quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Na minha pele. Lázaro Ramos.

Dias após um encontro em que discutíamos trabalhos de formação, recebi via WhatsApp, de meu amigo Sebastião Donizete Santarosa, uma foto da página 33 do livro Na minha pele, de Lázaro Ramos, com o seguinte teor: "Na minha infância, não tinha esse papo de ancestralidade. Mais recentemente, numa conversa com o professor Muniz Sodré, percebi que, mais do que a filosofia e a ciência, o que traz mudança mesmo são as representações coletivas, e a ficção tem um papel fundamental nessa construção. 'A literatura sempre disse mais sobre o homem no Brasil que a sociologia - até hoje, muito preocupada apenas com a luta de classes. O cinema e a novela, com a força que têm hoje em nosso país, podem trazer um ataque forte aos preconceitos', me disse o Muniz em uma entrevista para o Espelho. Eu incluiria a literatura infantil e as biografias nesse rol e acho que ele concordaria comigo".

Na minha pele. Lázaro Ramos. Objetiva. 2021.

Foi o que bastou para eu comprar e ler com a devida atenção o livro do Lázaro Ramos. Em nossos trabalhos de formação, tanto o Sebastião, quanto eu, temos a preocupação de evitar todo e qualquer tipo de doutrinação, ao estilo da catequese. Por isso nossos trabalhos se centram na formação de leitores. Por essa razão, por óbvio, concordamos plenamente com as afirmações do Lázaro e do professor Sodré. Mas vamos ao belo e benfazejo livro Na minha pele.

O próprio Lázaro tem dificuldades em classificar o seu livro. Seria uma biografia ou um livro de memórias? Lázaro é muito novo para isso. Eu, seguramente, o classificaria como um livro de formação, de relatos biográficos, de pontos de inflexão e de rupturas em uma trajetória de vida. Nascido na ilha do Paty, no município de São Francisco do Conde, no recôncavo baiano, Lázaro teria poucas opções para seguir uma trajetória própria de vida, de uma autodeterminação de seu destino. Sua ilha tem apenas duzentos habitantes, todos com a marca da origem negra e indígena. Sair de sua ilha era fundamental, levando porém, as suas origens, sem nunca delas se apartar.

Creio que o traço fundamental na construção de seu ser singular foi o seu encontro com o teatro, ao se inserir no Bando de Teatro Olodum. Pelo teatro procurava superar um traço característico seu, partilhado com tantos jovens, que é a timidez. O Bando de Teatro Olodum o colocou em contato com as suas origens, com a sua ancestralidade. Na representação de uma peça sobre Zumbi dos Palmares que "estabelecia uma relação direta entre uma favela e os quilombos" ele se descobriu. Nessa peça, segundo seu relato ele "fazia um garoto com poucas falas, o que me deu mais tempo para assimilar as informações da pesquisa: a importância de Zumbi dos Palmares; que a história negra é repleta de lutas e que eu não devia chamar meus ancestrais de escravos, e sim de africanos escravizados; que a liberdade não veio de uma canetada da princesa imperial, mas após muita luta. Esse foi mais um salto na compreensão sobre de onde vim e para onde eu podia ir". Observem bem, um salto. Um salto na formação. Uma tomada de consciência.

Eu teria a acrescentar um outro relato seu. Eles mesmos escreviam as peças que representavam. Um trabalho de  práxis. Não representavam ou, especificando melhor, não aplicavam um trabalho escrito por outros. Ah, como isso me fez lembrar dos livros didáticos e a simples aplicação de aulas! Isso aconteceu quando Lázaro já tinha dezessete anos. E por aí vai o livro: seus trabalhos no teatro, na televisão e no cinema. O seu encontro com Taís Araújo e os filhos João Vicente e Maria Antônia. 

Considero o capítulo "Entre o laboratório e o palco" um dos mais bonitos do livro. É o seu desprender-se de amarras com o trabalho com carteira assinada, em sua opção pelo teatro e as opções que a vida lhe vinha proporcionando. Ele fala muito de seu trabalho na televisão, de seu programa Espelho, um programa de entrevistas, de relatos de vida. Essas entrevistas o colocaram em contato com muitas individualidades, das quais absorveu as diversidades, num belo e complexo campo de somas em sua formação. Foi aprendendo muito. Vejam o relato de uma conversa com Jaime Sodré, professor e doutor em história da cultura negra e ogã, após uma entrevista. É sobre filhos, Maria Antônia, em particular: "Você sabe que essa menina que está vindo aí é de Ogum, não é?".  Taís estava grávida de cinco meses da nossa filha, Maria Antônia. Eu disse: "Não sei, é?". Ele completou: "É. Crie ela livre. As vezes nós criamos nossos filhos cerceando a liberdade deles e isso cria seres atrofiados. O espírito dela é livre. Deixe-a ser plena".

Essa busca pela vida plena dá a tonalidade do livro. Na segunda parte ele aborda temas mais específicos como o empoderamento, a sororidade, o afeto e a autoestima. Analisa ainda as políticas públicas de ações afirmativas e da necessidade de criar um novo olhar que vise a potencialização do ser na sua realização humana, social e econômica, na busca de 'seres plenos'. Uma de suas reflexões finais é sobre o resistir e o existir. Apenas resistir é incompatível com o existir, com o viver em plenitude. E uma vida de muitos afetos, de afetos manifestos, como o simples fato de dizer constantemente que amamos! Ah, a minha ancestralidade germânica, tão ausente de dizeres, de afetos e de abraços.

Um livro belíssimo. Um livro repleto de belas intenções e de formas de sua concretização. Acima de tudo, um livro necessário. Um livro necessário para educadores, de educadores preocupados com a formação de seus alunos, de individualidades que vivem em grandes coletivos e que se preocupam com o viver bem, com a plenitude das potencialidades desenvolvidas. Afinal, não existe o viver, sem o conviver, pois viver é conviver. Grande Lázaro Ramos. O teu livro é uma verdadeira dádiva para os seus leitores. Ou, como diz o seu amigo Wagner Moura, na contracapa: "Na minha pele é um livro imenso, escrito por uma alma imensa, que nos oferece sua intimidade com coragem, generosidade e bom humor".

Antes de terminar, ainda duas questões. Voltarei ao livro em outro post, para contar uma lenda africana, a do "espelho quebrado" e a sua relação com a VERDADE. Belíssimo. E recomendações de leitura, tiradas do livro, duas em particular e que, eu mesmo as farei. A primeira é Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves e a segunda, O olho mais azul, de Toni Morrison, de quem eu já li Amada. Pelas informações contidas nesse post, o deixo aqui para acesso:

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/05/amada-toni-morrison-primeira-negra.html


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