sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

AS RELAÇÕES PERIGOSAS. Choderlos de Laclos.

Nota de rodapé da página 309: "Foi com esta correspondência, com a que a Sra. de Tourvel entregou ao morrer, e com as cartas confiadas à Sra. de Rosamonde pela Sra. de Volanges, que se formou a presente coletânea, cujos originais continuam em mãos dos herdeiros da Sra. de Rosamonde". Apresento esta nota para dar a centralidade desta tão diferenciada forma de contar as histórias de um romance. A Sra. de Rosamonde é tia do Visconde de Valmont e "amigo" do cavaleiro Danceny, namorado de Céline de Volanges, filha da Sra. de Volanges, que junto com a marquesa de Merteuil, são os principais personagens do romance - As relações perigosas, de autoria do francês Choderlos de Laclos.

As relações perigosas. Choderlos de Laclos. Abril. 1971.

O romance compõem-se exclusivamente de cartas, com algumas notas explicativas de rodapé, caso único, ao menos do meu conhecimento, de um romance escrito dessa forma. São ao todo CLXXV (cento e setenta e cinco cartas) cartas. O romance apareceu pela primeira vez no ano de 1782. Choderlos de Laclos nasceu no ano de 1741 e morreu em 1803. O romance é uma minuciosa crônica da época. O principal fato da época é fácil de detectar: o acontecimento de 1789, ou seja, o da revolução burguesa, ocorrido na França nesse ano. O romance, então, como uma descrição de seu tempo, nos remete aos momentos anteriores da Revolução Francesa, possivelmente, a revolução de maiores consequências de toda a história da humanidade. É a descrição de todo o tipo de patifarias de uma casta social que insistia em retardar os privilégios de uma época. Uma fruta apodrecida que insistia em não cair de sua árvore. Uma crônica de costumes, de costumes depravados, de moral putrefata.

As cento e setenta e cinco cartas ocupam 319 páginas, com letrinhas de quase necessidade de lupa para a efetuação da leitura. Está dividido em duas, ou três partes (conforme a edição), mas isso não faz grande diferença. O romance simplesmente segue uma sequência na ordem do acontecimento dos fatos. Os fatos fluem e a leitura prende a tua atenção. As cartas são curtas. Apenas as dos personagens mais perversos, como as do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil são um pouco mais longas. Uma página seria insuficiente para conter tanta maldade. Até a aparentemente boazinha menina, Cécile de Volanges (15 anos) é de um aprendizado rápido e fácil das maldades... E, como se aproveitam dela... Considerei que o livro seria de facílima adaptação para uma novela de televisão dos nossos tempos.

Nas análises que faço dos livros da coleção Os imortais da literatura universal, costume me servir das pequenas biografias e contextualização de obra que acompanha a coleção. Isso faz ainda mais sentido no caso de Laclos, um escritor não tão conhecido, em nossos tempos. Vejamos o que está dito sobre As relações perigosas. Antes ainda, deve ser dito, que Laclos era militar de carreira. Agora sim, vejamos: "Ser militar e escrever versos não lhe bastava mais. Queria fazer algo maior, como redigir um livro 'que fizesse escândalo e fosse comentado mesmo depois de sua morte'. Isso o levou a uma licença de seis meses para realizar esta sua façanha, com a qual ele tinha dois objetivos: "Desejava escrever contra os aristocratas, vis parasitas sentados no poder, e conquistar a glória através das letras". Em 1782 o livro estava pronto e o sucesso foi imediato. Conta-se que até a rainha Maria Antonieta, mulher de Luís XVI tinha um exemplar. Mas o que dizia o livro?:

"Diz um cronista da época que a marquesa de Coigny, após ler a obra, ordenou a seus criados: 'Aquele senhor magro e amarelo, de roupa preta, que vem aqui frequentemente... não estou mais para ele... Se ficar sozinho em sua presença, terei medo'. 

Escrito sob a forma de cartas trocadas entre as personagens, As relações perigosas mostra a decadência moral da sociedade aristocrática do século XVIII. A intenção do autor aparece claramente expressa no frontispício do romance, onde se lê: 'As relações perigosas, ou Cartas Recolhidas em uma Sociedade e Publicadas para a Instrução de Algumas Outras. Em seguida há a citação de Rousseau, tirada do prefácio da Nouvelle  Héloise: 'Vi os costumes de meu tempo, e publiquei as cartas'.

