segunda-feira, 30 de abril de 2018

Controle de natalidade. Manutenção da desigualdade. Luis Fernando Veríssimo.

O livro com a longa entrevista de Lula, na qual "ele mais se desnuda", segundo a expressão de Ivana Jinkings, uma das entrevistadoras, tem também uma preciosidade em seu prólogo. Trata-se de um texto escrito por Luis Fernando Veríssimo, Controle de Natalidade, no qual ele afirma existir no Brasil um controle sobre a esquerda, a fim de impedi-la de nascer e de crescer, para que ela não possa estabelecer políticas públicas que gerem, ao menos  um pouco de igualdade.
O maravilhoso livro que contém a entrevista com o Lula e o texto do Veríssimo.

O livro com a entrevista tem por título A verdade vencerá - O povo sabe por que me condenam. Além de Ivana Jinkings, da editora Boitempo, participaram da entrevista Juca Kfouri, Maria Inês Nassif e Gilberto Maringoni. O livro é como que um diário da crise do segundo governo da presidente Dilma e da complementação posterior do golpe, com a condenação e prisão de Lula, visando o impedimento de sua participação no pleito eleitoral de 2018, como candidato à presidência da República. Um importante documento para a história.

Mas neste post quero me ater ao prólogo. Ele contém apenas três parágrafos. Elogiar Luis Fernando Veríssimo é como elogiar a perfeição em si. Mas sempre é necessário expressar. Não basta admirar, tem que dizer. A crônica é perfeita. No primeiro parágrafo ele evoca o Brasil como o país mais desigual do mundo e que este fenômeno tem origem numa longa construção histórica. Vou reproduzir o parágrafo na íntegra:

"Não se constroi o país mais desigual do mundo em pouco tempo. Foi um longo processo, que começou com o primeiro nativo sendo espoliado pelo primeiro português, na nossa cena inaugural, e continua até hoje - mais de quinhentos anos de submissão de uma maioria a castas dominantes e fechadas, primeiro a dos nossos colonizadores, depois a de uma oligarquia nacional empenhada em se manter fechada e dominante."

O segundo parágrafo é o central e se refere ao controle de natalidade, expresso no título, do impedimento do nascer de um projeto alternativo que possa reverter este quadro de desigualdade. Vejamos: 

"As histórias oficiais política e econômica do Brasil nem sempre reconhecem esse empenho deliberado de proteger privilégio e poder do patriciado brasileiro, preferindo atribuir nossa tragédia social a alguma espécie de danação, culpa do nosso caráter, ou mesmo do legado daqueles nossos 'descobridores' portugueses, quando não ao tamanho do nosso território ou ao nosso clima. Mas a desigualdade brasileira não é uma fatalidade, tem autores identificáveis, pais conhecidos. Através da história, ela vem sendo mantida, principalmente, pelo que pode ser chamado de controle de natalidade de qualquer opção de esquerda, proibida de nascer ou se criar. Até onde a casta dominante está disposta a ir para evitar que a esquerda prolifere, nós já vimos. Os gritos de dor dos torturados pela ditadura de 1964 ainda ecoam em porões abandonados. E 1964 é apenas um exemplo do que tem sido uma constante histórica."

O parágrafo final é dedicado aos governos do PT e às políticas públicas praticadas e que resultaram em distribuição de renda e a consequente diminuição da desigualdade. Daí o feroz combate da volta do PT ao governo. Na frase conclusiva, uma volta ao título. Vejamos:

"Até hoje se discute se o governo de Getúlio Vargas foi 'progressista' por convicção ou por conveniência política. De qualquer maneira, foi uma das poucas vezes, antes dos anos petistas, em que 'as esquerdas' brasileiras estiveram nas cercanias do poder, mesmo fazendo concessões para não ser abortadas. O primeiro governo do Partido dos Trabalhadores mostrou que era possível fazer política social consequente sem ter que ceder a tentações ditatoriais, como as que acometeram Vargas. Houve distribuição de renda - e começou-se a diminuir a desigualdade no país. Daí a reação feroz da casta dominante à perspectiva da volta do PT ao poder, de que trata este livro. O patriciado, em eterna vigilância contra o nascimento de uma esquerda viável, deu-se conta da sua distração e agora se apressa em corrigi-la - até com o repetido sacrifício de convenções jurídicas e cuidados éticos."

