quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Memórias da casa dos mortos. Fiódor Dostoiévski.

"As cadeias caíram. Eu as apanhei... Queria tê-las nas minhas mãos, olhá-las pela última vez. Admirava-me agora que ainda há um instante as trouxesse nos pés.
- Bom, vão com Deus! Com Deus! - Diziam-me os presos com vozes roucas, entrecortadas, mas nas quais me parecia vibrar agora um pouco de alegria.
Sim, com Deus! Liberdade, vida nova; ressurreição de entre os mortos! Que momento glorioso!"
Box com dois livros. O Idiota e Memórias da casa dos mortos, ou seja, a prisão.

Assim Dostoiévski termina o seu Memórias da casa dos mortos, a sua primeira grande obra. O livro é totalmente autobiográfico, retratando os quatro anos de prisão em Omsk, na Sibéria. Ali sofreu a privação da liberdade, passou fome e frio, passou por trabalhos forçados e inúteis, sofrendo maus tratos e tendo a solidão como companheira mais constante. Passou este tempo em absoluta conformação e reconhecendo, inclusive, como justa esta sua prisão. Ela representou uma total transmutação na vida do grande escritor.

A Rússia, neste tempo, convivia com um dos regimes mais retrógrados dos tempos modernos. A prisão de Dostoiévski se deu por motivos políticos, de rebeldia contra o regime, especialmente contra a censura. A prisão se deu no ano de 1849 e a pena foi a capital. Quando esteve para ser executado, a pena foi comutada por prisão, com trabalhos forçados, por dez anos, na Sibéria. Lá chega em  janeiro de 1850 e saindo em março de 1854. A liberdade plena e a volta a Rússia se dará apenas a partir de 1859. O livro começa a ser escrito em 1855 e a publicação aparecerá em 1861.

Acima de tudo, o livro é uma grande reportagem literária. Driblou a censura fazendo-se passar por um criminoso comum, por assassinato de sua esposa. Na verdade, ele era um preso político. O livro não se constitui de denúncias, mas de descrição fiel do ocorrido na prisão e na força da descrição psicológica de seus companheiros, presentes e caracterizados em seus grandes romances. Na convivência com estes criminosos traçou o perfil exato destes personagens, donde lhes vem toda a força e autenticidade.

O livro começa por uma descrição da Sibéria e de uma análise das possibilidade de atração deste longínquo lugar. Salários dobrados e terras de muita fertilidade atraem funcionários e colonos. Na "Casa dos mortos", ou na prisão ele aprendeu a ser paciente e a tudo se habituou. Ali havia 250 presos que haviam cometido toda a série de crimes. Ali fez as suas primeiras constatações, como esta, de fundamental importância: os castigos físicos não melhoram as pessoas. Ocorre sim, o seu contrário, degenerando quem castiga e quem é castigado. A ausência do trabalho, em seu significado verdadeiro, e não no forçado se constitui no principal fator de degradação. A aguardente, por contrabando, está onipresente, assim como angustiantes gritos e delírios noturnos.

Três capítulos são destinados às sua primeiras impressões. Vários presos são descritos bem como a natureza de seus crimes. De maneira geral, os presos, constata, foram pessoas muito mimadas na infância. Os agentes penitenciários são os grandes candidatos a ocuparem novas vagas. Eis outra constatação. Alguns presos, especialmente os que lhe foram mais próximos, merecem descrição particular. É emocionante a cena em que Ali, um dos presos, é alfabetizado. Para isso, depois de terem arranjado papel, tinta e pena, usam do Evangelho. Vejam o seu agradecimento: "Fizeste mais por mim", dizia, "do que o meu pai e minha mãe juntos; fizeste de mim um homem. Deus há de pagar-te e eu nunca te esquecerei". Os fonemas da alegria.

A descrição continua com dois capítulos dedicados ao primeiro mês e um a aquisição de novos conhecimentos, ocupados, essencialmente, na descrição dos colegas da prisão. A descrição de um judeu e uma festa da noite de natal ganham também grande destaque. Me chamou particular atenção, no entanto, um capítulo sob o título de "O espetáculo". Trata-se de uma apresentação teatral. Dostoiévski não contém a admiração: " Quantas energias e quanto talento se perdem às vezes, aqui, na Rússia, inutilmente, no cativeiro e nos trabalhos forçados".

Três capítulos são ocupados com a descrição do hospital. São deprimentes. São descritos os castigos físicos e o atendimento médico que recebem os vergastados, após a aplicação dos castigos. Os verdugos são descritos em sua deprimente função e que, normalmente, cumprem com satisfação, chegando até o entusiasmo. Quem quiser ver sobre a profissão de algoz ou de verdugo, recomendo o capítulo O Hospital - Conclusão (páginas 251- 271).

Em suas observações não passa despercebido a necessidade da força física e moral. Em função disso até os trabalhos forçados adquirem um certo gosto. E a força moral vem com a perspectiva da liberdade, nunca ausente: "E quem sabe que o processo psicológico se operaria então na sua alma! Sem um objetivo pelo qual tenha que esforçar-se, nenhum homem pode viver. Quando perdeu a sua finalidade e a sua ilusão, o homem transformou-se muitas vezes, com o aborrecimento, num monstro. O fim para todos nós era a liberdade e a saída do presídio" (Página 322). Eis a origem de seus grandes personagens criminosos.

A descrição passa por praticamente todos os aspectos possíveis de ocorrerem num presídio. As relações com a hierarquia, as relações entre os pares, as relações com os animais, pelos quais nutrem grande afetividade, pelas tentativas de fuga e, obviamente a perspectiva do grande dia da saída, da reconquista da liberdade. "Sim, com Deus! Liberdade, vida nova; ressurreição de entre os mortos! Que momento glorioso!", como já vimos na frase final do livro e de abertura desta resenha. E uma grande questão, para encerrar. Foi a prisão - que transformou Dostoiévski no grande escritor que ele foi?

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