segunda-feira, 25 de maio de 2020

Hamlet. Shakespeare.

Há muito que eu queria ter lido. De tanto ter ouvido falar da obra, de sua importância, de seus significados, fiquei com receio. Em meio a uma fila de livros, o pus na frente. Sobre a sua importância e significados, tudo é verdadeiro. Quanto a sua leitura, não é preciso ter medo, não é difícil. É óbvio que não é para principiantes. Uma boa contextualização histórica é fundamental. Estou me referindo a Hamlet, uma das obras primas de William Shakespeare. Li a edição da L&PM Pocket, com tradução de Millôr Fernandes. Essa tradução é muito elogiada.
A edição de Hamlet da L&PM Pocket, com a elogiada tradução de Millôr Fernandes.

Vamos a uma pequena contextualização. O dramaturgo inglês nasce em 1564 e morre em 1616. O teatro atravessa grande esplendor e Shakespeare será o seu maior nome. O Bardo será o artífice que melhor conseguirá expressar a condição humana. É nisso que reside toda a sua grandeza. Expressa a condição humana em uma nova era, a era do Humanismo e do Renascimento. Maquiavel (1469-1527) já arrebatara o poder aos céus e o confiara aos humanos, em toda a sua grandeza e miséria. Marca a passagem de uma era centrada no teocentrismo para o antropocentrismo. O homem voltará a ser "a medida de todas as coisas". Ganhará vida própria, autônoma.

Shakespeare será o grande cronista do exercício do poder, destes novos tempos. O dramaturgo tanto se coloca ao lado desse poder, como o criticará asperamente, como o será, no caso específico de Hamlet. Logo depois virá o Iluminismo e surgirão os Estados/Nação modernos. Hamlet era o rei da Dinamarca. A peça se desenvolve em cinco atos. Ela gira em torno do assassinato do rei, pelo seu irmão. Esse tomará, tanto o poder, quanto a rainha viúva, tomando-a como esposa. Hamlet, filho do rei assassinado e da rainha que toma o novo rei como esposo, tramará a vingança.

O primeiro ato tem cinco cenas. É uma espécie de introdução, que conta sobre a vitória do rei dinamarquês sobre Fortinbrás, da Noruega. Conta também sobre o assassinato do Rei. Este aparece a Hamlet sob a forma de fantasma, queixando-se que perdera a Coroa, a rainha e a vida. Entram em cena os demais personagens importantes: o rei, a rainha, Polônio, o principal dos cortesões, Laertes e Ofélia (filhos de Polônio), os amigos alemães de Hamlet, Rosengrantz e Guildenstern e, ainda, o amigo e confidente, Horácio. Preste atenção nesses personagens.

O segundo ato se desenvolve em duas cenas. Os personagens mais importantes serão Polônio e os filhos, junto com Hamlet. Chega uma companhia de teatro alemã para encenações na corte. Hamlet dá visíveis sinais de loucura. A companhia encenará uma peça sob o título de "O assassinato de Gonzaga". Hamlet está em busca de provas do assassinato de seu pai. As quatro cenas do terceiro ato certamente são a parte central ou nuclear da peça. Os atores iniciam a sua apresentação. As cenas certamente surpreenderão o leitor. O rei manda suspendê-la. Na segunda cena está a famosa passagem do "ser ou não ser - eis a questão". Na cena quatro, se me permitem, eu destaquei uma frase de Hamlet para Polônio, sobre a subserviência: "Ser prestativo demais - tem seus perigos".

Sete cenas rápidas marcam o quarto ato. A loucura de Hamlet cresce em intensidade. Há um novo assassinato e um suicídio. Rei e rainha, além de Hamlet, também tramam vingança. O cerco começa a se fechar. Isso ocorrerá nas duas cenas do quinto ato. Mais não posso narrar, a não ser, dizer que se trata de uma tragédia. Mas a peça vai para muito além da sua narrativa trágica, a força maior está nos monólogos de Hamlet, onde estão expressos os dramas do homem moderno, reflexos da condição humana, em que os porões profundos do ser humano começam a emergir, buscando vasão.

Na contracapa da edição da L&PM Pocket lemos: "Hamlet, de William Shakespeare é uma obra clássica permanentemente atual pela força com que trata de problemas fundamentais da condição humana. A obsessão de uma vingança onde a dúvida e o desespero concentrados nos monólogos do príncipe Hamlet adquirem uma impressionante dimensão trágica". Ninguém precisa se assustar com a grandeza de Shakespeare. Ele apenas nos apresenta o melhor relato do que é a condição do humano em todas as suas dimensões. Seria a própria condição humana uma grande tragédia?

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Os engenheiros do caos. Giuliano Da Empoli.

Em primeiro lugar quero indicar a fonte para essa leitura. Foi uma indicação de João Pedro Stédile, que dispensa apresentações. Em segundo lugar, apresentar, além do título, o subtítulo do livro. Os engenheiros do caos - como os fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. O livro, como o título indica, nos apresenta os engenheiros do caos e "o resultado é uma galeria de personagens variados, quase todos desconhecidos do público em geral, mas que vêm mudando as regras do jogo político e a face de nossas sociedades", como lemos na contracapa".
A edição original é de 2019 e a brasileira, pela Vestígio, é de 2020.

Quem são eles e como agem? Eles são apresentados na introdução do livro e os seus "feitos" são narrados ao longo dos capítulos. "Este livro é a história deles", lemos na introdução, onde também temos um breve relato biográfico. É a história de: Gianroberto Casaleggio, do Movimento 5 Estrelas (M5E). De Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit. De Steve Bannon, o fundador da Internacional Populista que conduziu Trump à vitória nos Estados Unidos em 2016. De Milo Yannopoulus, que se associará a Steve Bannon. É a história de Arthur Finkelstein, o conselheiro do ministro húngaro Vicktor Orban, o porta-voz da Europa reacionária e ressentida.

Ainda na introdução lemos: "Para os novos Doutores Fantásticos da política (ou engenheiros do caos), o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos", e prossegue nesse teor:

"Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológica e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre "o povo" e "as elites". No caso do Brexit, assim como nos casos de Trump e da Itália, o sucesso dos nacional-populistas se mede pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos e não apenas dos fascistas". Se Bolsonaro não está na introdução, ele aparecerá ao longo do livro, também como um dos eleitos pelos "engenheiros do caos".

