedade e nos quais ocorrem as relações de poder desiguais. Para ser totalmente fiel ao texto, recorro à transcrição. "No espaço-tempo doméstico, a forma de poder é o patriarcado ou relações sociais de sexo; no espaço-tempo da produção, a forma de poder é a exploração centrada na relação capital/trabalho; no espaço-tempo comunidade, a forma de poder é a diferenciação desigual, ou seja, os processos pelas quais as comunidades definem quem pertence e quem não pertence e se arrogam o direito de tratar desigualmente quem não pertence; no espaço-tempo do mercado, a forma de poder é o fetiche das mercadorias, ou seja, o modo como os objetos assumem vida própria e controlam a subjetividade dos sujeitos (alienação); no espaço-tempo da cidadania, a forma de poder é a dominação, ou seja, a desigualdade no acesso à decisão política e no controle dos decisores políticos; e, finalmente, no espaço-tempo mundial, a forma de poder é troca desigual, ou seja, a desigualdade nos termos de troca internacionais, tanto econômicas como políticas e militares". (Página136-7. É possível vislumbrar este quadro das relações?

Boaventura volta ao tema no epílogo do livro, epílogo que propõe, seja lido apenas em 2050. Refletindo então, sobre o passado, encontramos o seguinte: "Operavam três poderes em simultâneo, nenhum deles democrático: capitalismo, colonialismo e patriarcado; servidos por vários subpoderes, religiosos, midiáticos, geracionais, étnico-culturais, regionais. Curiosamente, não sendo nenhum democrático, eram o sustentáculo da democracia realmente existente".

Refleti um pouco sobre estas três palavras-conceito, capitalismo, colonialismo e patriarcado. Expus as três palavras a uma pessoa praticamente analfabeta, destas coisas que ainda acontecem no Brasil. Por coincidência, também era negra. Lhe perguntei se as relações, com as quais ele se entrelaça na sociedade, eram autoritárias ou democráticas  e se elas, em consequência, geravam justiça e igualdade, ou injustiça e desigualdade. Explicitei mais, perguntando: como se dão as suas relações de trabalho (capitalismo); como se dão as suas relações étnico-raciais, (colonialismo) e como se dão as suas relações domésticas e familiares (patriarcado)? A resposta foi batata. Pratica o autoritarismo quando pode, mas na maioria das vezes é a sua vítima. Aliás, nem precisava recorrer a este exemplo. Basta olhar para nós mesmos. Vivemos numa sociedade extremamente autoritária, desigual e injusta. Coisas da cultura.

Realmente a missão das esquerdas é difícil. A difícil democracia e a reinvenção das esquerdas. É preciso um enorme esforço teórico para ler corretamente o mundo e um esforço prático, que envolve enorme soma de esforços para que a indiferença e o medo não suplantem as esperanças. As esperanças passam por um mundo de enormes desafios.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

O que é ser de Direita ou ser de Esquerda? Boaventura Sousa Santos.

Neste post não pretendo nem polêmica, nem contextualização histórica. Ele tem por finalidade única, apresentar os conceitos trabalhados por Boaventura Sousa Santos em seu livro A difícil democracia - reinventar as esquerdas. O livro é uma edição da Boitempo, de 2016. É um livro poderoso, de estudioso que investiga os movimentos e contra movimentos da democracia ao longo do século XX e das primeiras décadas do século XXI.
Aqui você encontrará as definições do que é ser de direita ou de esquerda.

O livro é uma espécie de nova gramática ou um novo dicionário para a democracia com o uso de novas terminologias, necessárias para definir a realidade de um mundo globalizado, sob o domínio da ideologia neoliberal, sob a égide total da voracidade do capital financeiro. É um remapeamento dentro da dialética da territorialização - desterritorialização, repleto de tensões. Seu resultado é o que  vemos em curso, a existência de um "fascismo social", com a destruição de tudo o que possa proporcionar cidadania, em nome da "eficiência" e da voracidade da acumulação capitalista, sem precedentes. O neoliberalismo é o mais anti social de todas as ideologias que já existiram. Em nome da austeridade pratica-se um verdadeiro austericídio. Salvação mesmo, só num futuro indeterminado, pois, resta-nos apenas o tempo presente.

Vejamos um pequeno trecho do epílogo do livro, recomendado para ser lido apenas em 2050;  "... Por isso, as paisagens converteram-se em pacotes turísticos e as fontes e as nascentes tomaram a forma de garrafa. Mudaram os nomes às coisas para as coisas se esquecerem do que eram. Assim desigualdade passou a chamar-se mérito; miséria, austeridade; hipocrisia, direitos humanos; guerra civil descontrolada, intervenção humanitária; guerra civil mitigada, democracia. A própria guerra passou a chamar-se paz para poder ser infinita. Também Guernica passou a ser apenas um quadro de Picasso para não estorvar o futuro do eterno presente. Foi uma época que começou com uma catástrofe, mas que logo conseguiu transformar catástrofes em entretenimento. Quando uma catástrofe a sério sobreveio, parecia apenas  uma nova série".

E ainda por cima procuram transformar as vítimas em culpados, como nos advertia Malcom X, o revolucionário sem medo: "Se não tiverdes cuidado, os jornais convencer-vos-ão de que a culpa dos problemas sociais é dos oprimidos, não de quem os oprime"?  Isso porque, voltando a Boaventura, "A opinião pública passou a ser igual à privada de quem tinha poder para publicá-la". Mas vamos aos conceitos. 

Começamos pelo de direita. "Entendo por direita o conjunto das forças sociais, econômicas e políticas que se identificam com os desígnios globais do capitalismo neoliberal e com o que isso implica, no nível das políticas nacionais, em termos de agravamento das desigualdades sociais, da destruição do Estado social, do controle dos meios de comunicação e do estreitamento da pluralidade do espectro político". E continua.

São os que aceitam a "prioridade da lógica do mercado na regulação não só da economia como da sociedade em seu conjunto; privatização da economia e liberalização do comércio internacional; diabolização do Estado enquanto regulador da economia e promotor de políticas sociais; concentração da regulação econômica global em duas instituições multilaterais, ambas dominadas pelo capitalismo euro-norte-americano (o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) em detrimento das agências da ONU que antes supervisionavam a situação global; desregulação dos mercados financeiros; substituição da regulação econômica estatal (hard law) pela autoregulação controlada por empresas multinacionais (soft law)".  Pretendem transformar "a dominação em hegemonia, ou seja, fazer com que mesmo os grupos sociais prejudicados por esse modelo fossem levados a pensar que era o melhor para eles". Se identificou? (Páginas 112-3).

Vamos então para o conceito de esquerda. "Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade. A essa sociedade alternativa foi dado o nome genérico de socialismo". Encontramos esta primeira definição à página 74.

