quarta-feira, 10 de abril de 2019

Os Demônios. Fiódor Dostoiévski.

Ler é acima de tudo contextualizar. Isto se torna verdade, ainda maior, quando estamos diante de obras complexas, como é o caso de Os Demônios de Fiódor Dostoivski (1821- 1881). A Rússia, ao longo de todo o século XIX, passa pelas convulsões sociais e políticas que a Europa ocidental passara no século anterior. É a era das revoluções burguesas a marcar o fim do tsarismo, como era denominado o absolutismo na Rússia. Tomo como data referência o ano de 1861, ano da abolição do regime de servidão. Na Rússia estas convulsões atingem o seu auge, apenas no século seguinte, com as revoluções de 1917, sob o comando de Kerensky e de Lênin.
Para muitos, a obra prima do autor.

Quando mais jovem, Dostoiévski participou ativamente de grupos revolucionários socialistas, fato que o levou à prisão em 1849 e à condenação à morte. Pouco antes de ser cumprida esta sentença de morte, ela foi comutada pela prisão perpétua na Sibéria, acrescida da prática de trabalhos forçados. Dostoiévski cumpriu parte da pena e foi, mais uma vez beneficiado por indulto, experimentando  de novo a liberdade. A prisão tornou-o um homem mais paciente e profundamente observador, além de  mudar radicalmente as suas convicções.

Tornou-se profundamente conservador e extremamente católico. Para a prisão, conta-se, levara um único livro, o Evangelho. A observação rigorosa e detalhada forneceu personagens exemplares para o escritor. As memórias destes anos de infortúnio estão registradas na Memória da casa dos mortos, com relatos impressionantes. O grande escritor estava sendo forjado. Deixo a resenha deste memorável livro. http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/12/memorias-da-casa-dos-mortos-fiodor.html

Confesso que tive enorme dificuldade para ler Os demônios.  Além dos nomes, o russo sempre usa três, dois pré nomes e o sobrenome. Vejamos, como exemplo, Piotr o personagem principal Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski. Ora ele é chamado pelo nome, pelos dois nomes, ou então pelo sobrenome. E os personagens do romance/crônica são inúmeros. Além disso, você precisa de toda uma contextualização da história e dos movimentos político/culturais russos deste período para se localizar. Não gosto de ler resenhas antes da leitura de um livro, porém, neste caso específico, recorri a esse expediente, além de elaborar uma relação com os nomes completos de todos os principais personagens. Facilitou bastante.

O próprio livro que eu li, da editora 34 com tradução direta do russo de Paulo Bezerra, tem dele também, ao final do livro, dez páginas de um pequeno ensaio/resenha, contextualizando a obra. Usarei deste texto para trazer elucidações sobre o complexo livro. O tempo histórico é de formação de grupos, sob orientação externa, com as mais diferentes tendências revolucionárias. No caso específico serão as ideias de Bakunin, bem ou mal assimiladas.

Paulo Bezerra nos relata que no dia 21 de novembro de 1869 ocorreu o assassinato de um jovem estudante por um quinteto de uma organização clandestina intitulada Justiça Sumária do Povo. Este quinteto era comandado por Nietcháiev. O jovem assassinado queria deixar a organização. Este assassinato é seguido por outros e também por outros atos terroristas, como o incêndio de um bairro por operários de uma fábrica. Os relatos ocorrem, não na capital, mas em província distante. Havia na Rússia da época milhares destes quintetos. Paulo Bezerra observa que Os demônios é o primeiro romance que aborda o tema do terrorismo. Nietcháiev ganha o nome de Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski e em seu entorno se constrói o cerne da crônica de época ou o famoso romance.

As descrições tem forte carga nas tintas. O escritor não poupa a ação dos grupos e mostra suas contradições, especialmente, a enorme distância entre aquilo que pregam e o que fazem. Quem tem um pouco de prática em militância política sabe do que o escritor está falando. Dostoiéski relata em carta, que quis dar ao livro um caráter panfletário, nem que comprometesse a estética de sua obra.  Mas também nisso ele foi genial. Ganhou a crônica política e a história. Também inovou na forma narrativa. Demorei um pouco para descobrir quem era o narrador. Paulo Bezerra assim descreve a trajetória do romance: Do 'panfleto' á obra prima. Um crítico de esquerda qualificou o escritor como possuidor de um talento cruel. Sob o regime de Stálin a obra ficou por muito tempo proibida.