Além dessa preciosa e necessária introdução o livro tem seis capítulos e uma conclusão. Primeiramente apresento os títulos: 1. O Vale do Silício do populismo; 2. A Netflix da política; 3. Waldo conquista o planeta; 4. Troll, o chefe; 5. Um estranho casal em Budapeste; 6. Os "físicos" e os dados. Mais a conclusão: A era da política quântica. Sobra espaço ainda para as notas bibliográficas. O autor, Giuliano Da Empoli, nos é apresentado na orelha da contracapa, "dirige o grupo de pesquisa "Volta", com sede em Milão. Ex aluno da escola Sciences Po, Paris, foi secretário de Cultura da cidade de Florença e conselheiro político de Matteo Renzi (ex-primeiro-ministro italiano). Vive em Paris. Vamos aos capítulos.

1. O Vale do Silício do populismo: Esse vale não fica nos Estados Unidos. Fica na terra dos netos de Maquiavel. Após apresentar os efeitos devastadores da nova maneira de fazer política, o autor entra de forma explícita no tema proposto. É na Itália que se organiza a Internacional Populista. É para Roma que Steve Bannon fazia viagens mensais para se encontrar com Casaleggio e Grillo. Procuram agregar o ódio de todos os raivosos do mundo. Isso só poderia ocorrer na Itália, berço do fascismo e do maior Partido Comunista do Ocidente, portanto, um permanente laboratório. Fala rapidamente da operação "Mãos Limpas", onde juízes, que, antes de mais nada, aplaudiam a si mesmos, destruíram a política tradicional e abriram o caminho para Berlusconi. A Internacional é fundada em 2018, com o Movimento 5 Estrelas (M5E). Os algoritmos substituem a ideologia nos tempos "pós-ideologia". Esse movimento se expandiu e chegou ao Brasil. Na posse de Bolsonaro estiveram presentes Netaniahu e Orban, os dois maiores representantes do movimento na Europa. São contra o mundo das instituições, contra a imigração, o livre comércio internacional, minorias e os direitos civis.

2. A Netflix da política. O tema ainda foca o M5E da Itália. A partir do blog de Casaleggio o movimento se organiza e atua como uma espécie de Partido, impulsionado pelos algoritmos. O que repercute é multiplicado ao infinito. Temas de pouca repercussão ganham toda a evidência desejada. O Partido funciona como uma grande cadeia de lojas, hoje sob o comando de Davide Casaleggio, filho do fundador. O título do capítulo é uma referência a uma frase em que Casaleggio compara os partidos tradicionais com os blokbusters e o M5E e a difusão de suas teses pelos algoritmos, como a Netflix. Entre as teses estão o desmantelamento das instituições, dos políticos tradicionais e o desfazer de reputações. Elegeram 25% dos parlamentares, na primeira eleição de que participaram. Exigem fidelidade absoluta e não se coligam.

3. Waldo conquista o planeta. Waldo é um urso digital, movido por Jamie, especializado em ridicularizar pessoas, especialmente os políticos. Fez enorme sucesso. Waldo torna-se o porta-voz de todos os desalentados. Conta as tramas do Brexit, os artifícios eleitorais utilizados. Para mim, de longe o mais importante dos capítulos. Fala da arquitetura psicológica do Facebook e do Instagram, pela voz de seus fundadores. A simples curtida é um afago no ego, que preenche múltiplas carências. Por eles foi catalizada a raiva e você, de indivíduo, passa a ser legião. Eles promovem um casamento entre a cólera e os algoritmos. Eles permitem o direcionamento dos afetos e sentimentos. Está aí a sua face mais perversa.

4. Troll, o chefe. É outro capítulo precioso que mergulha fundo na cultura americana, a partir das análises de Philipp Roth (Pastoral americana) e das influências da Escola de Frankfurt sobre esta cultura, conferindo-lhe uma visão negativa. Mas antes vamos buscar na Wikipedia a definição da palavra Troll: "pessoa cujo comportamento tende sistematicamente a desestabilizar uma discussão e provocar e enfurecer as pessoas nelas envolvidas". O capítulo mostra a impossível eleição de Trump à presidência dos Estados Unidos, sob a influência dos engenheiros do caos. Steve Bannon que já estava associado a Bretbart ganha a soma de mais um dos engenheiros, Yannopoulos. Este é qualificado pelo autor como um niilista imoral e que  confere um novo sentido à 'liberdade de imprensa" e à "livre expressão", com o poder de falar o que se quer. Sob sua influencia, em primeiro lugar são destruídos os "inimigos" internos do partido. Depois serão mirados os democratas Bill e Hillary Clinton e o presidente Obama, o "não nascido" nos Estados Unidos. Troll e Hastag  agora são palavras incorporadas à política. E o "impossível" é que tornou possível a eleição de Trump, segundo o New York Times. Uma campanha contra o instituído, que somou todos os ódios do país, inclusive, o racismo que parecia sepultado com a eleição de Obama.

5. Um estranho casal em Budapeste. O casal é o ministro Orban e o "engenheiro" Finkelstein. A Hungria é um país propício ao florescimento do ódio. Ao final da Primeira Guerra perdeu território e população para os vizinhos Romênia, Checoslováquia e Iugoslávia.  Muito ressentimento, hoje canalizado contra Bruxelas e contra a imigração. Está no poder desde 2010. São especialistas em criar problemas inexistentes.

6. Os físicos e os dados. A essência do capítulo está numa entrevista com o físico Antonio Eredidato. É sobre a aplicação da física à política. É o mecanismo dos algoritmos. Essa forma de fazer política permite reativar todos os ódios latentes nas pessoas, que permite que pessoas intolerantes determinem a história com a liberação das pulsões mais primitivas e das perversidades mais secretas. Permite a eleição de pessoas como Salvini, Trump, Orban e Bolsonaro. E, ao final do capítulo, uma advertência para as novas gerações: "As novas gerações que observam hoje a política estão recebendo uma educação cívica feita de comportamentos e palavras de ordem que irão condicionar suas atitudes futuras. Uma vez os tabus quebrados, não é mais possível colar de novo: quando os líderes atuais saírem de moda, é pouco provável que os eleitores, acostumados às drogas fortes do nacional-populismo, peçam de novo a camomila dos partidos tradicionais. Sua demanda será por algo novo e talvez ainda mais forte".