Na página 144, após repetir a definição, ele avança no sentido de provocar uma discussão em torno do que seria o socialismo. "Falar do socialismo do século XXI significa falar do que existiu e do que ainda existe como se fossem partes da mesma entidade. Não estou tão certo de que essa seja a melhor maneira de imaginar o futuro, embora ache que a análise crítica e desapaixonada do socialismo do século XX, apesar de urgente, ainda não tenha sido feita e provavelmente ainda não pode ser feita".

Já na página 173, Boaventura começa uma série de cartas dirigidas às esquerdas, nas quais começa por uma definição do que elas sejam. vejamos; "A esquerda é um conjunto de posições políticas que partilham o ideia de que os humanos  têm todos o mesmo valor e são o valor mais alto. Esse ideal é posto em causa sempre que há relações sociais de poder desigual, isto é de dominação". Continua a sua análise afirmando que o capitalismo é a mais importante das fontes deste poder de dominação. Outra ideia muito presente no livro é a da radicalização da democracia, da democracia de alta intensidade e dos espaços que esta deve ocupar. A radicalização da democracia e o princípio de democratizar a democracia é outra característica das esquerdas. mas a este tema dedicaremos um novo post. Conseguiu a sua identificação? Objetivo cumprido.


sábado, 22 de abril de 2017

A difícil democracia. Reiventar as esquerdas. Boaventura Sousa Santos.

Em rápido encontro com o deputado Tadeu Veneri, trocamos algumas leituras. Uma de suas indicações foi este de Boaventura Sousa Santos, A difícil democracia - reinventar as esquerdas. O livro do respeitado sociólogo português data de 2016, mas no livro são compilados textos, entrevistas e cartas, mais antigos.  Uma publicação da Boitempo. Grato pela indicação. Pela complexidade do livro não é fácil elaborar uma resenha. Mas vejamos.
Leitura obrigatória para tod@s os que se afirmam democratas de alta intensidade.


Certamente o escrito por Frei Betto, na orelha do livro, nos serve de guia. Depois de afirmar que o livro lança um olhar sobre o mundo pela ótica dos oprimidos e de que a democracia vive em grave crise, ele faz a interrogação fundamental que paira sobre a democracia no mundo de hoje. Será ela possível sob o império do capital financeiro? Afirma ainda que a democracia, para se consolidar, precisa ir para muito além do mundo político. É por estas questões que o sociólogo português procura respostas em suas investigações. Este é o livro.

Antes de entrar na resenha propriamente dita, deixo aqui também as minhas impressões preliminares. A democracia representativa, formal e restrita a eleições, muito pouco representa para a própria democracia nos tempos de hoje. É necessário retomar o conceito de democracia participativa, já afirmada por Rousseau, de que o povo é soberano e que ela necessariamente deve rumar para a igualdade, a tal ponto que não haja ninguém tão rico para que possa comprar alguém. No entanto, as formas de compra, nos dias de hoje, se multiplicam extraordinariamente. Também é forte e perpassa todo o livro, a constatação de Frei Betto sobre a insuficiência da democracia liberal, uma democracia de baixa intensidade. Para se viver efetivamente numa sociedade democrática é necessária a busca por outros espaços que vão para além da política e atingir todas as esferas das relações humanas, marcadas fortemente por relações desiguais e injustas de poder. Será necessário se exercitar numa democracia de forte intensidade e democratizar a própria democracia.

Embora o livro seja uma publicação de 2016, nem todos os textos são recentes, embora todos sejam extremamente atuais. Ele se divide em quatro partes. Parte I. Revolução e transformação do Estado. Esta parte é formada por um único texto, que é também o mais longo. Tem por título: O Estado e a sociedade na semiperiferia do sistema mundial: a Revolução dos cravos - Portugal, 1974).  O texto é de 1990. 

O vigoroso texto começa pela análise da saída de Portugal de seu longo regime ditatorial e de todos os atrasos a ele relacionados. Mostra as diferentes opções políticas tomadas, em que sempre prevaleceu, o que poderíamos caracterizar como modernização conservadora ou de adaptação aos tempos neoliberais. Passa ainda pela integração à União Europeia e pelas implicações sociais deste processo. Chama muito a atenção a passagem das relações sociais no trabalho, que passaram de uma regulação fordista para uma regulação, ou melhor, desregulação competitiva em um mundo que se transformou em um único mercado. Interessantes são também as análises sobre a dialética entre territorialização e desterritorialização provocadas por este mercado. Na leitura deste capítulo parece que você está lendo sobre a desregulamentação das proteções trabalhistas e previdenciárias no Brasil, depois do golpe de 2016.

A parte II do livro recebe como título geral As marcas do tempo. É formado por dois textos. O primeiro, Por que Cuba se transformou num problema difícil para a esquerda? Nele o autor comenta sobre o caráter peculiar da democracia cubana, as suas enormes dificuldades, passando pela análise dos tempos mais difíceis, fortemente influenciados pela conjuntura internacional e as suas reinvenções para a sua sobrevivência. Liderança carismática e construção de hegemonia são também questões abordadas.

O segundo texto tem por nome Comentários com data. São oito comentários sobre a política mundial, datados entre 2012 e 2015. O foco é a atuação do capitalismo financeiro internacional e as reações a ele, como as ocorridas na América Latina e as graves tensões internacionais que que envolvem os Estados Unidos e a Rússia, com foco na Ucrânia (Hoje seria a Síria). Há espaço ainda para a questão dos conflitos étnico religiosos e os fundamentalismos decorrentes. São sábias aulas para os cursos dedicados à política, geopolítica e relações internacionais, além da militância, é claro.

A parte III tem por título geral o bordão - Democratizar a democracia. É formado por dois textos. O primeiro, politizar a política e democratizar a democracia. Parte da existência dos conceitos de democracia representativa e participativa, da evolução histórica de sua formatação, de seus inimigos ao longo do século XX, quais sejam, o fascismo e o comunismo, chegando até a sua crise atual marcada pelo neoliberalismo, a mais anti social das ideologias que já existiram. Como antídoto propõe a radicalização e a democratização da própria democracia, marcada pelo avanço por seis espaços, em que uma democracia de alta intensidade deverá ser implantada. Como isto merecerá um post especial, me reservo o direito de, neste momento, apenas enunciá-los. São o espaço-tempo doméstico; da produção; da comunidade; do mercado; da cidadania e das relações mundiais. Talvez seja a parte do livro que mais motivou a sua publicação.

