domingo, 31 de outubro de 2021

O Novo Ensino Médio (NEM). Uma visão crítica. NEM-NEM.

Ontem (30.10.2021), solicitei ao professor Bernardo Kestring autorização para a publicação deste fantástico material sobre o Novo Ensino Médio. Ele tem assinatura de pessoas e instituições de muito respeito. Todos os créditos estão devidamente consignados no material publicado pelo Núcleo Sindical da APP-Sindicato - Curitiba Norte. Faço esta publicação no blog para dar maior divulgação ao material, num espaço permanente e de fácil acesso. Também por crer que ele servirá de base para muitos estudos que certamente serão realizados.

Quanto ao mais, o material fala por si. Não são necessárias maiores explicitações. Apenas quero deixar registrados os meus agradecimentos pelo trabalho, tão necessário, realizado por este grupo e ao Núcleo Sindical - APP-Curitiba Norte pela sua divulgação por meio dessa cartilha.












Como na cartilha virtual que eu utilizei, não tinha a página 11, eu transcrevo o seu conteúdo.

O notório saber: docência sem o conhecimento.
Você já pensou no quanto uma professora ou professor precisa estudar para poder lecionar?
E o que você pensa sobre uma pessoa dar aula para os estudantes do ensino médio, sem ter qualquer formação para isso?
Pois então, com a reforma, profissionais não formados poderão dar aula nos cursos técnicos e profissionais! Chamam isso de "notório saber", mas, na verdade, é só mais uma forma de precarização.
 


domingo, 24 de outubro de 2021

Escravidão. Volume II. Laurentino Gomes.

Ler os livros de Laurentino Gomes é sempre uma certeza de que você terá muitas informações. E você as terá sempre de uma forma muito leve e fluente. A leitura nunca deixará de fluir, embora a aspereza dos temas abordados, como é o caso da escravidão. Estou me referindo especificamente ao segundo volume de Escravidão - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada de dom João ao Brasil. É um panorama do século XVIII, o chamado século das luzes, que tantos processos revolucionários causou. Esse século também provou que as verdades proclamadas pelos princípios do Iluminismo ou Esclarecimento não eram universais. Eles enfrentaram a barreira da cor. O tema é trabalhado no livro, no capítulo 28, sob o título de A liberdade é branca. O que se dirá então da igualdade? Deixo a resenha do volume I da trilogia: http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/03/escravidao-volume-1-laurentino-gomes.html

Escravidão. Volume II. Globo Livros. 2021.

O século XVIII. Um dos séculos mais conturbados da história. Um século de rebeldia e de afirmação de direitos. Grandes mudanças históricas. Destacaria duas datas que simbolizam essas mudanças: 1776 e 1789. A Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Os dois fatos foram acompanhados de pomposas declarações de afirmação de direitos, proclamados como universais. Já na entrada do século XIX, em 1804 o Haiti proclama a sua independência e põe à prova a universalidade dos direitos afirmados. Até hoje o Haiti paga o preço de sua ousadia. A escravidão dos povos africanos permanecerá intacta ao longo de todo o século em questão e será um dos alicerces econômicos de todas as grandes nações europeias da época.

É este o panorama traçado no volume II da trilogia de Laurentino Gomes. Por óbvio, o principal foco do livro é o Brasil, mas a abordagem do tema é impossível sem voltar o olhar para o continente africano, donde, sob as bênçãos das autoridades, inclusive as eclesiásticas, saíam as "mercadorias" mais desejadas e valiosas desse triste período de nossa história. Um período de muitas violências e de violências que duravam uma vida inteira. Era todo um regime de escravidão.