Da conclusão, retiro apenas uma frase de Woody Allen: "Os maus sem dúvida compreenderam algo que os bons ignoram".  E para concluir, que tal a indicação do João Pedro Stédile? Me somo a ele para indicar, também para você, essa chocante leitura.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Alexandre & César. Plutarco - Vidas paralelas.

A escolha desse livro se deu meio ao acaso. Assolado pela situação meio depressiva da pandemia, procurei por leitura mais simples, que não me exigisse tanta concentração. Foi quando deparei com este pequeno livro, de autoria de Plutarco, de quem recentemente eu ouvira grandes elogios. A decisão foi rápida. vou ler Alexandre & César - da série - Vidas paralelas. Na verdade, Plutarco me chamou mais atenção do que os próprios biografados. Por isso, as primeiras palavras vão para ele.
A edição da L&PM Pocket.

O historiador e biógrafo nasceu em Queroneia no ano de 46, vindo a morrer em Delfos no ano de 120. Lembrando que foi em Queroneia que ocorreu a batalha que pôs fim aos estados gregos, passando então a supremacia militar dos povos aos macedônios. A batalha (338 a.C.) foi vencida por Filipe II, o pai de Alexandre, que participou da batalha. Plutarco era de família de posses e, desde cedo, frequentou  ambientes intelectuais, tanto na Grécia, quanto em Roma. Plutarco escreveu as biografias, sempre em duplas, alinhando-as por suas afinidades, como no caso de Alexandre e César.

Ao tempo de Plutarco, as escolas em evidência eram as dos epicuristas e as dos estoicos. Plutarco, porém, optou pela retomada dos filósofos gregos Platão e Aristóteles, bem ao gosto dos romanos.  Na introdução/apresentação do livro Voltaire Schilling, lembra a citação de Juvenal, que a "Grécia conquistada conquistou Roma conquistadora". A força e o poder da cultura. As biografias de Plutarco tinham caráter cívico, apresentando para os leitores homens notáveis, cujos exemplos poderiam ou deveriam ser seguidos. As suas "vidas paralelas" apareceram contemporaneamente aos Evangelhos.

Com a Idade Média e ascensão do cristianismo Plutarco caiu no ostracismo, por uma questão muito simples. Os seus biografados eram todos homens pagãos, não a vida  dos santos. Ele foi redescoberto no Renascimento. Não obstante, muito de sua obra de preservou. Conta-se que escreveu 50 vidas paralelas, das quais 23 chegaram aos nossos tempos. Eu dou as duplas; l. Teseu e Rômulo; 2. Licurgo e Numa; 3. Sólon e Publícola; 4. Temístocles e Camilo; 5. Péricles e Fábio Máximo; 6. Alcebíades e Coriolano; 7. Timoleonte e Emílio Paulo; 8. Pelópidas e Marcelo; 9. Aristides e Catão o velho; 10. Filópedes e Flamínio; 11. Pirro e Mário; 12. Lisandro e Sila; 13. Cimón e Lúculo; 14. Nícias e Crasso; 15. Eumenes e Sertório; 16. Agesilau e Pompeu; 17. Alexandre e César; 18. Fócio e Catão o jovem; 19 e 20. Ágis e Cleômines/Tibério e Caio Graco; 21. Demóstenes e Cícero; 22. Demétrio e Antônio; 23. Dion e Bruto.

Voltaire Schilling atribui a longevidade da obra ao "gosto pelo detalhe, na humanização dos estadistas". Rousseau lhe teceu o seguinte elogio: "Pintou os grandes homens nas pequenas coisas, um traço ligeiro... uma palavra, um sorriso, um gesto é suficiente para caracterizar o herói de Plutarco".

Quanto aos heróis biografados, pouco tenho a dizer, pois as suas vidas são bem conhecidas e os fatos são aqueles mesmos registrados nos livros de história. A biografia de Alexandre ocupa bem mais páginas do que a de César. A de Alexandre começa pelo seu nascimento, enquanto que César, já o encontraremos em meio a suas lutas políticas e militares. O grande feito de Alexandre, sem sombra de dúvidas, foi a vitória sobre Dario, o rei dos persas e a de César, a conquista das Gálias e a derrota que infligiu a Pompeu. Quanto a morte de Alexandre, este fora acometido de forte febre e esta o dizimou, quando chegava a cidade de Babilônia. Suspeita-se de envenenamento, hipótese pouco provável de acordo com Plutarco. Já a morte de César, ganha algumas páginas a mais. Morre aos pés da estátua de Pompeu, em pleno Senado Romano, tendo recebido 24 facadas. Brutus, o principal entre os assassinos, teve triste fim.

Bem, foi uma leitura interessante e não tão leve assim. Muitos detalhes históricos, que seguramente devem ter sido muito consultados na confecção dos manuais de história. Das duplas me interessou também a de número 21. Demóstenes e Cícero. A introdução ao livro leva o leitor a uma bela e necessária contextualização histórica.  

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente. Wendy Brown.

Certamente que existem livros para medir os teus limites. O livro Nas ruínas do neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente, seguramente, é um deles. Embora os autores referenciais sejam conhecidos, não o são, os que dialogam com eles. Por outro lado, e de uma maneira toda especial, o capítulo IV, fala da realidade dos Estados Unidos, de decisões de sua Suprema Corte, que envolvem as questões morais com as liberdades individuais e econômicas. Assim, eu me refugio em Paulo Freire, para dizer que não existem saberes hierarquizados, apenas existem saberes diferentes.
Um livro que reflete o ódio neoliberal à política, ao social e ao comum.

Acompanho a literatura em torno do neoliberalismo desde os anos 1990, por uma questão de necessidade. Primeiramente, pela atividade sindical, como dirigente estadual da APP-Sindicato. Precisávamos lidar e enfrentar os primeiros governos neoliberais que se firmaram, no Brasil através de Fernando Henrique Cardoso e no Paraná, através de Jaime Lerner. Os enfrentamos, tanto no campo teórico, quanto na prática sindical, se deram através de muitos embates. Eram tempos sombrios, de arraso do social e de perda de direitos, mas nunca fomos tragados por visões fatalistas, de que, as forças que nos oprimiam, seriam forças insuperáveis. Depois foi pelas minhas atividades acadêmicas, na PUC/SP, quando observamos este fenômeno mais de perto no campo educacional.  Creio que adquiri uma compreensão razoável dessa doutrina/ideologia.