Sempre grande o nosso cronista. O livro todo é uma afirmação perante a história. Um documento necessário. E, toda uma luta, para abortar este absurdo controle de natalidade sobre as esquerdas brasileiras.

sábado, 28 de abril de 2018

Ricos, podres de ricos. Antonio David Cattani.

Ricos, podres de ricos é um livro necessário. É uma veemente denúncia sobre a exagerada concentração de rendas, hoje um fenômeno global, não mais restrito aos países subdesenvolvidos.Os malefícios, por sua vez, são também globais. A autoria do livro é de Antonio David Cattani, professor de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A publicação é da Marcavisual / Tomo Editorial.
 A bela capa do livro, uma ilustração de Edgar Vasques.

A frase em epígrafe dá o tom ao livro: "A luta de classes existe, mas é a minha classe, a classe rica que está fazendo a guerra e nós estamos ganhando". Ela é de Warren Buffet, a segunda pessoa mais rica do mundo, com fortuna avaliada em 75 bilhões de dólares. Eu estaria tentado a dizer que foi por meritocracia, mas o livro me ensina, que a riqueza e a sua acumulação exagerada não é dada por um fenômeno natural, mas que foi construída toda uma ideologia para justificá-la, aplacando assim as consciências, se é que isso é possível.

Passo, inicialmente, a mostrar a contracapa do livro: "A expressão podre de rico tem um duplo sentido. O primeiro remete ao superlativo da riqueza. O segundo tem um significado sarcástico ou debochado. Termos similares existem em várias línguas: podrido de dinero, em espanhol; filthy rich, em inglês; stinkreich, em alemão, sempre com um sentido de posse exagerada e ultrajante.

Etimologicamente, "podr" é um antepositivo latino para referir-se a algo estragado, pervertido ou corrompido. Essa ambivalência da expressão é perfeita para dar conta da negatividade relacionada à posse da riqueza desmedida. A concentração de renda é fonte de injustiças e de ineficiência econômica. Para ampliar o bem comum, é preciso repartir melhor os resultados da produção social."

O livro contém um prefácio à segunda edição, destacando o conceito gramsciano do "pessimismo da razão e do otimismo da vontade" e uma apresentação introdutória ao tema, onde, desde já, a ideologia da meritocracia ganha destaque. Seguem quatro capítulos: Riqueza desmedida; a riqueza mistificada ou a construção da legitimidade; a riqueza como problema e, é possível mudar?

No primeiro capítulo sobre a riqueza desmedida, o autor fala da dificuldade de sua mensuração pela falta de termos comparativos, da riqueza substantiva, da ocultação destas riquezas em paraísos fiscais, além de nos apresentar a restrita listinha dos plutocratas brasileiros, citando os Marinho, os Lemann, o Safra e o Blairo Maggi. Fala das origens destas fortunas e dos diferentes mecanismos de sua manutenção e multiplicação. Uma síntese disso pode ser dada pelo dado da riqueza substantiva, aquela que soma o poder econômico ao poder político. Bens públicos como presentes é um dos subtítulos, referente às privatizações. Aqui existe uma recomendação interessante. A leitura de Brasil privatizado, de Aloyzio Biondi.

No segundo capítulo fala da busca da naturalização do processo de acumulação, numa mistura de pseudo ciência e senso comum, por teorias absolutamente ideologizadas. Estas são produzidas e reproduzidas por escolas, igrejas e meios de comunicação. Por elas se impede o avanço de ideias força que poderiam se opor a esta acumulação. O elitismo aristocrata se justifica pela meritocracia, a falsa justificativa para a riqueza. Além disso, existe todo um linguajar, meticulosamente construído, inerente ao fenômeno. Vejamos uma pequena ilustração: "No caso dos não ricos, existe uma constelação de termos  depreciativos tais como: pobreza, miséria, indigência, exclusão, ralé. A eles se agregam a apatia, o acomodamento, a preguiça, a desordem, o consumo de drogas e outras negatividades". Já do outro lado, só positividades: "Eles se autodesignam como 'classes produtoras', elite, classe A, extratos superiores, alta sociedade. Além de outras qualidades a eles referentes como talento e liderança, competência, empreendedorismo, bom gosto, prestígio e tradição".