O livro de Laurentino passa por uma exaustiva pesquisa bibliográfica, apontada no livro, tanto por citações, como  através de uma extensa lista dos livros utilizados, ao final do livro. Uma pesquisa que certamente consumiu anos de trabalho. Por isso mesmo o livro se transforma numa grande referência. O livro tem, ao todo 511 páginas, divididas em 31 capítulos. Como os títulos são curtos, eu os anuncio, com alguns entre parênteses explicativos: 1. A fronteira (sua expansão); 2. Esplendor e miséria; 3. Ouro! Ouro! Ouro!; 4. O herói invisível (o negro e a tecnologia da extração); 5. Fome, crime e cobiça; 6. Sertão adentro; 7. Escravismo piedoso; 8. Isolamento, censura e atraso; 9. Piratas; 10. Corruptos e ladrões; 11. Onda negra; 12. Os castelos (a partir daqui o livro se volta para a África); 13. Ajudá; 14. Agaja; 15. Conversa de reis. 16. Traficante escravizado; 17. Áfricas brasileiras (a herança cultural); 18. O sagrado; 19. Irmãos, reis e rainhas; 20. O trabalho; 21. A violência; 22. O sonho; 23. A família escrava; 24. As mulheres; 25. Chica na terra dos diamantes; 26. Fugitivos e rebeldes; 27. O medo (rebeliões); 28. A liberdade é branca; 29. Quebrando os grilhões; 30. O naufrágio; 31. O presente.

Na orelha do livro, uma síntese: "[...] Desta vez, o tema é a escravidão e seu profundo e definitivo impacto na formação do Brasil e da sociedade em que vivemos hoje. Composta por uma série de ensaios e reportagens de campo, a obra é resultado das leituras, pesquisas e observações feitas pelo autor ao longo de seis anos em viagens por doze países e três continentes. O volume inicial, lançado em 2019, cobriu um período de mais de 250 anos, desde o primeiro leilão de cativos africanos em Portugal, em 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. Este segundo livro concentra-se no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação, em outras regiões da América, do cultivo da cana de açúcar, arroz, tabaco, algodão e outras lavouras marcadas pelo uso intensivo de mão de obra cativa.

Num período de apenas cem anos, mais de seis milhões de seres humanos foram traficados da África para o Novo Mundo. O Brasil sozinho recebeu um terço desse total, cerca de dois milhões de africanos escravizados. É também o período mais decisivo na construção da África brasileira, pela introdução de novos hábitos e costumes que teriam profundas influências na vida nacional, incluindo a culinária, o vestuário, as festas e danças, os rituais religiosos e o uso dos espaços públicos.

No século XVIII, essas transformações podiam ser observadas em variados aspectos, como a família escrava, as alforrias, a escravidão urbana, as festas, irmandades e práticas religiosas, a assimilação, as fugas, rebeliões e movimentos de resistência".

No último parágrafo do livro, na sua parte final, temos o anúncio do 3º e último volume da trilogia: "Ao longo de todo o século (XIX), senhores de engenho, barões do café, fazendeiros, donos e traficantes de escravos apoiaram o trono brasileiro. Em troca teriam dele a garantia de que tudo continuaria como antes. Em nome dos interesses da aristocracia escravista agrária e mercantil, o império resistiria até o limite do possível a todas as pressões e esforços para acabar com o tráfico de cativos e a própria escravidão. Até que o edifício inteiro, tornado insustentável, implodisse na sequência da lei Áurea, que pôs fim ao cativeiro em 13 de maio de 1888 e seria decisiva na queda da própria monarquia, no ano seguinte. Esses serão os temas do terceiro e último volume da trilogia".

Brasil! Pobre Brasil! Seria a herança da escravidão uma chaga irremovível para a construção de um país com efetiva justiça social e dos princípios de liberdade e igualdade proclamados desde o século aqui em questão? Temo que sim! Existe toda uma ideologia dominante para  que uma verdadeira lei de gravidade social, se imponha.  Trago as notícias desses dias, da diminuição das desigualdades no Brasil, entre os anos de 2003-2014, nos governos do Partidos dos trabalhadores, trazidas pelo Banco Mundial. No entanto, por essa e outras razões, as políticas desse período foram abortadas pelo golpe de estado de 2016, aplicado pelas eternas elites brasileiras, herdeiras de um espírito bandeirante e escravocrata. Esse caminho precisa ser retomado.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Na serra gaúcha. Um tour fotográfico.