O segundo texto, Democracia, populismo e insurgência passa pela conceituação dos termos para se concentrar na insurgência. O neoliberalismo precisa de respostas e enfrentamentos. Como o neoliberalismo é incompatível com a democracia, por ser anti social, ele procura construir hegemonia, tornando necessária e até simpática a ideia da perda de direitos sociais fundamentais, fenômeno que o sociólogo denomina de "fascismo social". Este fascismo social, um verdadeiro austericídio, precisa ser combatido nos seis espaços já apontados, ou seja, pela prática de uma política de alta intensidade.

A parte IV é destinada a Reinventar as esquerdas. Nela não há um texto, mas Cartas às esquerdas. São 13 cartas que terminam num manifesto incompleto. Nelas, praticamente, todo o teor do livro é retomado. É um apelo à unidade, que começa por uma boa leitura do perverso, anti social e anti igualitário mundo existente, pois, a democracia é fundamentalmente luta por igualdade e justiça nas relações. Eu destacaria aqui quatro destas cartas. A de número 4, Colonialismo, democracia e esquerdas, a de número 10, Democracia ou capitalismo, a de número 12, Ecologia ou extrativismo e a de número 13, que é o Manifesto Incompleto. Nele existem três conceitos que também merecerão um post à parte. São um teste para ver se você é ou não é democrático ao examinar as suas posições frente ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado.

O livro termina com um epílogo de quatro páginas. Somente por estas quatro páginas o livro já mereceria ser comparado e lido. Ele tem uma espécie de título. Para ler em 2050: Uma reflexão sobre a utopia ou sobre a sociologia das ausências das esquerdas. O conceito de esquerdas e de direita também merecerão um post especial. Vejam, o plural e o singular são intencionais. Livro obrigatório para todos os verdadeiramente democratas das mais diferentes áreas de militância.








quarta-feira, 19 de abril de 2017

O pai não é mais deputado. Carta de Rubens Paiva para os filhos.

Ainda estou aqui é um belo livro de Marcelo Rubens Paiva, lançado em 2015. O foco do livro são as memórias do escritor sobre os tristes acontecimentos que envolveram seu pai com o regime militar, como a cassação de seu mandato em 1964 e o seu desaparecimento, após prisão e tortura até a morte, nos quartéis do Rio de Janeiro. Mas o foco principal é a luta de sua mãe para a obtenção da verdade e do atestado de óbito e o seu fazer-se uma profissional do direito após o assassinato do marido, aos 41 anos e assumir o comando da família.
A partir da mãe, Eunice Paiva, é recordado o episódio da tortura, morte e desaparecimento do pai, Rubens Paiva pelo regime militar.


Deve ser o livro que melhor relata as mentiras que começaram a ser produzidas em 20 de janeiro de 1971, feriado de São Sebastião, a data de sua prisão. Com o tempo tudo foi desvendado: os motivos da prisão, a versão de sua fuga, o nome dos torturadores assassinos e para onde levaram o corpo, este nunca encontrado. O óbito foi obtido em 1995. A luta de Eunice Paiva é realmente uma bela e exemplar história. A sua dedicação à causa indígena a torna uma pessoa com méritos perenes. Ao final, já aos 77 anos é acometida pelo mal de Alzheimer. O tema é abordado com muito cuidado e ternura. Eunice Paiva ainda está viva, devendo contar com 87 anos.

Mas o objetivo deste post é a de explicar o que foi a ditadura civil-militar, instituída com o golpe de Estado de 1964. Rubens Beyrodt Paiva era deputado federal pela combativa legenda do PTB. Ele teve o mandato cassado já em 1964 e partiu para o exílio, primeiramente na Iugoslávia e depois em Paris. Em um voo de Paris para Montevidéu, com escala no Rio de Janeiro, desceu no Rio e como ninguém implicou com a sua saída, ali permaneceu. Anos depois ocorreu o triste incidente de sua tortura, morte e desaparecimento. 

A cartinha foi escrita, ainda em Brasília, quando estava refugiado na embaixada da Iugoslávia.  Era uma justificativa para suas 4 filhas e para o filho das razões da cassação de seu mandato e do seu exílio. A carta é bem simples e revela todo o carinho de um pai de 35 anos de idade para com a sua família. Era uma defesa que os filhos poderiam usar quando sofressem acusações por parte de coleguinhas na escola e em outros ambientes. Começa  nominando os apelidos das crianças. Vou transcrevê-la na íntegra:

"Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Recebi suas cartinhas, desenhos etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: É mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram - o nome deles é gorila - e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos do que ele fez".

Está aí límpido e claro, o que foi o golpe e porque ele ocorreu. E a enorme esperança fundada na fé de que ele estava certo. É triste vermos a repetição dos fatos. Se não existe violência física neste golpe que vivemos nos dias atuais, os objetivos dos golpistas são absolutamente os mesmos. Impedir a realização da justiça social e da vida com cidadania em nosso país. Uma carta que Marcelo Rubens Paiva guarda com muito carinho entre os seus documentos pessoais.

Deixo a referência do livro donde transcrevi a carta. Lê-lo é um antídoto para que fatos semelhantes não se repitam. Recomendo aos colegas professores para a leitura junto com os seus alunos. PAIVA,  Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro. Alfaguara. 2015. Extraído das páginas 101-102.

terça-feira, 18 de abril de 2017

Ainda estou aqui. Marcelo Rubens Paiva.

Conheci Marcelo Rubens Paiva pelo seu livro Feliz Ano Velho. O li, assim que foi publicado. O foco do livro foi o seu acidente, que o deixou tetraplégico. Conhecia razoavelmente a história do seu pai, o bravo deputado do PTB, Rubens Beyrodt Paiva, cassado pela ditadura militar, ainda em 1964, e dado como desaparecido em 1971. Na verdade, morreu sob forte tortura, que lhe provocou hemorragias internas. Nada sabia de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo Rubens.
A partir da mãe, Eunice Paiva, as memórias da família.

Esta semana tive com ele um reencontro através do Ainda estou aqui, o seu mais recente livro, lançado em 2015. Ganhei o livro de presente do meu filho Iuri, que entrou em contato com ele através de um clube de leitura que ele tem com seus colegas de trabalho. Foi um reencontro muito agradável, pois Marcelo Rubens é efetivamente um grande escritor. Foi também um reencontro triste, pela realidade retratada. Também sempre manifesto a minha preferência por biografias e livros de memória.

Em Ainda estou aqui, Marcelo Rubens privilegia dois temas que são o fio condutor do livro. O seu pai e a sua mãe. Do pai conta tudo sobre o seu desaparecimento e a longa luta pela obtenção do atestado de óbito. De sua mãe nos conta como Eunice Paiva refez a sua pacata vida de dona de casa de classe média alta, que aos 41 anos se tornou viúva de um marido dado como desaparecido. Corajosamente tomou a frente da família, formando-se em direito, tornou se advogada de prestígio, com dedicação especial à causa da defesa indígena. Com a vida refeita, lhe sobrevém o mal de Alzheimer.