Esses primeiros governos promoveram estragos sociais consideráveis, mas não agiam ainda com a violência que os acompanharia mais adiante. Muitos campos do Pacto Social, firmado pela Constituição de 1988, não foram atingidos e não se atentava, ao menos abertamente, contra as instituições ou contra os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Depois conhecemos o interstício dos governos do PT. Embora estes não rompessem com o macro das políticas neoliberais, com as sobras do orçamento, muitas políticas sociais foram feitas. Isso bastou para que esta democracia fosse odiada e o golpe tramado. Esse veio com toda a virulência em 2016.

Então, para entender os rearranjos no interior da doutrina, fui levado à novas leituras. Primeiramente fui a Pierre Dardot e a Christian Laval, com os seus livros A nova razão do mundo - ensaio sobre a sociedade neoliberal Comum - ensaio sobre a revolução no século XXI, livro que pretende ser o antídoto para derrotar a doutrina. Fui ainda ao tema da educação pelo livro de Christian Laval A escola não é uma empresa - o neoliberalismo em ataque ao ensino público. A subjetividade já havia sido sequestrada. O homem do senso comum já pensava de forma neoliberal.

Agora, creio que pela revista CULT, cheguei ao livro de Wendy Brown Nas ruínas do neoliberalismo - a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Wendy Brown é professora de ciência política na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Vamos, primeiramente, nos ater ao título e sub-título do livro: nas ruínas e o antidemocrático. Na introdução marquei uma definição, ou um conceito de neoliberalismo, assim como ele é concebido neste livro: "O termo 'neoliberalismo' foi cunhado no Colóquio Walter Lippmann em 1938, uma reunião de acadêmicos que lançou as bases político-intelectuais daquilo que uma década depois se tornaria a Sociedade de Mont Pélerin. O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado Social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigável para os investidores estrangeiros". Isso não se faz, obviamente pela via democrática. O neoliberalismo, para implementar suas políticas, não tem nenhum pudor em recorrer ao uso da violência.

Se o título do livro choca, imagina então, os títulos dados à introdução e aos capítulos: Eu os apresento: Introdução. É o sub-título do livro: A ascensão da política antidemocrática. Capítulo 1. A sociedade deve ser desmantelada. Capítulo 2. A política deve ser destronada. Capítulo 3. A esfera pessoal e protegida deve ser estendida. Capítulo 4. Bolos falam; centros de gravidez oram. Capítulo 5. Nenhum futuro para homens brancos: niilismo, fatalismo e ressentimento. Vamos a um breve comentário.

No capítulo 1, o ataque frontal se dá às palavras democracia, igualdade e social. Essas palavras devem ser retiradas do imaginário social. Fala do tripé da modernidade como sendo o Estado-Nação, o capitalismo e a democracia. Dessas, a democracia é o elo mais frágil e por onde começam os ataques. O Estado-Nação não deve ser o responsável pela execução da justiça social. Os autores, para o exame da questão, serão Hayek e Hannah Arendt. De Hannah, ela fala que ela em nada ajudou.São as políticas afirmativas do indivíduo, da liberdade individual.

No capítulo 2 prega-se a destruição do Estado administrativo. Ele deve ser substituído pelo Estado burocrático. Os autores trabalhados agora são Hayek, Friedman e os ordo-liberais alemães. Existe uma pregação de ódio à política porque ela pode levar às políticas democráticas e a democracia pode se transformar em "excesso de democracia". Assim já o havia preconizado Rousseau, com o conceito de Vontade Geral e Soberania Popular. Isso geraria uma "democracia totalitária". A autora conclui que quatro décadas de neoliberalismo, de cultura política antidemocrática, levaram a um liberalismo plutocrático autoritário e a uma fúria popular.

Do capítulo 3 vou destacar duas referências. A frase em epígrafe, retirada de um discurso de Hayek na Sociedade de Mont Pélerin, no ano de 1984: "Há [...] uma herança moral, que é uma explicação para a dominância do mundo ocidental; uma herança moral que consiste essencialmente na crença na propriedade, na honestidade e na família, todas coisas que não pudemos e nunca fomos capazes de justificar intelectualmente de modo adequado [...] Devemos retornar a um mundo em que não apenas a razão, mas a razão e a moral, como parceiras iguais, devem governar nossas vidas, onde a verdade da moral é simplesmente uma tradição moral, a do ocidente cristão, que criou a moral na civilização moderna". Esse casamento entre economia e moral tem um objetivo bem claro. Desresponsabilizar o Estado e responsabilizar o indivíduo e a família pelas funções sociais atribuídas ao Estado, no Estado de bem-estar social. Á associação com a moral se dá, porque a moral leva à culpa, a culpa pelos fracassos. É a origem e a fonte do discurso religioso/conservador dos neoliberais.

O capítulo 4 tem um título bem estranho. Bolos falam e centros de gravidez oram. Vou apenas fazer uma referência do que se trata. É uma referência a questões levadas à Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos, envolvendo a confecção de bolos de casamento, de casamentos homo afetivos, misturando as questões da liberdade de iniciativa e de expressão. Já o orar  nos centros de gravidez, são centros de aconselhamento anti aborto, mantidas por entidades religiosas, que usam de disfarces para fazerem pregação anti-aborto. A autora menciona também a questão da ascensão das mega igrejas e o seu envolvimento com as políticas neoliberais e conservadoras. Me permito uma pequena frase: "Não é mais necessário que o indivíduo seja moral, apenas que grite sobre isso".

O capítulo 5 é fabuloso. Ele versa sobre as pessoas. Embora o livro não faça nenhuma referência ao Brasil, vou usar a nossa realidade para ilustrar a situação. Quem são as hordas apoiadoras de Bolsonaro? Como se comportam? São os "seres humanos" produzidos pelo neoliberalismo. Uma análise fantástica e Nietzsche é a grande referência com complementos em Marcuse. Sobre este capítulo apresento a orelha da contracapa do livro.

"Com Nietzsche, Brown mostra como o empoderamento raivoso da extrema direita volta-se contra si produzindo niilismo, ou seja, valor religioso-moral canalizado na lógica da mercadoria. O sujeito torna-se capital humano de cima a baixo quando o impulso de vida, amor e criatividade transforma-se no que Marcuse chamou de dessublimação repressiva, conceito que explica o gozo sentido como subversivo pela nova direita: livre, manipulável, viciado em estímulos e gratificações triviais, o sujeito é não somente desatado libidinalmente e desbloqueado para gozar mais-prazer, mas desobrigado de qualquer relação com o social. Abre-se assim a válvula de outro instinto humano: Tânatos".









sexta-feira, 8 de maio de 2020

A Ordem do dia. Éric Vuillard. Industriais alemães apoiam o nazismo.