Nesses últimos tempos vivi uma espécie de confinamento, em virtude do Coronavírus. Fiquei em casa, por quase dois anos. Agora, um dos meus filhos usufruiu dez dias de férias e me convidou para visitarmos o Rio Grande do Sul, e Harmonia, a minha cidade natal, de uma maneira toda especial. Tracei um roteiro que começou na segunda-feira, dia 27 de setembro. Sem pressa saímos de Curitiba, chegando em Antônio Prado ao final da tarde. Antônio Prado é considerada a mais italiana das cidades brasileiras, em virtude de encontrarmos nela mais de 40 casas tombadas. Vejam o link e a sua igreja matriz.

 https://www.antonioprado.rs.gov.br/turismo/patrimonios_sub.php?id=1

A bela igreja matriz de Antônio Prado.

Na terça feira (28) nos ocupamos com dois programas. Uma visita ao Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio para fazer, especificamente, dois pedidos. Muita chuva em Curitiba para acabar com o rodízio de água e o segundo, um pouco mais difícil, para o Grêmio não cair para a série B, do campeonato brasileiro. O primeiro pedido, creio que já foi atendido, mas o segundo, com a derrota de ontem, para o Sport....., não sei.

A capela original e o Santuário atual de Nossa. Senhora. de Caravaggio, em Farroupilha

Pouco depois, num dos restaurantes no Vale dos Vinhedos, encontramos o Branco, aquele lateral esquerdo da seleção brasileira e do Grêmio e ele nos alertou de que deveríamos ir também para Aparecida e Fátima.

Rosas colhidas no Vale dos Vinhedos.

Os dias 29 e 30 foram dedicados a visitas familiares.

Turismo rural familiar, eu, Andrei e Rose e o meu sobrinho Marcos, em meio a mais de mil pés de limão.

Já no dia 30 fomos a Gramado, fazendo antes uma visita ao Parque do Imigrante em Nova Petrópolis. Depois de visitas em Gramado, passando pelo Lago Negro, Mini Mundo e pelo centro da cidade fomos a Canela para uma visita a sua belíssima igreja e a fantástica cascata do Caracol.

Castelo de Neuschweinstein no Mini Mundo e o original nas proximidades de Munique na Alemanha. No Mini Mundo tudo é vinte vezes menor. Passeio imperdível.


Em Canela, a magnífica cascata do Caracol e a majestosa Catedral de Pedra.

Dedicamos o sábado ao Parque Nacional dos Aparados da Serra, onde visitamos os canyons de Fortaleza e Itaimbezinho. Tivemos azar. Chegamos ao canyon Fortaleza por volta das 9h00, ainda com boa visibilidade, mas ao chegarmos no mirante principal uma forte neblina o tornou praticamente invisível. No de Itaimbezinho não vimos absolutamente nada.


Duas vistas do canyon de Fortaleza em Cambará do Sul. As majestades da natureza.

Como o trecho entre Cambará do Sul, São José dos Ausentes e São Joaquim (SC) é todo ele em estradas de chão, abrimos mão de descer a Serra do Rio do Rastro e rumamos para Florianópolis, para não encompridar tanto a viagem de volta, no domingo. Foi um roteiro de tirar o fôlego, tanto pela beleza dos encantos naturais, quanto as que foram feitas pela intervenção humana. E, durante a viagem, excelente gastronomia e vinhos extraordinários.



sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Guerra pela eternidade - O retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Benjamin Teitelbaum.

Acima de tudo, um livro intrigante. Recebi Guerra pela eternidade - o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista, de Benjamin R. Teitelbaum como presente de aniversário, do meu filho, o Iuri. Comecei a sua leitura e fiquei impressionado. Fui buscar com o Iuri o como ele entrou em contato com o livro e ele me falou que foi no programa do Pedro Bial. Fiquei mais intrigado ainda. Pedro Bial é vinculado ao Instituto Millenium. O livro investiga em profundidade o pensamento ultra direitista no mundo contemporâneo. Estranhei demais uma excessiva proximidade do pesquisador com os personagens de sua pesquisa. O próprio pesquisador explica, na nota do autor, com a qual inicia seu livro:

"Sou etnógrafo de profissão, não sou jornalista. Aprendi a seguir um método de pesquisa acadêmica segundo o qual estudiosos observam, interagem com e, às vezes, vivem entre as pessoas que estudam por longos períodos. Nesse método, um objetivo importante é a empatia: compreender e interpretar o seu modo de ver o mundo". Sublinhei - "interagem" e "vivem entre as pessoas". É muita aproximação, que em alguns momentos até chega a se assemelhar com articulação entre os personagem observados. Teitelbaum é professor de etnomusicologia e assuntos internacionais na Universidade do Colorado, em Boulder. 