A história gira em torno do Visconde de Valmont e da Marquesa de Merteuil, indivíduos totalmente amorais e dedicados à 'arte da libertinagem', jogo ao qual se aplicavam com afinco os jovens ociosos da alta sociedade. A princípio interessado em conquistar a Sra. de Tourvel, mulher casada e virtuosa, Valmont acaba aceitando a contraproposta da sra. de Merteuil, empenhando-se na conquista da inocente Cécile de Volanges, noiva de Danceny. Assim teria a oportunidade de vingar-se do homem que, há muito tempo, o derrotara na conquista da própria Sra de Merteuil. Com uma frieza incrível e uma técnica perfeita, minuciosamente descrita, Valmont realiza com brilhantismo, a conquista de ambas: Cécile e a Sra de Tourvel".

É fácil de imaginar que o Cavaleiro Danceny, em nada gostou dessa história. Mas isso fica para o leitor descobrir. O autor, ao final, também adverte ao leitor de que ele não terminou de contar toda a história, deixando-a inconclusa. Adverte também que trocou todos os nomes. Assim toda a nobreza podia se sentir descrita. O livro necessariamente contém muita ironia, sátira, ódio, vinganças, trapaças e todas as maldades possíveis. Mas eu quero dar destaque a uma passagem sobre o ódio, devido a sua omnipresença nos dias de hoje, especialmente, na atual conjuntura brasileira. Ela é descrita pela presidenta de Tourvel: 

"Deixa-me cruel! Que novo furor te anima? Receias que um sentimento doce penetre em minha alma? Redobras meus tormentos; obrigas-me a te odiar. Oh, como o ódio é doloroso! Como corrói o coração que o destila! por que me perseguis ainda? Que podeis querer dizer-me ainda? Não me pusestes na na impossibilidade tanto de vos escutar como de vos responder? Não espereis mais nada de mim. Adeus senhor". É. O ódio interdita qualquer possibilidade de interlocução e de entendimento.



segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Viagens de Gulliver. Jonathan Swift.

"Desta maneira, leitor amável, contei-te história fiel das minhas viagens durante dezesseis anos e mais de sete meses, na qual me preocupou menos o ornamento que a verdade. Eu te poderia, talvez, como outros, haver maravilhado com estranhas e improváveis narrativas; mas preferi relatar singelamente os fatos, da maneira e com o estilo mais fáceis, porque o meu intuito principal era informar-te, e não te divertir". Assim inicia o capítulo final do livro Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift.

Viagens de Gulliver. Jonathan Swift. Abril. 1971.

Confesso que antes da leitura do livro, li a pequena biografia do autor, que acompanha a coleção dos Imortais da Literatura Universal. Também confesso que a sua biografia me tirou um pouco a vontade da leitura de seu livro, ou melhor, da boa vontade de sua leitura. Uma vida cheia de complicações e de indefinições. Muitas mudanças de lado. Swift nasceu na Irlanda, no ano de 1667 e morreu, também na Irlanda, em 1745. Não obstante, ele se considerava mais inglês do que irlandês. Importante observar as datas para, a partir delas, lançar um olhar sobre a política inglesa do período. Tempos de colonialismo e de lutas entre católicos e protestantes, entre os whigs e os tories. Swift pertenceu a ambos, conforme os ventos lhe soprassem favoráveis. Mas, vamos a obra, da qual já apresentei um ponto de vista, a partir do autor.

Primeiramente tomo do livro de biografias as anotações referentes à obra: "Possivelmente ninguém mais adoecia em Londres. Ou então as doenças eram tão fulminantes, que nem havia tempo de recorrer-se ao médico. De qualquer modo, um dia o consultório do Dr. Lenuel Gulliver se viu entregue às moscas. Diante das dificuldades financeiras, o médico embarcou no primeiro navio disponível, como cirurgião de bordo. Mas o navio, mal se pôs ao largo, naufragou. Após muito nadar, Gulliver foi ter a um prado macio e solitário, em cuja relva verde adormeceu. Ao despertar, não pode mover-se: estava atado ao chão por finos cordéis e guardado por minúsculas figuras humanas. Chegara ao país Lilipute.

Homem inteligente, não tardou a aprender a língua da terra e conquistar a confiança de seus habitantes. Em pouco tempo era amado por muitos e invejado por alguns, que pacientemente tramavam intrigas para afastá-lo. O rei acabou ouvindo-as e Gulliver teve de abandonar seus pequenos amigos e retornar a Inglaterra. Afinal, os dois países eram bem parecidos; talvez só se distinguissem pela língua e pelo porte dos habitantes. As lutas entre facções opostas eram as mesmas. A miséria, as revoltas, a morte não poupavam Lilipute nem a Inglaterra, e o tamanho das pessoas não contava, diante do mal.