Primeiro capítulo - uma reunião secreta. 20 de fevereiro de 1933. Em 5 de março haveria eleições na Alemanha. 24 empresários e representantes de entidades empresariais são convocadas pelo partido nazista. E eles comparecem. O que ouvem: A ordem do dia. "Era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um pequeno Führer em sua empresa". É o que nos conta Éric Vuillard em A ordem do dia. E a narrativa continua- "E agora, senhores, ao caixa!". Gustav Krupp, puxa a fila com a doação de um milhão. Com a eleição, na qual o partido nazista sai vencedor, começa a ascensão de Hitler. Os empresários alemães financiam a ascensão de Hitler. No segundo capítulo aprecem os nomes dos grandes empresários, dos grandes financiadores da campanha.
O maravilhoso livro de Éric Vuillard, A ordem do dia. TusQuets, editores, 2019.

O segundo capítulo tem por título - As máscaras. Por máscaras o autor fala das pessoas físicas que se transformam em pessoas jurídicas. Estou falando do livro - A ordem do dia, do escritor francês Éric Vuillard. Uma pequena nota, na contracapa, nos dá o teor do livro: "A ordem do dia é uma narrativa histórica poderosa, fenômeno de vendas no mundo. Nele, narram-se de forma particular, direta e irônica os bastidores de dois momentos-chave da Segunda Guerra Mundial: o apoio dado pelos maiores industriais da Alemanha a Hitler e a anexação da Áustria ao Reich".

O último capítulo tem um título bem significativo: Quem são todas essas pessoas? Nele teremos um reencontro com Gustav Krupp, longe das bombas, refugiado na vila Hügel, em Blünbach, no norte da Alemanha e já senil. Num de seus acessos, tornou-se assombroso. Todos se assustaram: "Mas quem são todas essas pessoas?". "Não, não eram os fantasmas da Vila Hügel que o congelavam de medo. Não, não eram as lâmias nem as larvas, eram homens de verdade, com rostos de verdade que o encaravam. Ele viu olhos enormes, figuras saíam das trevas. Desconhecidos. Ele sentiu um medo atroz. Ficou em pé, petrificado".

Quem são todas essas pessoas? "E o que ele viu, o que se ergueu lentamente da sombra, eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados, aqueles que a SS tinha fornecido para suas fábricas. Eles saíam do nada". Agora peço licença para uma transcrição um pouco mais longa. É que estão elencadas as empresas que transformaram os homens dos campos de concentração em escravos, exaurindo-lhes as últimas forças em vida, sob o "nobre" slogan do Arbeit macht frei. Eis a nefasta lista.

"Durante anos ele tinha alugado deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em Sachsenhausen, em Auschwitz e em muitos outros campos. A expectativa de vida deles era de alguns meses. Se o prisioneiro escapava das doenças infecciosas, morria literalmente de fome. Mas Krupp não foi o único a alugar tais serviços. Seus comparsas da reunião de 20 de fevereiro aproveitaram também; atrás das paixões criminais e das gesticulações políticas, seus interesses se encontravam. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão-de-obra em Mauthausen. A BMW contratava em Dachau, em Papenburg, em Sachsenhausen, em Natzweiler-Struthof e em Buchenwald. A Daimler, em Schirmeck. A IGFarben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gross-Rosen, em Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: A IG Auschwitz, que com todo cinismo colocou esse nome no organograma da firma. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen e a Siemens, em Buchenwald, em Flossenbürg, em Neuengamme, em Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Gross-Rosen e em Auschwitz. Todo mundo tinha se aproveitado de uma mão de obra muito barata".

Dachau em fotos. A tradução do cartaz: Nossa última esperança. Triste.

E ainda uma pequena descrição de como se vivia numa dessas fábricas, a Berthawerk: "De uma chegada de seiscentos deportados, em 1943, nas fábricas Krupp, um ano mais tarde não restavam mais que vinte. Um dos últimos atos oficiais de Gustav, antes de ceder as rédeas a seu filho, foi a criação da Berthawerk, uma fábrica concentracionária com o nome de sua esposa, que deveria ser um tipo de homenagem. Ali se vivia preto de sujeira, infestado de piolhos, andando cinco quilômetros tanto no inverno como no verão em simples galochas, para ir do campo à fábrica e da fábrica ao campo. Ali se acordava às quatro e meia, ladeado por guardas SS e cachorros treinados. Quanto à refeição da noite, durava às vezes duas horas: não que alguém demorasse para comer, mas porque era preciso esperar, não havia tigelas suficientes para servir a sopa".

Bem, e os capítulos do meio do livro. Versam sobre a humilhante anexação (Anschluss) da ultra católica Áustria, sob o júbilo do povo. Inacreditável.

Tenho duas recomendações a fazer, ou duas sugestões de leitura. O primeiro é de Jean-Louis Vullierme, Espelho do Ocidente - O nazismo e a civilização ocidental, que aprofunda o tema e o outro de Philip Roth - Complô contra a América, que mostra o namoro do empresariado americano (Henry Ford, em particular) com o sistema nazista. Questão de DNA empresarial  "Um Führer em cada empresa".

Não sei o porquê, mas eu me lembrei de outro livro. Tormenta - o governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. Vou relatar algo da páginas 43 e 44. Vejamos: "No dia 10 de agosto de 2018, o empresário Fábio Wajngarten, hoje chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo, reuniu em sua cobertura no bairro dos jardins, em São Paulo, 62 empresários para ouvir as propostas de Bolsonaro. Em julho, o candidato já havia se reunido com pesos pesados como Candido Bracher (Itaú Unibanco), David Feffer (Suzano), José Roberto Ermírio de Moraes (Votorantim), Pedro Wongtschowski (Grupo Ultra) e Marcelo Martins (Cosan). A reunião fora organizada por Abílio Diniz (Carrefour).