Guerra pela eternidade. Benjamin Teitelbaum. UNICAMP. 2020. Tradução: Cynthia Costa. 

O etnomusicólogo observa basicamente três personagens, todos ligados à ascensão da chamada direita populista: Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho. O primeiro, profundamente vinculado ao presidente Trump, dos Estados Unidos, o segundo, ao presidente da Rússia, Vladimir Putin e o terceiro ao presidente Jair Bolsonaro, do Brasil. Olavo de Carvalho teve influência direta na escolha de ministros de sua filiação ideológica no governo Bolsonaro, como Ricardo Vélez Rodríguez, da Educação e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores.

Além de acompanhar as movimentações desses três personagens, ele estuda o seu modo de pensar, bem como os fundamentos desse pensar. Dois personagens originários são comuns aos três: o francês René Guénon (1886-1951) e o italiano Julius Evola (1898-1974). Ambos misturam a sua filosofia com elementos esotéricos. Guénon ataca as instituições do mundo ocidental moderno, enquanto que Evola foi influente no estabelecimento do fascismo e do racismo na Itália. Oriente e espiritualidade estão presentes nos dois. Os três personagens estudados são bastante generalistas em suas afirmações, mas tem pontos em comum, como a rejeição ao mundo moderno (leia-se, iluminismo, estado-nação, mundo liberal, instituições democráticas, tendências à generalização e universalização na questão dos direitos humanos, da igualdade e contrários à globalização). Vejamos um apontamento do autor:

"Por Tradicionalismo - com T maiúsculo - estávamos nos referindo a uma escola espiritual e filosófica alternativa, com um grupo eclético, ainda que minúsculo, de seguidores, ao longo dos últimos cem anos. Quando combinado com o nacionalismo anti-imigração, no entanto, muitas vezes é sinal de um radicalismo ideológico raro e profundo, e é por isso que o acompanho". A resenha me impede de aprofundar, mas - creio ser interessante essa observação buscada pelo autor em Evola, sobre as degradações da modernidade: "Alternativamente, ele e outros viam na modernidade a ascensão de uma idade sombria na qual democracia e comunismo resultavam de um desprezo generalizado pelo passado e de uma fé proporcional no futuro, na qual a política focava a economia, a população escurecia devido à migração do Sul para o Norte e o feminino e o secularismo forjavam uma cultura que celebrava o hedonismo sexual e a desconsideração caótica por qualquer tipo de limite". 

A pregação, portanto, de uma volta ao passado, a um longínquo passado. Aos povos hindus e iranianos, buscando a origem ariana dos seres humanos. Vejamos o encerramento do livro, a sua última frase: "Sim, os Steve Bannons de nossos tempos podem encontrar vitórias onde outros veem derrotas. Com armas e exércitos, as vezes manifestos, às vezes invisíveis, eles enxergam o mundo através de lentes radicalmente diferentes - veem o caos na estrutura, a ordem nas ruínas e o passado no futuro". Eles recorrem muito ao mundo abstrato da espiritualidade.

Bem, o livro é longo. São 285 páginas, ocupadas por 22 capítulos. O tema é árido, com muitas idas e voltas. Temas interessantes da organização de um pensamento mundial de direita são mostrados. Não negligenciam na publicação de livros. Tem até uma editora específica, a Arktos. O principal elemento de ativismo político é serem contra a universalização (choque com o indivíduo - presenças de Nietzsche e do "DASEIN" de Heidegger), a ascensão feminina, a democracia e a perda da espiritualidade. Liberalismo e comunismo, ambos são frutos da modernidade.

