sábado, 8 de abril de 2017

Fausto de Goethe. 2. O livro.

Fazer uma resenha de Fausto, deve ser um ato de ousadia tão grande, quanto o foi para Goethe escrevê-lo. Ele consumiu cerca de sessenta anos de sua longa existência para escrevê-lo, abandoná-lo, retomá-lo, modificá-lo, reinventá-lo, até que enfim, ainda que insatisfeito, lacrá-lo e deixá-lo como herança para a humanidade. Do que trata? Como toda grande obra literária, ela trata do humano, retratado em suas mais diferentes situações. Uma obra, com certeza, escrita com muito cuidado.
"É preciso abraçar a volúpia, fartar-se de prazeres e não ter medo da morte". Seria uma síntese de Fausto?

Tive enorme dificuldade em lê-lo. Talvez a falta de hábito da leitura da poesia! Mas a expressão da arte é também uma das grandes finalidades da obra. Antes de mais nada, quero deixar marcadas duas frases, entre tantas outras, que anotei durante a leitura. Uma é do início e outra do final do livro. A do início afirma, na voz do Altíssimo, ao permitir a celebração do pacto entre Mefistófeles e Fausto, que "erra o homem enquanto a algo aspira". A do final vai na mesma direção. As vozes que a proferem é a dos anjos, recebendo a alma imortal de Fausto "Quem aspirar, lutando ao alvo, à redenção traremos". Assim, a insondável aventura humana está plenamente liberada. O altíssimo permite e os anjos celebram. Que maravilha!

Como não pretendo cometer muitos erros nesta resenha, busco voz mais autorizada para fazê-lo. Será a de Antônio Houaiss, buscada no prefácio da 4ª edição da Itatiaia (1997), que tem tradução de Jenny Klabin Segall. Foi esta a edição que eu li. A ousada tradução mantém a forma do verso. Mas vamos a síntese do grande mestre.

"Na primeira parte do Fausto, publicada em 1808, o nó da trama é o pacto de Fausto com Mefistófeles, pelo desejo de saber e pela sede de gozar. Após seduzi-la, abandona Margarida, que desesperada, mata o filho, é condenada à morte e expira nos braços de Fausto, redimida pelo arrependimento e salva em eternidade. Na segunda parte, cuja redação efetiva deve estar entre 1826 e 1832, o nó da ação é a aposta contratada entre o Senhor, que afirma que Fausto se salvará, e Mefistófeles, que espera degradar Fausto à condição de uma besta. Fausto é nela o símbolo da humanidade, que erra enquanto age, mas que deve agir para atingir o ideal que ela mesmo entreviu. Fausto é salvo porque jamais cessou de tender para um ideal. Capsularmente, é uma síntese mínima e despojadíssima da ossatura  ideológica do poema-drama, sob muitos aspectos sui gêneris na literatura universal, seguramente uma das dez obras basilares da humanidade verbalizada".

Quanto à forma, a estrutura também é complexa. Como visto, o livro é apresentado em duas partes. É uma peça de teatro em forma de poesia. Tem dois prólogos. Uma apresentação da equipe do teatro, diretor e atores a saudar o público, o prólogo no teatro - e o prólogo no céu, onde entram em cena o Altíssimo, os anjos e Mefistófeles. Nele o Altíssimo dá permissão para que Mefistófeles celebre o famoso pacto com Fausto, permitindo assim a realização, mesmo errando, das aspirações humanas.

Quais seriam então as aspirações humanas? Vamos vê-las pelas transformações que Mefistófeles provocou em Fausto. A volta à juventude, enveredar pelo desejo do conhecimento e a busca pelos prazeres do amor, personificados na beleza da jovem Margarida, a pequena Gretchen. A evocação à cena do Gênesis, da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, talvez seja a mais significativa de todas as explicações para os desejos humanos. Vou buscar a cena bíblica, no Gênesis, sobre a culpa original:

"A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse à mulher: É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim? A mulher respondeu-lhe: Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Vós não comereis dele, nem o tocareis, sob pena de morte. - Oh não! tornou a serpente - Vós não morrereis! Mas Deus bem sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente".

Assim começou a humanidade na versão da cultura ocidental. Assim procurou se construir um mundo de conformidade social sob os instrumentos da hierarquia e da obediência em constante oposição com o mundo das peculiaridades e desejos do indivíduo. Assim o mundo passou a ter uma versão oficial e um mundo meio que subterrâneo, do qual brotariam os mais recônditos desejos, o mundo daquilo que seria, para o mundo oficial, o mundo dos pecados. Mas o indivíduo jamais resistiu a ser "como deuses, conhecendo o bem e o mal".

Este caminho da humanidade, de sua cultura, de seus tropeços e avanços é construída no Fausto. O velho Fausto, rejuvenescido pelo pacto com Mefistófeles, escrito com sangue, lhe permitiu a volta à juventude e à paixão do amor. Mas também às suas desventuras. Lhe permitiu o conhecimento das ciências, o avanço da técnica e a cura de muitos dos sofrimentos humanos. Mas traz também as crises e as agitações sociais. E o humano, finito e transcendente, nunca se satisfaz. Sempre busca o mais. Em cinco atos, este mais é buscado, em meio a todas as contradições do mundo.

O que sobra da obra? No amor e na ousadia da busca está a redenção. É por ele que Margarida é redimida e Fausto é recebido pelos anjos no Paraíso. Existe uma unidade indivisível  entre o bem e o mal e, o transcendente está sempre em constante busca. O mundo se move em meio a contradições. Obra de um gênio e que, ainda por cima, busca na arte a sua forma de expressão. Contei a um amigo sobre o pacto de Fausto e ele retrucou de imediato. Mas onde é que eu encontro este tal de Mefistófeles? O ser humano é efetivamente universal.

Foi com certeza a obra mais difícil que já li e tive e tenho enormes dificuldades na sua compreensão total. Quero ainda registrar que a obra não foi recebida com unanimidade. Jorge Luís Borges assim a ela se refere, em carta ao amigo Bioy Casares, em 1971, "Não te parece que (Fausto) é o maior blefe da literatura"?


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