A aventura não atemorizou Gulliver; tão logo pode, encetou uma segunda viagem, que acidentalmente o levou a Brobdingnag, o país dos gigantes, onde se tornou, primeiro, brinquedo nas mãos de uma menina descomunal; depois bobo da corte. Tentou esclarecer o soberano sobre as leis e instituições inglesas, mas os ensinamentos só serviram para enfurecer o monarca, que julgava os ingleses uma praga a assolar a humanidade.

As dimensões exageradas - das pessoas, das feridas, das imundícies, dos insetos - transformavam Brobdingnag num lugar repugnante. Humilhado e nauseado, Gulliver aguardava com ansiedade o momento de escapar. Uma águia gigante se compadeceu dele e lhe possibilitou a fuga para a ilha de Laputa. Ali os sábios passavam a vida teorizando, sem vínculos com a realidade cotidiana. Conheciam lógica e harmonia, mas viviam na mais completa desorganização. Gulliver não suportou sua convivência e buscou a companhia dos Struldbrugs, a casta maldita da ilha. Eram imortais, porém a perenidade da vida não lhes assegurava a juventude ou a saúde eternas. Arrastavam-se como farrapos de gente, sem dignidade, Gulliver tampouco pode ficar com eles e regressou a Inglaterra.

A sede de aventuras chamava-o para uma nova viagem. Um motim a bordo levou-o por acaso ao país dos Houyhnhnms, onde os cavalos governavam com sabedoria e os homens se submetiam. Essa foi a única civilização merecedora de elogios dentre as várias com as quais deparava o herói. Os contemporâneos de Swift não puderam perdoar-lhe a inversão de valores: animais dotados de virtudes que deveriam ser humanas e homens reduzidos à bestialidade dos macacos. Com a recordação do país dos Houyhnhnms, Lenuel Gulliver abre relato de suas aventuras, publicadas pela primeira vez em 1726, por Benjamin Motte e reeditadas no ano seguinte".

O que quis Swift com as suas viagens? "Pelo fantástico de certas situações - na verdade um artifício do autor para atacar mais livremente as instituições inglesas -, pelo dinamismo das aventuras, pela simplicidade do estilo, pela simpatia que o herói transmite, Viagens de Gulliver tornou-se, ao longo do tempo, livro predileto do público infantil". E mais..."Além de desmascarar a humanidade e demolir os falsos valores - seu objetivo primacial -, Swift visava ainda a ridicularizar a moda da narrativa de viagem, uma obsessão da época. O burguês bem sucedido, tranquilamente instalado nas cidades, ansiava por relatos heroicos, aventuras fascinantes que preenchessem o vazio de sua vida".

O livro está, portanto, dividido em quatro partes. Mas antes de apresentá-las, vamos ao título completo do livro: Viagens - em diversos países do mundo em quatro partes. Por - Lemuel Gulliver - a princípio cirurgião e, depois, capitão de vários navios. Vamos às partes: Parte I. Viagem a Lilipute (8 capítulos). Parte II. Viagem a Brobdingnag (8 capítulos). Parte III. Viagem a Laputa, Balnibardi, Luggnagg e ao Japão (11 capítulos). Parte IV. Viagem ao país dos Houyhnhnms (12 capítulos). O livro conta com 276 páginas, de letra bem miudinha. Cada capítulo é antecedido de uma pequena síntese do capítulo, o que facilita a leitura.

Selecionei alguns trechos, a título de ilustração: 1. Parte II. capítulo VI, Página 121  O rei lhe fala: "Meu amiguinho Gildrig, fizestes o mais admirável panegírico do vosso país; provastes à sociedade que a ignorância, a ociosidade e o vício são os ingredientes adequados à qualificação de um legislador; que as leis são melhor explicadas, interpretadas e aplicadas por aqueles cujo interesse e habilidade consistem em as perverter, confundir e iludir. Observo entre vós alguns traços de uma instituição que poderia ter sido, originariamente, tolerável, mas cuja metade está quase apagada, ao passo que o resto foi inteiramente obliterado e borrado pela corrupção. Não transparece, em quanto dissestes, que se exija uma única perfeição para que alguém atinja uma posição qualquer entre vós; e muito menos que os homens sejam enobrecidos em razão da sua virtude; que os sacerdotes sejam promovidos pela piedade ou pelo saber; os soldados, pelo procedimento ou pelo valor; os juízes pela integridade; os senadores, pelo amor à pátria; os conselheiros pela sabedoria".