Para nós brasileiros, um capítulo ganha particular interesse. É o capítulo 20, que tem por título, Brasil profundo. É sobre Olavo de Carvalho e sua influência sobre o presidente Bolsonaro, especialmente através de seus filhos. O autor relata a influência na escolha de ministros do governo, das divergências com os militares e do vice, Mourão, por considerá-los pró China e contra a aproximação com os Estados Unidos. O ataque mais contundente de Olavo de Carvalho é contra as universidades brasileiras, para as quais defende a redução de verbas. Vejam uma fala sua: "Se eu te mostrasse fotos de universidades brasileiras, você só veria gente nua fazendo sexo. Eles vão para a universidade para fazer sexo e, se você tenta impedi-los, eles se revoltam, começam a chorar, dizem que você é um opressor". E um pouco mais adiante acrescenta, defendendo mais uma vez, o corte de verbas: "As universidades permaneceriam uma fachada, como todas as instituições no Brasil - nesse caso, uma fachada para a fornicação".

Em suma, o livro é altamente recomendável para todos os que querem entender melhor o mundo e o Brasil, em particular. Digamos, um mundo de horrores. Vejamos ainda a apresentação do livro pelo próprio autor, na orelha do livro: "O ciclo do tempo. O desejo de lutar pela eternidade em vez de imaginar um futuro melhor e mais promissor. É assim que você distingue um Tradicionalista real de alguém que é meramente conservador - ou um tradicionalista, com t minúsculo. É a diferença entre alguém meramente pessimista e quem acredita que vivemos um tempo de destruição, que sustenta que o desmoronamento de monumentos (General Lee - Chesterville) é algo a ser celebrado e que a vontade de construir algo grandioso não passa de uma tolice perversa. O que aconteceria se um grande número de líderes mundiais fosse aconselhado por pensadores que têm o objetivo de colocar tudo abaixo, que valorizam a estagnação em vez do progresso, que desejam que nosso universo resgate o que éramos, e não que conquiste o que sonhamos ser".

sábado, 9 de outubro de 2021

Uma cena de escravidão. Em Gramado - RS. Em 01.10.2021.

Depois de mais de um ano e meio vivendo uma espécie de confinamento por causa do Coronavírus, convidado pelo meu filho, empreendemos uma viagem de férias para o Rio Grande do Sul. Ele estava com um sentimento de saudosismo, querendo revisitar os lugares onde eu nasci. A minha cidade natal é Harmonia, no vale do rio Caí. Os meus filhos nasceram em Umuarama e conheceram essa região do Rio Grande do Sul, ainda em sua infância. 

Procurei traçar um roteiro que misturava visitas turísticas e familiares. Começamos por Antônio Prado, considerada a mais italiana das cidades brasileiras, com mais de 40 casas tombadas pelo IPHAM. Continuamos na Serra Gaúcha no dia seguinte, visitando o Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, em Farroupilha e o Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. Rica culinária e excelentes vinhos. O dia seguinte foi dedicado a visitas familiares em Tupandi e Harmonia. Voltamos ainda para a Serra Gaúcha, visitando Garibaldi, Carlos Barbosa e Salvador do Sul. Aí empreendemos a viagem de volta, visitando Nova Petrópolis, Gramado e Canela. Lugares encantadores. A parte turística terminou em Cambará para ver os cânions de Fortaleza e Itaimbezinho. Uma forte neblina nos tolheu a vista durante a visita. Só valeu a primeira meia hora. Escolhemos a cascata do Caracol, como a mais bela atração em toda a viagem.

Mas vamos ao motivo deste post. Uma cena vista em Gramado, cidade encravada na Serra Gaúcha. Ela é belíssima. Tem um pouco menos de 40 mil habitantes e a sua economia é quase totalmente voltada ao turismo. Consta que recebe 6,5 milhões de turistas por ano. Ela é um Shopping a céu aberto, tal o luxo do centro da cidade, na Avenida Borges de Medeiros e ruas próximas. Nela ocorre o famoso Festival Brasileiro e Latino de Cinema, que distribui Kikitos, as programações do Natal Luz e a Festa da Colônia, uma festa de integração dos povos colonizadores, especialmente alemães e italianos. Em Gramado está localizada a igreja de São Pedro, a igreja matriz da cidade. Foi nesta igreja que vi a cena que dá o título para o Post.