O livro está dividido em três partes, tendo a primeira cinco capítulos e a segunda e a terceira, seis. Os capítulos recebem títulos. Os capítulos da primeira parte tem os seguintes títulos: 1. Onde é aqui. Fala de sua mãe, advogada e a sua interdição, aos 77 anos, pela doença de Alzheimer. 2. A água que não era mais do mar. Aqui são relatadas as memórias de sua infância e os episódios de 1971, o ano do desaparecimento de seu pai e, ainda, a obtenção do seu atestado de óbito em 1995. 3. Blá-blá-blá. Continua relatando as memórias de infância e sobre o encontro das famílias de seus pais. Moravam em uma fazenda na cidade de Eldorado, em São Paulo. Toca na questão da doença da mãe, quando para ela, as conversas se transformaram em blá-blá-blá. 4. Cometas da memória. Se dedica especialmente à memória da família, uma família tipicamente burguesa, de alta classe média. Fala da mudança para o Rio de Janeiro, da morte do pai e, a mãe refazendo a sua vida, em Santos, a cidade de origem. 5. Mãe protocolo. Este capítulo é dedicado à mãe, agora já em São Paulo, concluindo o curso de direito e se dedicando ao ofício da advocacia. Conta ainda de seus tempos de vida estudantil e relembra o seu triste acidente de 1979.

A segunda parte tem seis capítulos. 1. Merda de ditadura. Busca as memórias do golpe militar, a cassação do mandato de seu pai, a fuga para o exílio e a sua volta, para então ocorrer o seu desaparecimento em 1971. 2. É a peste, Augustin - Perdão, tenho que morrer. O capítulo versa sobre a tortura dos militares e torturas policiais, com foco, obviamente, em seu pai. 3. O telefone tocou. No feriado de 20 de janeiro o exército vem prender o seu pai. 4. Doze dias. Relata a espera da volta do pai, que nunca chega e também a prisão da mãe e da irmã. A mãe ficou presa por 12 dias, a irmã foi solta no dia seguinte. 5. Ou, ou, ou, ou, ou. É sobre o assassinato do pai e a versão oficial da fuga. A morte "em guerra". 6. O sacrifício. Aqui são relatados os motivos da prisão, sendo o principal a interceptação de uma carta vinda do Chile, para onde tinham ido as pessoas trocadas pelo embaixador suíço.

A terceira parte tem mais seis capítulos. 1. Depois do luto. Conta sobre a mãe que assume as tarefas do comando da família, a sua ida para Santos e São Paulo e o exercício da profissão de advogada. Fala ainda de sua vida estudantil, e das dificuldades na escolha da profissão. 2. Você lembra de mim? Dois temas principais são abordados, os desaparecimentos após prisões e tortura e a luta da mãe por justiça. A chegada  da doença de Alzheimer também recebe uma abordagem. 3. Já falei do suflê? Todo o foco deste capítulo é a mãe. A sua dedicação ao direito e a nobre questão da defesa dos povos indígenas e, a sua especialidade na cozinha, o suflê. 4. O choro final. Este capítulo é especial, dedicado ao desvendamento dos mistérios que envolveram a morte do pai, o nome dos assassinos, a obtenção do óbito e o seu mestrado com foco em seu pai. 5. O alemão impronunciável. O foco está no alemão impronunciável, ou seja, o mal de Alzheimer. A aposentadoria da mãe aos 70 anos também é relatada, assim como a chegada da doença, em sua primeira fase. 6. O que estou fazendo aqui. É sobre o avanço da doença, aos seus estágios dois e três e a brava resistência. Por ocasião da conclusão do livro, em 2015, contava com 85 anos de brava resistência.

Em suma, um grande livro. Evidentemente que o foco principal é a luta da mãe para por a limpo a história do seu marido. Uma luta sem tréguas. Tudo foi desvendado, o nome dos assassinos, a causa da prisão, a falsidade da versão oficial e o fato de ter conseguido o tão sonhado atestado de óbito. É também um triste retrato do que foi a ditadura militar, das atrocidades cometidas. Leitura obrigatória para que histórias de desaparecimentos não se repitam, que ditaduras não se repitam. O tema do Alzheimer é tratado com profunda dignidade. Que doença!

Eu particularmente gostei de uma cartinha do pai, explicando para o filho e para as filhas, as razões de seu exílio. Uma explicação, ao mesmo tempo simples e bem profunda. Mas sobre isto farei um post especial. A sua volta do exílio foi também notável e inusitada. Em um voo de Paris para Montevidéu, com escala no Rio de Janeiro, simplesmente desceu do avião. Como não o incomodaram, ficou. Se tivesse ido para Montevidéu, a sua história certamente teria sido outra. O livro também me fez sentir um carinho todo especial pelo Marcelo Rubens, pela forma carinhosa com que retratou pai e mãe neste magnífico livro. E, ao Iuri, meus agradecimentos pelo belo presente.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Trópico de Câncer. Henry Miller.

Mais uma das indicações de Vargas Llosa. Ele indicou os nove livros mais importantes da literatura mundial. Como não lembro a fonte e como muitos a pedem, conferi a lista no Portal Raízes. Trata-se de Trópico de Câncer, de Henry Miller. Fiquei conhecendo a fama deste escritor, ainda nos anos 1960, quando estava no seminário. Era proibidíssimo. O conteúdo sexual de suas obras era o motivo. O escritor nasceu em 1915 e morreu em 2005, apenas para situá-lo e datá-lo.
Em Paris. Sem dinheiro, emprego, moradia e alimento. A queda nas profundezas da existência.

Para situar a obra, vamos localizá-la. Ela foi escrita em 1934, em Paris. A cidade é o seu objeto de descrição. Miller é um dos muitos escritores americanos que moraram nesta cidade, não tão maravilhosa, ao menos, segundo o escritor. Lá ele passou por poucas e boas. Observe bem o ano de publicação e procure contextualizar a data. É o período entre guerras, da crise do capitalismo mundial de 1929 e de suas decorrências e da ascensão das anomalias políticas como o fascismo e o nazismo.

Vou começas com duas frases bem sintomáticas. Uma, eu guardo a mais tempo, dos tempos em que eu li uma biografia de Fellini. Ela diz o seguinte: "Segundo minhas experiências, na escola como em casa faziam de tudo para apagar nossa peculiaridade". E agora, lendo Fausto de Goethe, entre os comentários sobre a obra encontrei a eterna luta da "oposição entre a uniformidade do comportamento social e a peculiaridade específica dos anseios individuais". Trópico de Câncer é um libelo em favor do indivíduo em seu confronto com a cultura reinante.