Como da vez anterior, o café da manhã na casa de Wajngarten foi cercado de discrição, já que alguns dos presentes eram visceralmente contra Lula; eles percebiam a ascensão de Bolsonaro mas não queriam seus nomes associados ao candidato do PSL - ainda. Foram poucos os que não se opuseram a ter suas presenças divulgadas, entre eles Luciano Hang (Havan), Meyer Negri (Tecnisa), Flávio Rocha (Riachuelo), Sebastião Bomfim (Centauro), Bráulio Bachi (Artefacto) e José Salim Mattar (Localiza)".

Adendo em 09.04.2021. Jantar com o presidente Jair Bolsonaro em abril de 2021.
  • Alberto Leite, da FS Holding
  • Alberto Saraiva, Habib’s
  • André Esteves, BTG Pactual
  • Carlos Sanchez, EMS
  • Candido Pinheiro, Hapvida
  • Claudio Lottenberg, da Conib
  • David Safra, banco Safra
  • Felipe Nascimento, da Mapfre Seguros
  • Flávio Rocha, da Riachuelo
  • João Apolinário, Polishop
  • João Camargo, grupo Alpha
  • José Isaac Peres, da Multiplan
  • José Roberto Maciel, do SBT
  • Luiz Carlos Trabuco Cappi, do Bradesco
  • Rubens Menin, CNN
  • Rubens Ometto, Cosan
  • Tutinha, Jovem Pan
  • Washington Cinel, Gocil
  • Paulo Skaf, presidente da Fiesp


quarta-feira, 6 de maio de 2020

O SUS é o maior patrimônio do cidadão brasileiro. O SUS é cidadania.

O título VIII da Constituição de 1988 é dedicado à Ordem Social. Esta Ordem Social, está definida no seu capítulo II, por um conceito de amplitude maior, como Seguridade Social. Por ela se entende o que está afirmado na Seção I, no artigo 194. "A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. O artigo 195 trata do financiamento desta Seguridade Social e o artigo 196, institui o seu teor. Marquem bem - Seguridade social é direito à saúde, previdência e assistência social

 A saúde especificamente os artigos 196 a 200. Vou me ater apenas ao artigo 196. Ele basta para tornar fato o título desse post. O SUS é o maior patrimônio do povo brasileiro.  Vejamos então o precioso teor do artigo: "A SAÚDE É DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Os demais artigos basicamente se referem à operacionalização e ao financiamento mas,  o essencial está dito. A SAÚDE É DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO.
A minha carteirinha do Inamps. Documento restrito a quem tinha emprego.

A finalidade desse post é a de mostrar que nem sempre foi assim, além de mostrar que o SUS é um dos maiores bens que o cidadão brasileiro possui. Afirmo este princípio, pois, isso nem sempre é valorizado  o suficiente. Imaginem se nesses tempos de pandemia, que já são ruins, não houvesse o SUS. Imaginem se a questão do atendimento dependesse da condição financeira da pessoa, como é, e é bom lembrar, nos Estados Unidos. Também é preciso lembrar que muitos pressionam para que o SUS acabe. Nele não cabem todos os brasileiros, afirmam os seus detratores. Quem são, então, esses  detratores ou inimigos? Os neoliberais. O maior princípio neoliberal é a negação das funções do Estado e, se a ele não competem funções, não cabem a ele, os deveres relativos à cidadania. O seu princípio maior é a total negação de direitos. Segundo a sua concepção não existem direitos. Existem serviços disponíveis no mercado para serem comprados pelos indivíduos ou por suas famílias. No Brasil existe até um partido político que tem esse princípio como sua principal meta. E ele se afirma como sendo o novo na política.

Então, como era a assistência à saúde, antes de 1988? Existia o Ministério da Saúde? Qual era a  sua competência? Sim, ele existia mas cuidava apenas da chamada medicina preventiva, como o controle das epidemias, programas de vacinação, vigilância sanitária; da política hematológica e algumas coisas pontuais a mais. Quem cuidava, então, da saúde curativa, individual? O INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), através do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Quem tinha direito a essa assistência? Apenas as pessoas com carteira de trabalho registrada e os seus dependentes. E os desempregados e os trabalhadores não formais? Estes simplesmente ficavam ao deus dará, ou para as santas casas de misericórdia.

Esses dias, mexendo em meus documentos antigos, localizei a minha carteirinha do INAMPS. Deixo a estampa, frente e verso. Na frente, gostaria que observassem a sigla CTPS (Carteira de Trabalho e Previdência Social) e o prazo de validade - setembro de 1984. Quem não tivesse essa carteira de trabalho, anualmente atualizada, não tinha atendimento. No verso, observem três revalidações. A última delas se estende até novembro de 1988. Depois não houve mais necessidade dessa carteira. Por que? Porque em 5 de outubro de 1988 foi promulgada a nova Constituição que instituiu o acesso UNIVERSAL À SAÚDE.

Isso foi uma dádiva dos deuses? Jamais. Como todos os direitos dos trabalhadores, estes só se consolidam através de muita organização e luta. O direito universal à saúde se integra às lutas da redemocratização do Brasil, ao longo dos anos 1980, da saída do regime civil/militar que por 20 anos amordaçou as conquistas populares. Numa pequena consulta, vi que um nome ganhou grande destaque nessa conquista. O médico sanitarista, na época à frente da Fundação Osvaldo Cruz, a Fiocruz, Sérgio Arouca, do Partidão, que depois migrou para o seu sucedâneo, o PPS. Na VIIIª Conferência Nacional de Saúde, um programa havia sido elaborado. Também precisa ser lembrado o nome de Ulisses Guimarães, sem o qual, provavelmente, a Constituição continuaria se arrastando ainda por anos e com um perfil bem diferente, bem mais conservador e menos generoso. Lembrando também, que havia uma enorme pressão popular sobre os constituintes.

Concretamente, quais são os perigos que este princípio da universalidade hoje enfrenta? Os inimigos são os neoliberais, já apontados acima. Como identificar estes políticos? Vou apontar mais algumas características: São aqueles que obedecem ao princípio da privatização, da submissão da ordem política à ordem econômica, àqueles que colocam a economia e a acumulação do capital acima dos interesses do ser humano. O seu princípio básico é o de que o Estado deve se afastar de todos os setores em que o Estado atua em paralelo com o mercado, como a saúde, a educação, a previdência... Por isso, após o golpe 2016, a ordem é: reformas. Todas elas seguem na mesma direção. Retirada dos direitos ligados à cidadania.