No terceiro capítulo são mostradas as nefastas consequências desta acumulação, como o entrelaçamento entre as grandes corporações e a corrupção, com o verdadeiro sequestro da política, sobre a qual exercem o seu domínio e legitimação, os altos custos sociais e ambientais, além do rentismo e do fenômeno do parasitismo e da expressão violenta do ódio contra os trabalhadores. Além disso criam uma imagem de filantropia, esta praticada, preferencialmente, com os cofres públicos.
A contracapa do livro.

No quarto capítulo são apontadas as alternativas. Quando no início do século XXI se clamava que "um outro mundo é possível", este clamor, hoje, se torna absolutamente necessário. Também a expressão neoliberal do Estado Mínimo, ela, hoje dever ser substituída pela do Estado Necessário. Isso só pode ser feito por uma organização coletiva, sob os auspícios do princípio iluminista do ouse saber kantiano e sob os princípios da justiça, pois, "a civilização progride pela justiça. São justas as condições que promovem a igualdade de oportunidades e a emancipação social regida pela busca do bem comum". E, um acréscimo meu. Isso não será feito pela justiça que emana das leis e de sua interpretação e aplicação pelo Poder Judiciário.


sexta-feira, 27 de abril de 2018

Tempos de cigarro sem filtro. José Maschio.

Meu amigo Cláudio Ribeiro me manda um convite meio insistente. O professor Paixão me manda um WhatsApp me oferecendo carona. E assim fomos ao lançamento do livro do jornalista José Maschio, Tempos de cigarro sem filtro. Mesmo, sem nem sequer ver o livro, mas por conhecer bem o Cláudio, imaginei se tratar de um livro com denúncias do tempo do regime militar. Não deu outra. Os tempos dos cigarros sem filtro, Continental e Mistura Fina, eram os anos de chumbo do regime militar. Passamos um final de tarde e início de noite muito agradável. Entre conversas, cervejas e autógrafos fomos nos conhecendo.
O sem filtro é uma referência aos anos de chumbo.



Cláudio Ribeiro e José Maschio são amigos de longa data. Cláudio é um dos homenageados do livro, junto com Aluizio Ferreira Palmar e Zélia Passos, além de uma referência à memória de Bacuri e Onofre Pinto, combatentes mortos pela causa da liberdade. Bacuri e Onofre são personagens do romance. Na página da homenagem e da memória lemos também uma bela frase em epígrafe: "Coração vermelho // Bate à esquerda // Avoa feito balão."

Na contracapa encontramos uma frase que nos fornece uma boa pista para a leitura. É interessante, na leitura, seguir mais de perto o personagem Ruço (não se trata de erro, nem de grafia, nem de digitação). Certamente ele terá alguma proeminência. Mas vejamos a frase: "E Ruço descobriu-se homem. Não mais o molambo magrelo. Não mais brincadeiras com o amigo Lozinho. Hora de crescer, que na vida tem hora para tudo. Até para o embrutecimento".

Na página 140 encontramos outra frase significativa para acompanhar com mais facilidade o narrador, que por sinal, assume a voz de diversos de seus personagens: "Ao contrário dos camaradas, Ruço não havia optado pela luta armada. Tinha sido natural seguir o pai (anarquista), o espólio do pai. Herança do pai era isso. Não atinou com ideologias".

Pronto, já encontramos o fio condutor. Dois meninos, Ruço e Lozinho, precocemente homens, na luta pelo sustento de suas vidas. Outros personagens serão envolvidos. O polaco Jaso e a sua Maria, a mãe de Lozinho, que ganhava a vida, vendendo a sua. Estes são os personagens bons, que vivem até alguns bons momentos, de conforto material, vindos junto com o milagre econômico, do gordo ministro do governo do Carrascoazul. Os do mal, são o delegado e seu agente Negão. São famosos pelo medo que impõem à população, pelos seus métodos de tortura. São os personagens que hoje se autointitulariam de "gente do bem". O delegado chegou até a se eleger deputado pelo MDB, a oposição consentida pelo regime. (Juro que eu não queria, mas, me lembrou o MDB ou a Arena quatro, como me chegaram informações sobre a conduta do MDB de Londrina).  