Bóris é um dos vários personagens do livro. Bóris estava com chatos e nos é apresentado pelo narrador como um profeta meteorológico. Bóris não era um otimista: "O tempo continuará ruim, diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está-nos comendo. Nossos heróis estão morrendo ou estão se matando. O heroi, então não é o Tempo, mas a ausência do Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar". Encontramos esta profecia já na primeira página do livro. Esta será a tonalidade e esta é a referência ao câncer, que está no título.

A obra não é de leitura agradável. O tom pessimista e mesmo nojento com que aborda os temas está onipresente. Sexo rasteiro, prostituição com asco, desrespeito ao ser humano, machismo descarado, loucura, fome, rastejar pela sobrevivência são a realidade diária descrita na obra, ambientada em Paris, onde vive o narrador, praticamente sem dinheiro, sem emprego, sem moradia e sem comida. Vive de bicos e de favores. Os bicos lhe aparecem pela sua condição de americano e de escritor. Revisa jornais e, num convênio franco americano, é professor de inglês em Dijon. O convênio existe, diz, para difundir o evangelho da amizade franco americana.

A cultura que o oprime são dois mil anos de idiotices passando pelo judaísmo, pelo cristianismo e pela civilização da técnica. Assim fala da Weltschmertz, de sua neurose e sofrimento. Fala dos judeus, de padres, em meio aos poloneses, indianos, russos, procurando caracterizar cada um em suas peculiaridades e em meio a inúmeras prostituas, putas de alto a baixo e de suas bocetas, encontradas às fartas em qualquer parte da cidade.

O livro que eu li é da Biblioteca Folha, com tradução de Aydano Arruda. Não tem apresentação, prefácio ou posfácio. Tem apenas duas pequenas referências sobre a obra, uma na orelha da capa, e outra, na contracapa. A orelha não tem autoria mas tem um roteiro interessante para a leitura. Nos conta que são as aventuras do autor, em Paris, nos famosos anos 1930. Nos dá as seguintes pistas.

"Sem obedecer a uma sequência linear, o romance se estende pelos bulevares da cidade, entra em suas pensões baratas, se embebeda nos cafés ordinários, convive com uma multidão de artistas e intelectuais igualmente desenraizados e sem dinheiro, dorme com prostitutas e mulheres solitárias. O ritmo é do relato rápido, ansioso, de quem quer chegar à medula das coisas. Tendo sido acusado de pornográfico e obsceno quando foi lançado, o livro de Henry Miller pode hoje ser lido, sem as lentes do preconceito, como um dos mais intensos testemunhos literários de uma geração que mergulhou de cabeça na vertigem do século XX".

Na contracapa o colunista da Folha, Fernando Bonassi, nos dá outras informações, como a censura ao livro nos Estados Unidos e que foi liberado apenas quando as suas revelações começariam a ser digeridas quando "o sonho americano deu sinais de pesadelo e os filhos e filhas da bomba atômica abriram os olhos, deixaram crescer os cabelos e suspenderam as saias". O livro nos narra, ainda segundo Bonassi, o que há de mais nobre e medíocre na experiência humana, fazendo um dos elogios mais revolucionários da autonomia pessoal que a literatura universal pode suportar".

Bonassi em seu parágrafo de encerramento nos diz ainda: "Aqui se encontra música; a cadência de frases vitaminadas e a força irada das imagens poéticas. Aqui se discute sem vergonha o preço da felicidade e do caos. Sexo, loucura, arte, vício, fome... Você tem nas mãos um livro nojento, grandioso, estimulante, infernal. Você tem nas mãos o Livro da Vida! Diante de uma experiência como essa, só o arrebatamento".

O livro tem 286 páginas, sem nenhuma sequência linear, como vimos. Possui 15 capítulos, não numerados, em que aparecem diferentes personagens. Tem um crescendo extraordinário nos capítulos finais. Um dos pontos altos do livro, que tem uma profunda tonalidade da angústia da existência, é um grande diálogo que mantém com inúmeros autores consagrados da literatura universal. Me permitam uma observação final. Eu contrariaria Vargas Llosa. Não o incluiria entre as nova obras mais significativas de todos os tempos.



domingo, 9 de abril de 2017

Fausto de Goethe. 3. No cinema.

Fausto é um personagem onipresente na cultura alemã. É uma história extremamente popular. Ele teria vivido ao final da Idade Média. Era um misto de médico, charlatão, adivinho, astrólogo e vidente. Era odiado pelo clero, pois mesmo sem fé, promovia curas. Suas aparições eram concorridas. É uma figura que costuma aparecer em época de crises e de transições. Teria vivido na Alemanha, entre os anos de 1480 e 1540.

Goethe não foi o primeiro a lhe dedicar atenção literária. A sua história já circulava através de edições populares e por uma versão mais esmerada no teatro inglês, por Marlowe, em 1592, um dos antecessores ou contemporâneo de Shakespeare. É um personagem extremamente fascinante para mentes irrequietas, não muito afeitas à tradição da obediência religiosa e de suas verdades absolutas. Originalmente, embora sob o formato de uma peça para o teatro, ela foi escrita para ser apresentada como uma leitura dramatizada.


Com a chegada do cinema, seria óbvio que este também lhe lançaria o olhar. Esta tarefa coube ao cineasta alemão Friedrich Wilhelm Murnau, em 1926, ainda nos tempos do cinema mudo. Diga-se de passagem, ele fez uma obra grandiosa. A minha primeira curiosidade se voltou para o roteirista. Quem teria a ousadia para transportar obra de tamanha envergadura para o cinema? Murnau costumava trabalhar com Karl Mayer, mas para o Fausto o escolhido foi um poeta, Hans Kyser, auxiliado por Gerhart  Hauptmann. Porém Murnau fez muitas modificações. Coisas de diretor perfeccionista.

Evidente que escolhas teriam que ser feitas. O filme que eu vi foi o da Coleção Folha - Grandes Livros no Cinema, que vem acompanhado de um libreto. Nele é apresentado um trailer em que são postas duas frases. A primeira diz assim: "Com a intenção de dominar o mundo, Mefisto aposta com um anjo que pode corromper a alma de fausto, um velho professor". E a segunda é assim apresentada: "Mefisto lança uma praga sobre a terra, e Fausto, incapaz de desvendar a cura, renuncia a Deus e à ciência e invoca a ajuda do diabo". Fausto aparecerá como um médico.

O recorte está feito.Num primeiro momento o filme privilegia os embates entre a ciência e a fé, quando o mundo é castigado por uma peste que não tem fim. Como ele não dispõe da fala, apenas os recursos da legenda, das expressões faciais, dos gestos e da música são possíveis. E o são feitos com grandiosidade. No libreto da Coleção Folha existe uma descrição sobre a produção do filme, por sinal, o último de Murnau na Alemanha. Depois ele seguiria carreira nos Estados Unidos. Mas vejamos a descrição, que é de Tatiana Monassa.