Em minhas viagens observei muitas cenas remanescentes da escravidão. Duas delas eu ainda trago muito vivas na memória. A primeira é a igreja de São Francisco, nas proximidades do Pelourinho, em Salvador. A igreja é uma das mais ricas do Brasil. Mas, a sua riqueza é encontrada apenas para além do pórtico de entrada. Na parte anterior, a dos fundos, não há riqueza alguma. A organização do espaço e a sua estética obedecia ao critério das classes sociais que, creio, não satisfazia o gosto de Jesus. A outra cena é de São João del Rei, em Minas Gerais. É uma cena de rua. A rua é a que se situa em frente à casa da família de Aécio Neves, assim pelo menos ela nos foi apresentada pelo guia turístico. A calçada dessa rua tem dois andares, um superior, outro inferior. Na parte superior andavam os senhores, na parte inferior, os escravos que os acompanhavam. A escravidão continua com as suas marcas irremovíveis. É que, citando Joaquim Nabuco, a escravidão foi  abolida, mas não a sua obra.

Agora vamos à cena de Gramado. Muito próximo da bela igreja, uma senhorinha andava ereta e elegantemente trajada. Logo atrás vinham duas crianças, meninos, provavelmente gêmeos, em torno de dois para três anos de idade, ricamente vestidos com roupas que ostentavam uma famosa marca. Atrás vinham duas moças, as pajens das crianças, devidamente uniformizadas, meio avental de professora, meio de enfermeira. Ninguém interagia. A mãe nem mesmo volvia os olhos. Acompanhei a cena meio de lado, com toda a discrição possível. Quando chegaram à igreja, a senhorinha e as crianças entraram, as pajens ficaram. A partir daí não mais acompanhei a cena e me pus a refletir. Por óbvio, não registrei fotograficamente a cena.

Uma cena de primeiro de outubro de 2021. A lei da gravidade social persiste e insiste em se manter. Uma tristeza profunda tomou conta de mim. Certamente, por muito tempo ainda manteremos as estruturas injustas de nossa origem histórica, fundada na escravidão, uma chaga, que tudo indica, é irremovível. Tudo isso, num dos mais belos e ricos países do mundo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Sobre a estupidez. Robert Musil.

Tenho uma grande estima por romances de formação. Entre eles, um em particular, me causou  profunda impressão. Trata-se de O jovem Törless, do escritor austro-checo, Robert Musil. As desventuras de um menino num colégio interno. Quando estava em busca de seu mais afamado livro O homem sem qualidades, e, como ainda não havia localizado um exemplar que me convinha, apareceram nos anúncios publicitários das redes sociais sugestões de obras semelhantes ou do mesmo autor. Assim apareceu em tela um ensaio/conferência, sob o nome Sobre a estupidez. Adquiri-o de imediato. Deixo o link da resenha de O jovem Törless:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2020/08/o-jovem-torless-robert-musil.html

O ensaio de Robert Musil, Sobre a estupidez. Ayiné. 2020. Tradução: Simone Pereira Gonçalves.

O ensaio/conferência foi proferido em duas oportunidades, em Viena, nos dias 2 e 17 de março do ano de 1937, atendendo a um convite da Federação Austríaca do Trabalho. Observem o ano - 1937, praticamente às vésperas do Anschluss, fato que até hoje envergonha a história austríaca. Na abertura dessa conferência ele cita um trabalho seu, de 1931, já em tempos de ascensão do nazismo alemão, que se consolidaria já a partir de 1933. Dá para imaginar o empenho e a gana do escritor nessa fala!

Como o ensaio/conferência é de difícil resenha, começo com uma pequena síntese, apresentada na contracapa do pequeno livrinho: "Em 1937, a convite da Federação Austríaca do Trabalho, Robert Musil profere uma penetrante e arguta conferência sobre o tema da estupidez, dando origem a este ensaio, considerado um dos mais importantes do autor. Sobre a estupidez, afirma Musil, as pessoas geralmente preferem não falar, não discutir: "O domínio violento e vergonhoso que a estupidez exerce sobre nós é revelado por muitas pessoas ao demonstrarem-se surpresas de maneira amável e conspiratória quando alguém, a quem confiam, pretende evocar esse monstro pelo nome".