As críticas são ácidas, especialmente no que diz relação às principais categorias da política como a liberdade, a igualdade e a identidade. Existe uma forte aproximação com Nietzsche. Mas voltamos ao tradutor para definir os objetivos do grupo e os meios para consegui-los: "Seu objetivo final é conseguir transformações anarcorrevolucionárias de toda a Rússia. Para atingir tais fins, são indispensáveis a subordinação irrestrita e incondicional de todos à direção do movimento, o uso de todos os meios, a espionagem mútua, o derramamento de sangue para cimentar a unidade dos participantes".

Mais adiante mostra as contradições dos dirigentes dos quintetos: "Dostoiévski o vê (Nietscháiev ou Piotr) em seu contraditório movimento interior e mostra em Os demônios como grandes e generosas ideias, uma vez manipuladas por indivíduos desprovidos de consciência cultural e princípios éticos, podem se transformar na sua negação imediata, assim como a utopia da liberdade e da felicidade do homem pode  degenerar na sua negação, no horror, na morte, na destruição. Grandes ideias, quando geridas por tipos intelectualmente broncos, acabam em farsa ou paródia. É o que ocorre com Piotr Stiepánovitch, que em diálogo com Stavróguin declara cinicamente que é 'um vigarista e não um socialista'". Paulo Bezerra segue falando que para o escritor é "impossível alguém liderar à altura uma grande causa sem compreender a essência profunda da natureza humana e sem prezar a liberdade do homem". Dostoiévski, apesar de, agora conservador, não abdicara de nobres sentimentos humanos, com o seu sonho de uma Idade de Ouro.

Paulo Bezerra continua mostrando  como o escritor detona o líder e os membros do quinteto: "Não os censura pelas ideias em si (e isso ele declara em várias oportunidades), mas pelo inacabamento de suas teorias, pelas lacunas aí deixadas, que acabaram degenerando na sua negação, no simulacro, na sua impostura. O simulacro, o quinteto de Piotr Stiepánovitch, é a redução das várias tendências de um movimento à sua caricatura grotesca sob a égide de indivíduos possuídos pela ideia do poder pelo poder, que, querendo autoafirmar-se a qualquer custo, ultrapassam todos os limites, obliteram todas as objeções teóricas e obstáculos morais e criam uma engrenagem que transforma em 'salvadores' e 'vanguarda' da humanidade indivíduos sem consistência moral e ideológica nem condição cultural para tais papéis".

Para terminar, uma passagem narrada por um dos membros do quinteto, Nikolai Stavróguin: "Na época, mantive durante certo tempo três apartamentos. Em um deles eu mesmo morava com cama e criadagem, e na ocasião morava também Mária Lebiádkina, hoje minha legítima esposa. Aluguei os outros dois apartamentos por mês para amoricos". Do que você se lembrou? Eu lembrei de um asqueroso personagem brasileiro que dizia usar o auxílio moradia de deputado para "comer gente". Digo isso também para emparelhar com os movimentos de direita.

Deixo ainda a frase em epígrafe: "Ora, andava ali, pastando no monte, uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que lhes permitisse entrar naqueles porcos. E Jesus o permitiu. Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do lago, e se afogou. Os porqueiros, vendo o que se passara, e foram ter com Jesus. De fato acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram dominados pelo terror. E algumas pessoas que tinham presenciado os fatos contaram-lhes também como fora salvo o endemoninhado". Lucas, 8, 32-6. Também é citada várias vezes a passagem do Apocalipse sobre o quente, o frio e o morno. Dostoiévski abominava a neutralidade.

2 comentários:

  1. Porque tenho notado - murmurou-me Stiepan Trofímovitch naquela ocasião - que todos esses socialistas e comunistas desesperados são ao mesmo tempo incríveis unhas de fome, compradores, proprietários, e a coisa chega a tal ponto que quanto mais socialistas, quanto mais avançados, mais intensa é a sua postura de proprietários...

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  2. Paulo, é impressionante ver o quanto Dostoiévski mudou o seu posicionamento político. A sua crítica é ácida. Agradeço o seu comentário.

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