sábado, 28 de maio de 2016

A República Comunista Cristã dos Guaranis. Clóvis Lugon.

Clóvis Lugon é um padre jesuíta suíço. Creio não cometer nenhum erro ao afirmar que é ele o autor da melhor obra que foi escrita sobre a extraordinária façanha dos padres jesuítas paraguaios que conhecemos pelo nome de reduções ou simplesmente missões. Em fevereiro realizei o sonho de conhecer as terras missioneiras, tanto as do Paraguai, quanto as da Argentina e as do Brasil. Foi uma experiência extraordinária. Ela se completou posteriormente com a leitura de vários livros, que adquiri em São Miguel, nos stands de artesanato, junto às ruínas.
A melhor obra sobre a experiência das missões. Uma obra apaixonada.

Estas leituras me remeteram à obra de Clóvis Lugon  A República Comunista Cristã dos Guaranis. Já na capa interna está anotada a delimitação do tempo estudado, que é o tempo da experiência missioneira. 1610 - 1768. 1610 seria a data inicial e 1768 a final. Esta data de 1768 marca a expulsão dos jesuítas do território espanhol. Antes, já em 1759 eles tinham sido expulsos do Brasil. A experiência das missões, tidas por Umberto Eco como um santo experimento, são uma experiência que deve ser integralmente creditada aos jesuítas paraguaios. Todos os territórios ocupados pertenciam à Espanha. É importante levar também em consideração a data de 1750, o ano da realização do Tratado de Madri, quando foram trocados os sete povos das missões pela Colônia do Sacramento. Por ele, portugueses e espanhois se uniram contra os guaranis. Esta guerra deu ao Rio Grande do Sul um santo que não é Santo, ou seja, um santo popular. São Sepé Tiaraju. Esta data marca o declínio da experiência, que teve como data limítrofe o ano de 1768. 

Também é importante guardar a data de 1641, ano em que ocorreu a batalha de M'bororé, quando os guaranis venceram os bandeirantes e puderam viver, por mais de cem anos, em relativa paz, proporcionando a rica experiência, examinada à exaustão, no livro do padre Lugon. Encontrei alguns adjetivos qualificando a obra: profunda, instigante, polêmica e questionadora. Da minha parte, acrescentei mais um, apaixonada. A obra é uma defesa mais do que apaixonada dos padres jesuítas, ordem a qual Lugon pertencia, do comunismo e do cristianismo. É também uma obra extremamente erudita. Dá para dizer que ele leu tudo o que fora produzido sobre o tema até a data de sua escrita. Ela apareceu primeiramente em Paris, em 1949 e, no Brasil recebeu a sua primeira edição, pela Paz e Terra, em 1968.
Um mapa da região missioneira. Uma experiência dos jesuítas paraguaios.

A polêmica da obra começa pelo título, colocando lado a lado três palavras que seguramente não tem conceituações em uníssono: República - comunista e cristã. A defesa do comunismo é uma das mais bonitas que eu já encontrei. Constantemente ele alude aos valores superiores da civilização comum, coletiva dos guaranis e traça paralelos com a restante das colonizações ocorridas em todas as Américas, mostrando o genocídio dos indígenas e a escravidão dos negros. É, repito, uma defesa apaixonada e muito bonita, bem argumentada. Um livro profundamente humano.

O livro se divide em quatro partes. Ele não atribuiu títulos a estas partes, apenas para os capítulos. Vou eu então tentar colocá-los sob a forma de uma ideia. Na primeira parte são mostrados os antecedentes e os primeiros dados da experiência. Nela figuram os seguintes capítulos: I. Os Guaranis antes da chegada dos Jesuítas; II. Fundações e III. Devastações dos Paulistas - Grandes Migrações. Teria a destacar, desta parte, a devastação dos paulistas, a sua extrema crueldade e as grandes migrações que eles provocaram. A crueldade foi tamanha, que os guaranis, inclusive, ganharam o direito de se armar, direito concedido por parte do rei da Espanha, para a sua defesa, atendendo a uma solicitação dos jesuítas (padre Montoya). Lembro da expressão irada da guia turística nas ruínas de Trinidad, no Paraguai: Ah! Estes bandeirantes!
Todas as reduções obedeciam mais ou menos a mesma planta.

A segunda parte é dedicada a sua organização institucional. Vejamos os capítulos: IV. Situação e aspecto das Reduções - População; V. A Organização Política; VI. O Exército e VII. Relações  com a Coroa da Espanha. Aqui você encontras as principais respostas para a sua curiosidade. Os números são impressionantes e a organização simplesmente foi fantástica.

A terceira parte continua respondendo às nossas curiosidades fundamentais, agora mais sobre a sua organização comunitária, sobre o seu cotidiano. Vejamos: VIII. A Agricultura; IX. O Artesanato e a Indústria; X. As Artes; XI. O Comércio e a Moeda; XII. O Regime de Propriedade; XIII. O Trabalho e a Repartição da Renda; XIV. A Vida Social e XV. A Vida Religiosa. Aí se localizam, no meu entendimento, os dois mais belos capítulos do livro. O que fala sobre o regime de propriedade e sobre o trabalho e a repartição da renda. Apenas uma curiosidade: trabalhavam entre seis e oito horas por dia. Aqui são simplesmente destruídos os argumentos da superioridade do regime individual da propriedade e também os ditos valores atribuídos à meritocracia. O interesse coletivo, do bem comum é mostrado como uma forma moral superior de organização da sociedade. Vejamos uma descrição:
Trinidad, no Paraguai. A mais bem conservada das Missões. Patrimônio da humanidade.