Sublinhei uma série de passagens que me pareceram mais marcantes. A primeira está já na abertura, quando cita um trabalho seu de 1931: "Se a estupidez não fosse tão parecida, a ponto de confundir-se, com o progresso, com o talento, a esperança ou a melhora, ninguém desejaria ser estúpido" (Página 7). Aparece aí uma primeira ideia da distorção em torno do conceito, "um distúrbio do desenvolvimento contemporâneo". De saída o autor também remete o conceito à arte, quando se confunde "um juízo estético com um juízo comercial", referindo-se ao cinema sonoro. Constata ainda que os sábios preferem falar sobre a sabedoria no lugar da estupidez. 

A pressuposição básica de quem fala sobre a estupidez é a de que ele não se considera um estúpido. Musil associa a dificuldade de falar sobre ela à caça da borboleta branca, que quando caçada, aparecem em seu lugar, outras extremamente semelhantes, confundindo o caçador. Também a considera sob a forma de uma relação de poder, o que a vincula com a subordinação, como na relação senhor e servo, professor e aluno. É uma ação de crueldade contra os mais fracos. Triste mesmo é quando o ser humano fala como massa, um "nós" coletivo, tão próprio à classe média. Também a relaciona com a vaidade ao citar um ditado popular: "Estupidez e orgulho crescem no mesmo galho" (Página 18).

Também me causou impacto uma afirmação de que "à estupidez em ação, designamos rudeza" (Página 24). Vem daí a interação entre a inteligência com os sentimentos. É algo mais do que a simples falta de inteligência. Uma das mais brilhantes análises, sob a minha ótica, é quando ele estabelece vínculos entre a inteligência e o desempenho. Estúpido e incompetente se confundem. Aí já se parte para uma associação com as relações comerciais. A desonestidade se reveste de inteligência e competência. Faz também um belo emprego da palavra Kitsch, no sentido de mercadoria de pouco valor, vendida com prejuízo. Estamos assim, já no complicado campo da moral, da competência e da estupidez. A estupidez também, em muitas ocasiões se apresenta como uma forma instintiva de agir. Neste campo, eu me adiantei nos meus juízos, lembrando que o neoliberalismo, em seu estágio mais recente, apresenta o "ganhar dinheiro", como a forma suprema da inteligência.

Ainda sobrou tempo para Musil entrar em outros campos de extrema complexidade, como a da psicologia e das questões médicas. O mais impactante, no entanto, é quando ele fala da educação: "Não há nenhum pensamento importante que a estupidez não saiba aplicar, ela se move em todas as direções e pode vestir todas as roupagens da verdade. A verdade, ao contrário, tem apenas uma roupa em qualquer ocasião, um só caminho, e sempre está em desvantagem" (Página 44). Triste. Sempre existe uma enorme ambiguidade entre a inteligência e a estupidez.

E uma frase para terminar. É sobre a integração entre pensamentos e sentimentos, visando um bom senso: "Mas, se tivéssemos que acrescentar alguma coisa, seria o seguinte: com tudo o que foi dito não existe ainda nenhum sinal seguro de reconhecimento e diferenciação do significativo e não poderia existir nem de leve um sinal totalmente suficiente. Mas justamente isso nos leva ao último e mais importante meio contra  a estupidez: a modéstia (Página 49). O livrinho tem apenas 51 páginas.

Um dos motivos, de uma maneira toda particular, pelos quais eu li o livro, além do apreço pelo autor, foi o de estabelecer uma relação entre os anos de 1937 e os anos do Brasil sob o governo Bolsonaro, um governo, diga-se, eleito. Não vou expor essas reflexões, mas acrescentar uma provocação de Adorno em sua fala do dia 18 de abril de 1966, que depois foi incorporada ao livro Educação e emancipação. Mais profunda é impossível: "A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser necessário justificá-la".