2. Parte III, capítulo VI, Página 175. Sobre as mulheres: "Propôs-se que as mulheres pagassem impostos de acordo com a beleza e a habilidade no trajar, no que teriam os mesmos privilégios concedidos aos homens de lhes ser confiado ao próprio alvedrio o total das contribuições. Mas a constância, a castidade, o bom senso e a bondade não seriam taxados por não compensarem as despesas de arrecadação". Opa, isto é daquele tempo!

3. Parte IV, capítulo IV, Página 228. Sobre o motivos das viagens: "Redargui que eram indivíduos de desesperada fortuna, obrigados a fugir dos sítios em que haviam nascido à conta de sua pobreza ou dos seus crimes. Alguns tinham sido arruinados por pleitos; outros haviam gasto quanto possuíam bebendo e jogando; outros tinham fugido por traição; muitos por assassínio, furto, envenenamento, roubo, perjúrio, estelionato, cunhagem de moedas falsas. rapto ou sodomia; por haverem desamparado a sua bandeira, ou desertado para o inimigo; e a maioria deles escapara à prisão; nenhum se atrevia a voltar ao seu país de origem temendo ser enforcado ou morrer à míngua num calabouço, e, destarte, era-lhes necessário prover à própria subsistência em outros lugares". Só pessoas de bem.

4. Parte IV, capítulo V, Página 232. Sobre os motivos das guerras: "Às vezes, a briga entre dois príncipes é para decidir qual deles desposará um terceiro dos seus domínios, aos quais nenhum tem direito algum; às vezes, um príncipe briga com outro porque tem medo que o outro brigue com ele; às vezes inicia-se uma guerra porque o inimigo é demasiado forte; outras, porque é demasiado fraco; às vezes, os nossos vizinhos querem as coisas que queremos, e ambos lutamos até que eles nos tomem as nossas, ou nos deem as suas. É causa muito justificável de guerra invadirmos um país depois que foi o seu povo arrasado pela fome, ou destruído pela peste, ou enfraquecido por dissensões intestinas". Sempre presente a ironia. Uma pequena amostragem.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

As missões jesuíticas do Itatim. Regina Maria Gadelha.

Uma cena de antes do natal de 2023. Almoço no Restaurante São Francisco. Possivelmente o mais antigo restaurante de Curitiba. Ele data de 1955 e fica na rua, também ela chamada São Francisco, no decadente centro histórico de Curitiba. Estávamos lá, o Valdemar, o Pai Firmino e eu. Como de costume fomos atendidos pelo Luís. Este almoço marcaria o encerramento nosso, no conjunto, das atividades de 2023. Como sempre, o pai Firmino foi muito gentil conosco, nos presenteando com livros. A mim me coube As Missões Jesuíticas do Itatim. Estruturas Sócio-econômicas do Paraguai Colonial - Séculos XVI e XVII. O livro é uma dissertação de mestrado, defendida na USP. O livro é uma publicação da Paz e Terra, do ano de 1980. A autora é Regina Maria A. F. Gadelha.

As missões jesuíticas do Itatim. Regina Maria A. F. Gadelha. Paz e Terra. 1980.

De longa data, o tema das missões me interessa. Inclusive já visitei as Reduções, organizadas pelos jesuítas alemães radicados no Paraguai. Esta visita constou das sete reduções que são hoje Patrimônio Cultural da Humanidade: dois no Paraguai, quatro na Argentina e a nossa São Miguel, no Rio Grande do Sul. Tudo, na época, era território paraguaio. Também li o fantástico livro do padre jesuíta suíço, Clóvis Lugon, a República comunista cristã dos guaranis, do qual deixo a resenha, como também de um post da visita:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/03/a-republica-comunista-crista-dos.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2016/02/viajando-pelas-terras-missioneiras.html

Quanto ao livro, primeiramente procurei localizar o Itatim. Ele se situa no Mato Grosso do Sul, entre os rios Miranda e Aquidauana, no hoje conhecido Pantanal. O tempo em que os fatos ocorreram foi o de meados do século XVII. Naquele tempo o território era pertencente ao Paraguai e esta região missioneira era comandada por Assunção. Creio que apenas essa primeira localização no tempo e no espaço já nos dá uma ideia das dificuldades existentes e que atingiam a todos os envolvidos. Muitas coisas estavam em disputa. Duas missões prosperaram ali, por um breve tempo: Nossa Senhora da Fé e santo Ignácio del Caaguaçu. O Brasil também entrou nessa disputa. Os terríveis bandeirantes. Raposo Tavares rondou estas terras.