Os personagens bons vivem de seus trabalhos, difíceis e mal remunerados. São pessoas simples e diretas e, acima de tudo, decididas. Rápidas em suas decisões. Formam uma teia de relacionamentos, nem sempre condizentes com a moral cristã, difícil de ser cumprida até pelo padre branquela, que dirá eles, forjados nos acasos da vida, muitos deles no bar da Jurema. Pessoas perdidas que se complementam. Já os personagens do bem, ostentam uma bela fachada atrás da qual escondem suas vilanias, agravadas com os super poderes do regime.

Não irei adiantar a vocês os enlaces das ricas narrativas. Vou apenas enaltecer a leveza da linguagem e as frases curtas e coloquiais. Muitas vezes me senti envolvido na trama, feito personagem, a espreitar os acontecimentos. Mas, vamos voltar ao Ruço. Ele recebe notícias de seu pai, melhor, de sua morte, através de um mensageiro. Ele o segue, em busca de vingar a sua memória. Vai para o sul e se integra a uma célula da luta armada. Em meio a esse tempo também volta ao local de origem para vingar seus amigos, o Lozinho e o Jaso.
No lançamento, com o autor e amigos.

O Ruço, ao final da narrativa, praticamente fica só. Se foram os seus companheiros de infortúnio e de difíceis trabalhos, como também se foram os companheiros de luta pela liberdade. Só sobrou Cacá, a viúva que tivera Lozinho como companheiro. Mas entre o intumescer do desejo e a memória do fiel companheiro..........Os anos eram mesmo os de cigarro sem filtro e os tempos eram os tristes tempos de chumbo do regime.

A alegria do encontro com o autor e amigos se repetiu na satisfação da leitura deste magnífico romance que aviva a memória de tempos difíceis e cuja volta jamais poderemos desejar e, muito menos, permitir. A fumaça dos cigarros, sem filtro, já é novamente sentida e o seu cheiro não é nada agradável.Pessoas embrutecidas estão a nos rondar.




sexta-feira, 13 de abril de 2018

Um panorama da educação na Argentina. Entrevista com a professora Mariana - Córdoba.

Estou adorando a minha vida de administrador de tempo livre. Ele me permite não ter compromissos com o tempo, com o tempo relógio, na luta pelo pão de cada dia. Assim, em meados do ano de 2017, participei ativamente do processo eleitoral da APP-Sindicato, em favor da chapa dois, da APP- Independente. Nessa campanha conheci pessoas maravilhosas. A campanha me levou até a cidade de Francisco Beltrão. Lá, entre outras pessoas, conheci Rogério Rech, nosso candidato a presidente do núcleo regional, duas vezes mestre, uma vez doutor e pós doutorando, mas acima de tudo, professor da rede pública de ensino em um colégio num dos bairros da gente mais humilde.
Rogério, o orientador e a banca.


Rogério é um estudioso. Entre as visitas da campanha sobrou um tempo para assistir o trabalho de qualificação do seu terceiro mestrado, na UNIOESTE de Francisco Beltrão. É lógico que foi aprovado. Vejam só o tema: A subversividade em Paulo Freire: um espectro nos ronda, o fantasma das ditaduras no Brasil e na Argentina. Uma amizade ficou selada.

Ao longo do mês de março recebi um honroso convite. Era para a apresentação da defesa da dissertação no dia 2 de abril de 2018 e, lá fui eu. Já pela manhã conheci uma professora que integraria a banca, a professora Mariana Alejandra Tosolini, da Universidade Nacional de Córdoba, a famosa universidade fundada pelos jesuítas em 1613, a pioneira na América do Sul. Visitamos a Assessoar, instituição da qual ainda falarei numa outra oportunidade.

A tarde foi a defesa. Banca constituída. Dr. Ivo Dickman, Dra. Cecília Ghedini e a Dra.Mariana Tosolini. O Dr. André Castanha, o orientador, presidiu a banca. Eles representavam, o pensamento de Paulo Freire, sua repercussão na Argentina e a educação freireana no campo. Banca altamente qualificada. E a serenidade de quem soube do trabalho que fez, o tri mestrando, Rogério Rech. Resultado: Aprovação com louvor e recomendação de publicação.
Com o Rogério, uma grande amizade estabelecida.