"De uma ponta a outra de sua história, a República Guarani viveu sob o regime de propriedade comum das terras. A propriedade individual do solo nunca se concretizou em parte alguma de seu território. Comprar, vender, alugar ou legar a mais modesta porção de terra, utilizar o trabalho de outrem para benefício e lucro próprio, transformar o solo em instrumento de dominação ou de exploração do homem pelo homem, são tantas outras operações que se mantiveram desconhecidas até ao fim. O lote vitalício que se tentou introduzir, encontrou a indiferença total dos guaranis, muito satisfeitos com seu regime de comunidade integral. A maioria dos padres, que só agiu sob pressão do rei e ameaça de seus adversários, também não insistiu, de resto, compreendendo muito bem que o desenvolvimento dos interesses egoístas acarretaria a decadência religiosa e social de suas comunidades, edificadas sobre o alicerce da solidariedade".

O interesse superior comum, que transcende o individualismo egoísta, também está muito presente na frase final do capítulo sobre o regime da propriedade: "Os guaranis, logo teremos ocasião de observar, estavam há muito tempo apaixonadamente vinculados às suas casas, às suas igrejas, às suas oficinas, às suas magníficas plantações, que certamente não estavam desprovidas de valor, aos seus rebanhos, a todos os seus bens, possuídos sem avareza, em comum".

A quarta parte seria uma análise do pós 1768, onde ganham força as guerras guaraníticas  e o esforço na destruição da rica experiência coletiva para a implantação das experiências coloniais tradicionais do genocídio da população indígena e da escravidão dos negros. Para isso os seus protetores foram expulsos destas terras. Também entra nos processos que conduziram estes povos às lutas de suas independências. Os capítulos são os seguintes: XVI. Assaltos do Mundo Colonial (1640-1750) - Méritos dos Jesuítas. XVII. Tratado dos Limites e Guerra Guarani - Expulsão dos Jesuítas e XVIII. Trágico Epílogo. Segue ainda uma conclusão e uma rica indicação bibliográfica. Uma observação instigante e intrigante. Nenhum guarani se tornou padre ou estudou na universidade de Córdoba, a grande universidade argentina dos jesuítas.
As ruínas de São Miguel, a melhor infraestrutura turística.


Mostro ainda duas frases, praticamente as primeiras da apresentação, que bem refletem o espírito da obra. "A república Guarani era, sem dúvida, comunista demais para os cristãos burgueses e cristã demais para os comunistas da época burguesa" e "Desde que se queira revelá-la, retirando-a do esquecimento sem procurar encobrir sua dupla luz, ela nos aparece na História como a mais fervorosa das sociedades cristãs e a mais original das sociedades comunistas até à criação da União Soviética".

Um último fato a observar. É impressionante o quanto este experimento comunista e cristão mereceu a atenção do mundo ilustrado da época. Praticamente todos os sábios da época se ocuparam dela. Uma visita às terras missioneiras também nos dá uma bela ideia do que foi este experimento, denominado por Umberto Eco, como já vimos, como um santo experimento.


8 comentários:

  1. Professor, sabes informar se tem alguma agência de turismo especializada neste tipo de passeio cultural.Ou para qual cidade teremos que ir primeiro dentro de um roteiro. Abraços!

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  2. Bom dia, José Marcelino. Tem boas informações no Portal das Missões. Nós fomos de carro e começamos pelo Paraguai. A cidade de Encarnación é a grande referência. As reduções estão próximas. Na Argentina, a cidade referência é Posadas. As reduções estão num entorno de cem quilômetros. Entramos no Rio Grande do Sul por São Borja. Valeu muito a pena. O livro é um maravilhoso complemento. Também vale muito a pena a leitura de "Sepé Tiaraju - Romance dos Sete Povos das Missões", de Alcy Cheuiche. Agradeço o seu comentário e espero ter atendido a sua solicitação. Nas ruínas existem ótimos guias.

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  3. Muito interessante, o lado B da história do Brasil/ america do sul.
    Pretendo comprar esse livro logo. Você indica alguma editora? Obrigado

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    1. Sim, meu amigo. Da grande editora Paz e Terra. Ela sempre abrigou autores ligados à teologia da libertação. Passou por várias mãos e hoje integra o Grupo Editorial Record. Agradeço a sua manifestação.

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  4. Leo, primeiramente agradeço o seu comentário. Acebei de consultar o site oficial da Estante virtual. Ele está entre 11 e 80 reais.

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  5. Parabens pela brilhante contextualizaçao acima, Professor Elói. Eu conheci as reduções do lado Paraguayo, em San Ignacio Guasú em 2002 e as reduçoes de Sao Miguel das Missoes ha poucos anos. Falta ainda conhecer as reduçoes do lado argentino. Abs.

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    1. Professor Márcio. Primeiramente agradeço o seu elogioso comentário. São duas experiências maravilhosas: conhecer in loco essa fantástica experiência de organização social e ler o fabuloso livro do padre Clóvis Lugon.

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