Ao final do seu trabalho, seguramente com fôlego de um doutorado, Regina Gadelha nos dá uma síntese dos conflitos aí existentes sob o âmbito paraguaio, ou espanhol, o país colonizador: "Percebe-se, pelas considerações acima, o jogo de interesses em confronto, expresso, de um lado, por trás das críticas sofridas pela Companhia de Jesus e, de outro, pelas críticas dos padres aos colonos. Realmente, em decorrência da organização e ação provenientes das reduções jesuítas, perdiam os vizinhos encomenderos paraguaios a possibilidade de prosseguirem a exploração econômica, nas condições da região. De fato, excedentes de produção só podiam ser obtidos através do trabalho indígena. Tinham, assim, os colonos, cerceadas todas as possibilidades de produção mais ampla e, até a constituição de excedentes necessários às atividades de troca e expansão das culturas"... Este problema do conflito entre os colonos e os jesuítas também aparece no último parágrafo de seu trabalho:

"O monopólio da mão-de-obra indígena, por eles efetuado, teria de ocasionar conflitos graves com os colonos, como ocorreu na Província do Itatim. Esses entrechoques constituem o motor central dos acontecimentos de maiores consequências na região. Não puderam ser eludidas as lutas pelo controle da mão-de-obra em face das características locais da economia. Na realidade, a única forma de produção e atividades econômicas da área, por largo período, teria de se basear nos recursos naturais e no trabalho compulsório e organizado dos indígenas. Pode-se perceber a importância da questão, pela evidência de ter sido a maior responsável pelos principais acontecimentos ocorridos na história do Itatim colonial".

Nesse conflito de interesses, normalmente, os padres da Companhia levavam vantagem. Regina nos explica os motivos: "Protegiam, portanto, seus índios, burlando os direitos adquiridos pelos colonos paraguaios. Mas como o trabalho indígena revelava-se indispensável às atividades econômicas, em geral, apesar das inúmeras Cartas Régias proibindo a "encomenda" e a prestação de serviço pessoal, os vizinhos encontravam sempre meios de obter índios de mita. A burla à proibição era facilitada pela sempre oscilante e imprecisa legislação dos reis da Espanha. Oscilação da legislação que decorria, sobretudo, do conhecimento dos interesses em jogo, e permitir atender à imperiosa necessidade de mão-de-obra servil". Também, nesse período a Coroa espanhola vivia uma crise meio permanente.

O livro está organizado em quatro partes, a saber: Parte I. Enquadramento espaço temporal dos Itatim, com dois capítulos: 1. Âmbito geográfico do Paraguai e localização do Itatim. 2. Problemas de acesso e ocupação do território.

Parte II. As estruturas sócio econômicas do Paraguai, com três capítulos: 1. O problema da mão-de-obra e a política "encomendera". 2. Relações de produção e comércio: os entraves coloniais. 3. Decadência de Assunção.

Parte III. As Missões Jesuítas, com dois capítulos: 1. Chegada dos jesuítas na região platina: a ação da Companhia de Jesus. 2. Desdobramento do trabalho missionário no Paraguai.

Parte IV. Os jesuítas no Itatim, com três capítulos: 1. As reduções jesuíticas do Itatim. 2. Economia e organização das missões do Itatim. 3. Considerações gerais sobre a economia paraguaia e as missões do Itatim. Além de introduções e conclusão, por óbvio. Também chama particular atenção o número de notas e referências bibliográficas, apresentadas após cada um dos capítulos. Um notável trabalho bibliográfico.

Para bem e melhor situar o livro, apresento a primeira parte da orelha do livro: "Este estudo parte das estruturas geográficas para, depois, examinar a organização sócio econômica da região e as principais bases das missões jesuítas na área. A abordagem é de especial importância, dada as peculiaridades da colonização ibérica na época. A área, no Pantanal Matogrossense, fazia parte da Província do Paraguai mas, depois, seria região do Brasil. As expedições que localizaram as minas do Potosi, em outra direção, provocaram o isolamento do Itatim e uma situação muito desfavorável à colonização, apenas iniciada pelos espanhóis. O núcleo paraguaio foi quase abandonado e permaneceria como região marginal, praticamente excluído do comércio e das trocas, sobretudo em termos mundiais".

Vale muito conferir este trabalho, que, por sinal, teve continuidade num trabalho de doutorado na Universidade de Paris, sob orientador do historiador Ruggiero Romano, como lemos na orelha da contracapa. E, ao pai Firmino, os meus agradecimentos pelo livro.