O SUS é passível de críticas? Sim, e muitas. Jamais quanto ao seu princípio, mas sempre com relação à sua operacionalização e financiamento. O SUS custa caro. A sua operacionalização é complexa e enfrenta muitas vezes grandes doses de má vontade. Os governos do PT se preocuparam muito com o SUS. Os seus serviços foram ampliados com o SAMU, as UPAS e a Farmácia Popular. O financiamento receberia novos recursos oriundos dos royalties do Pré-Sal. Veio o golpe de 2016, aplicado pelos neoliberais, e a PEC-95, a denominada PEC da morte por ter congelado as verbas do orçamento público. Um retrocesso sem tamanho. O atual ministro da economia, fala em uníssono: O crescimento econômico só voltará se novas reformas forem feitas. Por reformas eles entendem o aprofundamento das políticas de mercado e um ataque permanente aos chamados direitos da cidadania. DEFENDAMOS O SUS. Isso é um imperativo de cidadania e de humanidade. E uma pergunta final: Haveria clima político no Brasil de hoje para aprovar a Constituição aprovada em 1988? Seguramente vivemos uma fase de retrocessos.



segunda-feira, 4 de maio de 2020

Tormenta. O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. Thaís Oyama.

Oh horror! Oh horror! Depois de uma série de livros, envolvendo especialmente Paulo Freire, fiz uma inflexão total em minhas leituras. Quando na ativa, na qualidade de professor de Teoria Política, eu não ficava apenas na teoria, acompanhava também os fatos, sempre bem de perto. Uma parte da aula sempre era dedicada a este acompanhamento. Isso gera hábitos. E esse hábito me levou ao livro de Thaís Oyama, Tormenta - O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos. O livro vale muito a sua leitura. Com certeza, você estará diante de um filme de horrores. É tudo muito pior do que você imagina. O livro é uma lançamento 2020, da Companhia das Letras.
266 páginas de Tormenta. Companhia das Letras 2020.

O livro se limita ao primeiro ano de governo, como só poderia ser, pela delimitação do tempo. Ele mergulha fundo no personagem Bolsonaro, na sua família, nada cristã, ao menos pelo ponto de vista mais tradicional da visão de cristianismo, mas bem de acordo com o pós-moderno entrelaçamento entre o neoliberalismo e o neo pentecostalismo, da chamada teologia da prosperidade. Mergulha fundo ainda no pessoal que o cerca, na sua base de sustentação, constituída por uma ala militar, e outra econômica e, uma grande novidade de nossos tempos, as mídias sociais. Estas são comandadas pelo chamado "gabinete do ódio", comandado pelo Zero Dois de seus filhos, uma figura para a observação da psiquiatria.

O livro se estrutura em torno de um prólogo e capítulos não numerados, dez ao todo. Seriam os dez tópicos principais do livro. O prólogo, como não poderia deixar de ser, é uma introdução ao até então insignificante personagem da política brasileira, o obscuro parlamentar do chamado baixo clero, com sucessivas eleições, sempre garantidas por um eleitorado fiel, oriundo dos quarteis e dos batalhões da polícia militar. A luta por melhores soldos sempre garantiram esses votos corporativos, tanto para ele, quanto para os seus familiares.

Se os capítulos não tem numeração, eles tem porém, títulos: Eu os apresento com numeração, para facilitar a sequência, para depois apontar alguns destaques. 1. O capitão e os generais; 2. A bancada do Jair; 3. Paranoias, ideias fixas, medos e outros tormentos; 4. Zero Dois; 5. O governo estremece; 6. O governo das pequenas coisas; 7. Tchutchuca é a mãe; 8. O inimigo das árvores; 9. Bolsonaro contra a Lava Toga; 10. Traições. Pela ordem de relevância eu destacaria o primeiro e o último. Após os capítulos seguem as notas, que, de maneira geral, são uma remessa às fontes.

Vamos às abordagens: 1. O capitão e os generais: Uma grande curiosidade minha pairava sobre a relação de Bolsonaro com os generais, uma vez que a saída do "Capitão" dos quadros do exército não foi nada cordial. A sua saída foi motivada por um ato de terrorismo. Ele sempre foi considerado avesso às grandes virtudes da carreira militar: o respeito à hierarquia e o consequente respeito à disciplina. Como presidente o "Capitão" seria o comandante dos generais. O que os aproximou? Vou abrir um parêntesis na resenha, para relatar uma frase de uma fala que ouvi de Adolfo Pérez Esquivel, o argentino Nobel da Paz, do ano de 1980. "Sobre a impunidade não se constrói a democracia". Voltando, a aproximação entre Bolsonaro e os generais se deu com a instauração da Comissão da Verdade (2011), no governo Dilma Rousseff. Os generais Villas Boas (acometido de ELA - por isso só anda em cadeira de rodas) e Augusto Heleno são os mais ativos. São remanescentes da linha ligada ao General Sílvio Frota, da linha dura. O que os une é anti-petismo. Nesse capítulo também estão citados os empresários que aderiram na primeira hora: Luciano Hang (Havan), Meyer Nigri (Tecnisa),  Flávio Rocha (Riachuelo), Sebastião Bonfim (Centauro), Bráulio Bachi (Artefacto) e José Salim Mattar (Localiza).

2. A bancada do Jair: É outro capítulo bem interessante. O principal personagem é Augusto Bebiano, um dos homens mais importantes da campanha. Não caiu nas graças do Zero Dois, e emplacou menos de dois meses no governo. Onix Lorenzoni, Magno Malta e Hélio Negrão, o "Negão" de Bolsonaro são outros personagens, além do pernambucano Luciano Bivar. 3. Paranoias, ideias fixas, medos e outros tormentos: Neste capítulo afirma-se que Bolsonaro não tem adversários, apenas inimigos e você pode sê-lo a qualquer momento, mesmo sem motivos aparentes. Trata também do episódio da facada e da demissão de Bebiano.

4. Zero Dois: Outro capítulo notável que envolve, possivelmente, o mais problemático dos filhos de Bolsonaro. Jair é Carlos, afirma Oyama. Carlos vive com o pai uma relação de amor e ódio. Com ele rompe, some do cenário e só volta ao ser atendido em 100% de suas pretensões. Assim foi com Bebiano e com Mourão, o vice. A escolha do vice também ganha destaque. Só foi escolhido no prazo final  das inscrições, depois de desacertos com Magno Malta, vetado pela futura primeira dama, com o general Augusto Heleno, com Janaína Paschoal e com o príncipe Luiz Philippe, um olavista de primeira, vetado por um possível envolvimento em suruba gay. Ser o quinto de uma lista, gera consequências.