"Produzido pela UFA, um grande estúdio alemão do período mudo, o filme de Murnau apresenta diversos traços recorrentes do chamado 'expressionismo alemão'. Os jogos de luz e sombra, os cenários com perspectivas distorcidas e o drama do Mal encarnado por uma figura influente (o que abriu espaço para a interpretação de que esses filmes prefiguravam a ascensão do nazismo) são alguns deles. E esses foram certamente fatores essenciais para a imortalização do filme como a grande versão cinematográfica de Fausto".

Da Coleção Folha - Grandes Livros no Cinema. Fausto. Foto do DVD da minha coleção.

Fausto, Eine deutsche Volkssage, tem o Fausto interpretado por Gösta Ekman e o Mefistófeles por Emil Jannings, cabendo à jovem Camila Horn a interpretação de Margarida. O filme tem duração de 106 minutos e estreou na Alemanha em outubro de 1926. A Coleção Folha - Grandes livros no cinema tem 25 filmes.

sábado, 8 de abril de 2017

Fausto de Goethe. 2. O livro.

Fazer uma resenha de Fausto, deve ser um ato de ousadia tão grande, quanto o foi para Goethe escrevê-lo. Ele consumiu cerca de sessenta anos de sua longa existência para escrevê-lo, abandoná-lo, retomá-lo, modificá-lo, reinventá-lo, até que enfim, ainda que insatisfeito, lacrá-lo e deixá-lo como herança para a humanidade. Do que trata? Como toda grande obra literária, ela trata do humano, retratado em suas mais diferentes situações. Uma obra, com certeza, escrita com muito cuidado.
"É preciso abraçar a volúpia, fartar-se de prazeres e não ter medo da morte". Seria uma síntese de Fausto?

Tive enorme dificuldade em lê-lo. Talvez a falta de hábito da leitura da poesia! Mas a expressão da arte é também uma das grandes finalidades da obra. Antes de mais nada, quero deixar marcadas duas frases, entre tantas outras, que anotei durante a leitura. Uma é do início e outra do final do livro. A do início afirma, na voz do Altíssimo, ao permitir a celebração do pacto entre Mefistófeles e Fausto, que "erra o homem enquanto a algo aspira". A do final vai na mesma direção. As vozes que a proferem é a dos anjos, recebendo a alma imortal de Fausto "Quem aspirar, lutando ao alvo, à redenção traremos". Assim, a insondável aventura humana está plenamente liberada. O altíssimo permite e os anjos celebram. Que maravilha!

Como não pretendo cometer muitos erros nesta resenha, busco voz mais autorizada para fazê-lo. Será a de Antônio Houaiss, buscada no prefácio da 4ª edição da Itatiaia (1997), que tem tradução de Jenny Klabin Segall. Foi esta a edição que eu li. A ousada tradução mantém a forma do verso. Mas vamos a síntese do grande mestre.

"Na primeira parte do Fausto, publicada em 1808, o nó da trama é o pacto de Fausto com Mefistófeles, pelo desejo de saber e pela sede de gozar. Após seduzi-la, abandona Margarida, que desesperada, mata o filho, é condenada à morte e expira nos braços de Fausto, redimida pelo arrependimento e salva em eternidade. Na segunda parte, cuja redação efetiva deve estar entre 1826 e 1832, o nó da ação é a aposta contratada entre o Senhor, que afirma que Fausto se salvará, e Mefistófeles, que espera degradar Fausto à condição de uma besta. Fausto é nela o símbolo da humanidade, que erra enquanto age, mas que deve agir para atingir o ideal que ela mesmo entreviu. Fausto é salvo porque jamais cessou de tender para um ideal. Capsularmente, é uma síntese mínima e despojadíssima da ossatura  ideológica do poema-drama, sob muitos aspectos sui gêneris na literatura universal, seguramente uma das dez obras basilares da humanidade verbalizada".

Quanto à forma, a estrutura também é complexa. Como visto, o livro é apresentado em duas partes. É uma peça de teatro em forma de poesia. Tem dois prólogos. Uma apresentação da equipe do teatro, diretor e atores a saudar o público, o prólogo no teatro - e o prólogo no céu, onde entram em cena o Altíssimo, os anjos e Mefistófeles. Nele o Altíssimo dá permissão para que Mefistófeles celebre o famoso pacto com Fausto, permitindo assim a realização, mesmo errando, das aspirações humanas.

Quais seriam então as aspirações humanas? Vamos vê-las pelas transformações que Mefistófeles provocou em Fausto. A volta à juventude, enveredar pelo desejo do conhecimento e a busca pelos prazeres do amor, personificados na beleza da jovem Margarida, a pequena Gretchen. A evocação à cena do Gênesis, da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, talvez seja a mais significativa de todas as explicações para os desejos humanos. Vou buscar a cena bíblica, no Gênesis, sobre a culpa original:

"A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim? A mulher respondeu-lhe: Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, sob pena de morte. - Oh não! tornou a serpente - Vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente".

Assim começou a humanidade na versão da cultura ocidental. Assim procurou se construir um mundo de conformidade social sob os instrumentos da hierarquia e da obediência em constante oposição com o mundo das peculiaridades e desejos do indivíduo. Assim o mundo passou a ter uma versão oficial e um mundo meio que subterrâneo, do qual brotariam os mais recônditos desejos, o mundo daquilo que seria, para o mundo oficial, o mundo dos pecados. Mas o indivíduo jamais resistiu a ser "como deuses, conhecendo o bem e o mal".

Este caminho da humanidade, de sua cultura, de seus tropeços e avanços é construída no Fausto. O velho Fausto, rejuvenescido pelo pacto com Mefistófeles, escrito com sangue, lhe permitiu a volta à juventude e à paixão do amor. Mas também às suas desventuras. Lhe permitiu o conhecimento das ciências, o avanço da técnica e a cura de muitos dos sofrimentos humanos. Mas traz também as crises e as agitações sociais. E o humano, finito e transcendente, nunca se satisfaz. Sempre busca o mais. Em cinco atos, este mais é buscado, em meio a todas as contradições do mundo.

O que sobra da obra? No amor e na ousadia da busca está a redenção. É por ele que Margarida é redimida e Fausto é recebido pelos anjos no Paraíso. Existe uma unidade indivisível  entre o bem e o mal e, o transcendente está sempre em constante busca. O mundo se move em meio a contradições. Obra de um gênio e que, ainda por cima, busca na arte a sua forma de expressão. Contei a um amigo sobre o pacto de Fausto e ele retrucou de imediato. Mas onde é que eu encontro este tal de Mefistófeles? O ser humano é efetivamente universal.