5. O governo estremece: O foco é a crise de maio, que envolve a demissão do general Santos Cruz, o caso Flávio e as rachadinhas com o Queiroz e a mais forte crise estudantil. A crise terminou com uma espécie de alinhamento entre os três poderes. 6. Presidente das pequenas coisas: O título é sugestivo: o presidente das pequenas coisas, como o fim do horário de verão, fim das multas nas rodovias...

7. Tchutchuca é a mãe: Agora a bola da vez é ministro Paulo Guedes, o "valentão diante dos pequenos e tchutchuca diante dos poderosos", na acusação do deputado Zeca Dirceu. O revide de Guedes, de que tchutchuca é a mãe, simplesmente suspendeu a sessão da Comissão de Justiça que tratava da reforma da previdência. 8. O inimigo das árvores: O tema em questão são os incêndios na amazônia e a briga com a França, Alemanha e Noruega. 9. Bolsonaro contra a Lava Toga: Aqui é mostrado o esforço de Bolsonaro pelo arquivamento da CPI da Lava Toga. Toffoli precisa ser protegido.

10. Traições: É o outro capítulo notável. O recurso às traições é a recomendação do "filósofo" Olavo de Carvalho. Ele as sugere para serem usadas nas brigas políticas em substituição à lógica do raciocínio. Em vez de lealdade, agressões e destruição de perfis. Mostra também Bolsonaro usando subterfúgios para desviar de assuntos incômodos com as suas habituais bobagens, como "cocô dia sim, dia não". É a assimilação das aulas do dito "filósofo". Inacreditável. Mas a abordagem fundamental é a montagem e a atuação do "gabinete do ódio", sob o comando dos olavistas Filipe Martins e do Zero Dois. A grande lição do grupo, para além da pauta liberal na economia é a introdução da pauta moral e dos costumes e o envolvimento nelas de todos  os adversários. Frota, Hasselman e o delegado Waldir que o digam. Mostra ainda um Bolsonaro que já não mais treme com o ritual do poder e que tem os olhos fixos em 2022. Acompanhemos a frase final do livro: "No final do primeiro ano de mandato, os lábios de Jair Bolsonaro não tremiam mais, nem seus olhos se movimentavam de um lado para o outro. Estavam fixos em 2022". O livro termina com um catálogo de fotografias. 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

É a vontade de Deus ou a do patrão? Um diálogo dialético com Paulo Freire.

Creio ser sabido de todos que Paulo Freire defendia ardorosamente a ideia de que não existem - nem saberes superiores, nem saberes inferiores. Nem o saber mais, nem o saber menos. O que existe são saberes diferentes. Pois bem, lendo Pedagogia da esperança - um reencontro com a pedagogia do oprimido, leio que, depois de um diálogo com camponeses, no Chile, Paulo. na volta para casa, recorda de um debate semelhante que tivera na Zona da Mata pernambucana.
24 anos depois Paulo Freire tem um reencontro com a Pedagogia do oprimido.

Nesses diálogos, os interlocutores falavam que Paulo sabia e que eles não sabiam. A razão para isso, era a de que eles eram camponeses e que Paul era doutor. Vejamos Paulo relembrando os diálogos dessa experiência:

"Depois de alguns momentos de bom debate com os camponeses o silêncio caiu sobre nós e nos envolveu a todos. O discurso de um deles foi o mesmo. A tradução exata do discurso do camponês que ouvira naquele fim de tarde.

Muito bem, - disse eu a eles. - Eu sei. Vocês não sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem?

Aceitando o seu discurso, preparei o terreno para minha intervenção. A vivacidade brilhava em todos. De repente a curiosidade se ascendeu. A resposta não tardou.

- O senhor sabe porque é doutor. Nós, não.

- Exato, eu sou doutor. Vocês, não. Mas por que eu sou doutor e vocês não?

- Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo, e nós, não.

- E por que fui à escola?

- Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O nosso, não.

- E por que os pais de vocês não puderam mandar vocês à escola?

- Porque eram camponeses como nós.

- E o que é ser camponês?

- É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem direitos, sem esperança de um dia melhor.

- E por que ao camponês falta tudo isso?

- Porque Deus quer.

- E quem é Deus?

- É o Pai de nós todos.

- E quem é pai aqui nesta reunião?

Quase todos de mão para cima, disseram que o eram.

Olhando o grupo todo em silêncio, me fixei num deles e lhe perguntei: - Quantos filhos você tem?

- Três.

- Você seria capaz de sacrificar dois deles, submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa, no Recife? Você seria capaz de amar assim?

- Não.

- Se você - disse eu -, homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça dessa, como é possível entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é o fazedor dessas coisas?
Um silêncio diferente, completamente diferente do anterior, um silêncio no qual algo começava a ser partejado. Em seguida:

- Não. Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão.

Possivelmente aqueles camponeses estavam, pela primeira vez, tentando o esforço de superar a relação que chamei na Pedagogia do oprimido de "aderência" do oprimido ao opressor para, "tomando distância dele" localizá-lo "fora" de si, como diria Fanon.

A partir daí, teria sido possível também ir compreendendo o papel do patrão, inserido num certo sistema socioeconômico e político, ir compreendendo as relações sociais de produção, os interesses de classe etc. etc.

A falta total de sentido estaria se, após o silêncio que bruscamente interrompeu o nosso diálogo, eu tivesse feito um discurso tradicional, "sloganizador", vazio, intolerante". Páginas 67-9.

O Educador. Um belo perfil de Paulo Freire.

Como qualquer comentário é desnecessário, trago um episódio ocorrido na cidade de Angicos, na solenidade de formatura de um grupo de adultos, agora alfabetizados. O episódio é um comentário do general Castelo Branco ao que vira em Angicos. Disse que aquilo só serviria "para engordar cascavéis nesses sertões" e que aquilo era uma "pedagogia sem hierarquia". Este episódio é narrado por Sérgio Haddad, no livro O educador - um perfil de paulo Freire. Página 72. Esse general e, depois, com o golpe de 1964, "presidente" teve a percepção exata do pensamento dialético libertador de Paulo Freire e a que ele conduz - à superação da situação.