Foi com certeza a obra mais difícil que já li e tive e tenho enormes dificuldades na sua compreensão total. Quero ainda registrar que a obra não foi recebida com unanimidade. Jorge Luís Borges assim a ela se refere, em carta ao amigo Bioy Casares, em 1971, "Não te parece que (Fausto) é o maior blefe da literatura"?


sexta-feira, 7 de abril de 2017

Fausto de Goethe. 1. Uma contextualização.

Minhas obsessões de professor. Datar e situar o que você vai estudar. Assim, para melhor compreender Fausto procurei saber algumas peculiaridades sobre este personagem, como também, sobre Johann Wolfgang von Goethe. O von não está ali à toa. Ele nasceu em Frankfurt em 1749 e morreu em Weimar em 1832. Quando eu ainda estava em sala de aula, sempre pedia para localizar o fato histórico mais importante ocorrido ao longo de sua vida. Com Goethe isso é fácil de acertar, uma vez que a Revolução Francesa (1789) é um dos fatos mais importantes de toda a história da humanidade. Napoleão na sequência.
 Um pacto com Mefistófeles, para penetrar no mundo insondável do conhecimento, dos desejos e do prazer.

Deixemos um pouco de lado a Revolução Francesa e os tempos de Goethe, para localizar o personagem histórico chamado Fausto. Apesar de cada ser humano ter um pouco dele, o personagem retratado por Goethe foi real, acrescido com a imaginação de muita gente e, em especial, a de Goethe. Ele teria vivido na Alemanha e nos é assim apresentado, no prefácio da 4ª edição da Editora Itatiaia (1997), de autoria de Erwin Theodor: "Entretanto é possível afirmar, sem a menor sombra de dúvida, que entre os anos de 1480 e 1540, aproximadamente, viveu um indivíduo de nome Georg Faust, de duvidosa reputação, natural de Knittlingen [...] e teve morte, provavelmente violenta em Stauffen".

Mas vamos para mais algumas referências do personagem, buscando-as na mesma fonte: "São estes os poucos informes históricos existentes, mas as mesmas fontes que no-los fornecem excedem-se em especulações acerca de seu caráter, não havendo dúvida de que pode dizer-se, conforme Goethe o fez, que ele mesmo cuidou de que  'os vestígios de meus dias, na terra passados / nem em milênios fossem apagados'. Onde quer que se apresentasse, tornava-se logo o centro das atenções e, assim rejeitado, por exemplo, por teólogos, passava a ser aceito por naturalistas, objeto de curiosidade e temor. Ele próprio atribuía-se o título de 'filósofo-mor entre os filósofos' e dava-se ares de um semi-deus. Jactava-se de poder reanimar os mortos, dizia-se médico, praticava a astrologia, era vidente, profeta e quiromante".

Por ser muito esclarecedor continuo com mais um parágrafo de Erwin Theodor: "Viveu numa época de transição e crise. Copérnico havia pronunciado, no ano de 1500, em Roma, as suas célebres preleções astronômicas. O movimento da Reforma se anunciava e as agitações sociais, que viriam caracterizar o século dezesseis, começavam a manifestar-se. Moviam-se as guerras dos camponeses, os levantes da pequena nobreza estavam na ordem do dia, enquanto as estruturas eclesiásticas se viam abaladas".

Estes são, portanto, os acontecimentos da época vivida por Fausto, o famoso personagem. Uma época cheia de receios e temores de um tempo que insistia em permanecer. Mas é também um tempo cheio de desejos, ousadias e enfrentamentos  para que o novo encontrasse os seus espaços. A ambição não conhecia limites. Uma economia mercantil procura se estabelecer, abalando as estruturas feudais. A filosofia iria avançar até chegar ao iluminismo. Descartes alinhará as questões do método racional e David Hume adentrará ao caminho da experiência e da pesquisa científica. Kant nos aconselhará o sapere aude, o ouse saber, que implicava em afrontar os mundos de sua santidade e de sua majestade.

Época de transição e de crise! Eis o cenário para a celebração do humano. Creio que, acima de tudo, Fausto é a celebração do humano, dos desejos, da celebração do pacto para sondar o imenso mundo de possibilidades. Este mundo de possibilidades necessariamente se confrontará com o mundo do estabelecido, com o mundo da religião e dos milagres da fé, que não desaparecerá, mas que se reconfigurará em adaptação aos novos tempos.

A ousadia de Fausto não terá limites. O seu desejo de conhecimento e poder o fará retomar todos os caminhos e tentativas já trilhados pela humanidade. Percorrerá os caminhos gregos da mitologia, da magia e da tragédia, buscando o fantástico. Percorrerá os primeiros passos da filosofia e a busca da afirmação da racionalidade e, sobretudo, buscará na religião judaica, aquilo que ela procurou abafar, ou seja, sucumbir às tentações do conhecimento, para que o homem não se transformasse também em divindade.Também os desejos de mulher entram em cena, com a imagem de Lilith, a primeira e insubmissa esposa de Adão.

Eis o grandioso cenário para uma grande obra. Uma celebração da eterna oposição entre a uniformidade do comportamento social, pregado pelos ideais da conformidade e a peculiaridade específica dos anseios individuais. É o mal estar provocado pela cultura, diante da qual o indivíduo se movimenta desesperadamente, em estado de permanente inquietação e angústia. É o fantástico mundo dos desejos e dos sentimentos humanos. Uma grandiosa viagem pelos tempos, uma exaltação à coragem do afrontamento ao conformismo, que sem dúvida, alargou enormemente as fronteiras das conquistas materiais e espirituais da humanidade.

Uma contemplação ou premiação do inusitado, à coragem do indivíduo, à celebração da unidade, da pluralidade e da transcendência, da realidade da indivisibilidade no humano da existência do bem e do mal, do apolíneo e do dionisíaco, já tão celebrado na tragédia grega. Uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Uma frase de Goethe, simbolizando o espírito fáustico, para terminar. "É preciso abraçar a volúpia, fartar-se de prazeres e não ter medo da morte". Goethe vivenciou, ao menos um pouco, tudo isso.



sábado, 1 de abril de 2017

Apocalypse Now. Coração das Trevas.

Vargas Llosa me levou a Coração das Trevas e Um posto avançado do progresso. Lendo a respeito, vi a relação entre o livro e o filme Apocalypse Now. Revi o filme. Ele é grandioso. O que é a força da imagem! Confesso que fiquei meio aborrecido comigo mesmo, pois o exemplar do filme que eu tenho é acompanhado de um livreto e nele tem três páginas falando de Joseph Conrad - Um clássico das telas. Passou batido. Eu não tinha lido Joseph Conrad. A formação é uma coisa que exige muito cuidado e atenção. 

O exemplar que eu tenho do Apocalipse Now é da Abril Coleções, Cinemateca Veja. Creio ser esta uma das únicas concessões que eu fiz a este panfleto que envergonha o jornalismo brasileiro. Mas o filme não foi ideologizado, ele está na íntegra e com toda a sua força. São 202 minutos, quase três horas e meia, de uma das maiores produções já feitas pelo cinema. A versão é a Redux, a sua versão mais longa, que dá um bom tempo para as coelhinhas da Playboy.
O destaque da capa vai para a enorme cabeça enlouquecida de Kurtz. O preço da civilização.


No livro de Joseph Conrad, Marlow é o narrador que conta as histórias que ouviu sobre Kurtz, um comerciante de marfim, estabelecido ao longo do rio Congo, em meio a selva africana. Pouco se sabe de seus métodos mas havia uma certeza. Ele sempre conseguia o abastecimento de marfim. Tempos do colonialismo europeu na África. A obra de Conrad data de 1899. Em Apocalypse Now, o foco não é mais a África mas continua com o tema do colonialismo, agora no sudeste asiático. O foco é a guerra do Vietnã, sobrando também para o Camboja, em cujas fronteiras o ensandecido Kurtz será encontrado.

A edição do livro Coração das Trevas, da CompanhiaDeBolso tem um posfácio muito elucidativo. Dele eu retiro um parágrafo que para mim foi fundamental na compreensão tanto do livro, quanto do filme. Ele é de autoria de Luiz Felipe de Alencastro e fala em duas interpretações gerais e complementares da obra: "A primeira, cujo conteúdo está sobretudo explicitado na metade inicial do texto, concerne à desumanização e à violência engendradas pelo colonialismo europeu na África. Mais baseada na outra metade da novela, a segunda leitura aponta para a inquietação existencial e o desregramento de indivíduos confrontados com a ruptura dos laços sociais".
O livro que serviu de inspiração para o filme.


No livro, os horrores da colonização estão presentes nas narrativas de Marlow, em sua viagem ao Congo e na descrição de como se agia em nome da superioridade no processo civilizatório. Para esta missão do bem, tudo era permitido. Ela está assim expressa: "Devemos necessariamente ser vistos por eles [os selvagens] como seres sobrenaturais - chegamos a eles com um poder que parece próprio de uma divindade [...] Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer um poder praticamente ilimitado para o bem". Mas quase ao final do livro encontramos uma expressão que é uma espécie de síntese de todo o processo: O horror! O horror!"

No filme quem irá atrás de Kurtz, o nome é mantido, será o capitão Benjamin Willard. Kurtz teria enlouquecido e se estabelecera nas fronteiras com o Camboja e já agia de forma independente, não obedecendo mais a nenhum comando. A missão do capitão era exterminá-lo. Assim, grande parte do filme mostra a viagem do capitão pelo rio Nung, passando por inúmeras cenas de atrocidades cometidas pelos soldados norte americanos. A eles tudo era permitido. A luta civilizatória agora ganhava o nome de defesa da liberdade e da democracia.

O filme mostra que em meio a estas atrocidades havia concessões em demasia para com os soldados. Era uma das broncas de Kurtz. Isso faria faltar a determinação, desviaria do foco. É o momento em que Coppola mostra o entretenimento, com grande destaque para o show das coelhinhas da Playboy. O soldados americanos deveriam ser tão, ou mais cruéis, quanto os vietcongs. Para eles havia duas únicas possibilidades. Ou a morte ou a vitória. Não havia alternativas.

Este foco muito me lembrou do relatado nos livros de Roberto Saviano, especialmente em Zero, Zero, Zero, sobre o comportamento das máfias e os treinamentos feitos para entrarem no reino da ferocidade e da crueldade total. Para tal promoviam verdadeiros rankings da crueldade. Nada que representasse qualquer tipo de afeto poderia ter vez. Era foco total na organização.

Em seu caminho pelo rio Nung o capitão Willard encontra franceses remanescentes da colonização da Indochina. Somente estas cenas já valeriam o filme. Inconformados com os fracassos e a decadência francesa, eles simplesmente se recusaram a voltar ao país. Lembrando que os franceses antecederam aos americanos no colonialismo do sudeste asiático. Fracassaram, assim como os norte americanos, que retiraram as tropas em 1973, para encerrar a guerra logo a seguir, em 1975. A ironia está presente ao longo de todo o filme.

Enfim o capitão chega ao local onde Kurtz pratica os seus desmandos. É imediatamente preso. Marlon Brando, interpretando Kurtz aparece na tela, num grande foco para a sua enorme cabeça enlouquecida. Uma imagem de horrores. Louco, alterna momentos de romantismo e ferocidade. O arlequim russo, que no livro narra os feitos de Kurtz, no filme será um fotojornalista americano a exaltar as virtudes do chefe. Kurtz sabe da missão do capitão, mas o capitão também tomara as suas providências. Kurtz precisaria ser destruído e o seria. A determinação de Kurtz, em levar os avanços do progresso, estava um pouco acima do permitido. O filme, da mesma forma que o livro, termina com a expressão O horror! O horror.

As viagens de barco pelo rio Congo e pelo rio Nung tem um simbolismo profundo. Elas refletem o estado da alma dos homens todo poderosos do processo civilizatório. No caso do filme, o capitão Willard contempla as horríveis cenas da guerra. Nuvens de Napalm voam pelos ares. A viagem apocalíptica tem como destino final a chegada ao inferno. Mas a este ponto nunca chegam, pois, o vivem a cada instante e momento da viagem. A loucura e o horror tomam forma concreta e contaminam a todos. A desumanidade no processo civilizatório é total e completa. Oh horror! Oh horror!

As filmagens começaram nas Filipinas em 1976. A primeira exibição foi no Festival de Cinema de Cannes em 1979, com o filme ainda inacabado. Mesmo assim foi premiado com a Palma de Ouro. Em 2001 foi lançada a sua versão Redux, com o acréscimo das cenas com as coelhinhas e a recepção dada pela família francesa. Foi um extraordinário sucesso de público e de bilheteria. A Academia de Cinema não foi muito generosa para com o filme. Ganhou apenas dois Oscars, o da melhor edição de som e o de melhor fotografia. Grandes atores representaram os principais personagens. O maior destaque necessariamente vai para Martin Sheen, no papel do capitão Willard, secundado por Marlon Brando no papel do enlouquecido Kurtz. O arlequim russo do livro, transformado em fotojornalista americano no filme, também teve grande interpretação por parte de Dennis Hopper.

Oh horror! Oh horror! Sem legendas.