A noite assisti a aula inaugural ou magna dos cursos de mestrado da Unioeste de Francisco Beltrão, ministrada pela professora Mariana, que apresentou um painel sobre a presença do neoliberalismo na educação argentina e pelo professor Ivo Dickman, que apresentou o pensamento de Paulo Freire e o seu grande reconhecimento no Brasil e no mundo. Depois disso, o óbvio, uma cerveja para comemorar e, boa conversa. No dia seguinte ainda assisti as aulas da professora Mariana. A universidade aproveitou a sua presença na banca, para ministrar uma das disciplinas do curso. Um dia de aula sobre a política argentina e, dentro dela, as políticas educacionais. Uma oportunidade rara.

Mas o que me leva a este post é deixar registrada uma entrevista que a professora Mariana concedeu a um jornal de Francisco Beltrão. A deixo aqui registrada para aqueles que se interessam pelo tema da educação, especialmente, a educação comparada. Ao jornal de Francisco Beltrão, os parabéns. Entrevista de alta qualidade, coisa rara na mídia destes tempos bicudos. A todos, especialmente, para a Ieda e para o Rogério, meus anfitriões, os meus melhores agradecimentos e uma lembrança final, retirada do livro Filosofia Filosofia para não filósofos, sobre o tema da alteridade: "Nós somos as relações que estabelecemos com os outros".

E, obviamente, o link da entrevista.
http://www.jornaldebeltrao.com.br/noticia/273458/e-uma-reducao-do-publico-e-nisso-o-que-se-reduz-e-o-investimento-em-educacao

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Carta a uma professora. Pelos rapazes da escola de Barbiana.

Lendo o livro Carta a um jovem professor, de Philippe Meirieu me reencontrei com outro livro - Carta a uma professora - pelos rapazes da escola de Barbiana, - que eu conhecia dos anos 1970/80. Ele foi escrito no ano de 1975. Meirieu falava da importância do livro, e, após uma consulta à Estante Virtual, consegui encontrar um exemplar. O comprei e o reli. Ele realmente é extraordinário, especialmente, pela força de suas denúncias contra todo o sistema. Faz repensar a escola como um todo.
O raro livro escrito pelos rapazes da escola de Barbiana. Edição portuguesa de 1975.

O narrador do livro é um coletivo de alunos da Escola de Barbiana, da Toscana, da cidade de Florença, na Itália. Ela é uma escola preparatória para os cursos de formação de professores. Entre os alunos narradores está o Gianni, usado ao longo do livro, como o menino símbolo da exclusão escolar. O seu oposto é Pierino, o filho do doutor. Para escrevê-lo, houve vários encontros nos quais ele encontrou forma e unificação. Aí ganhou um único narrador, uma espécie de porta voz. Mas, a principal atribuição de autoria coube ao Gianni, conforme lemos ao final da narrativa: "E veio (o Gianni). Leu-a. Apontou-nos as palavras e as frases muito difíceis. Pediu-nos que reforçássemos uma ou duas bolas bem mandadas. Ajudou-nos a pô-la a si (a professora) no banco dos réus. Praticamente é ele o autor principal".

Ainda, segundo o narrador, a carta/livro é uma vingança, a segunda do grupo. A primeira foi o esforço em não desistir; "Mais uma vez a senhora professora me lixou; aliás para si, isso é tão fácil como cuspir para o chão. Mas não pense que me dou por vencido. Hei de ser professor e verá como sei dar aulas muito melhor que a senhora". Creio que estas duas citações já nos familiarizam com o teor do livro, uma áspera crítica à escola como um todo, com alguns enfoques mais graves, em particular. A exclusão é o maior de todos eles.

O livro é dividido em duas partes: A primeira tem como título, ou assertiva de que a escola obrigatória não tem o direito de reprovar. A segunda continua com o tema continuam a chumbar na "normal", mas... Na primeira parte encontramos alguns subtítulos como os montanheses. Nele são descritos os camponeses, a sua relação com a escola e a perspectiva de nela não se darem bem. Continua com os rapazes da vila, que estão dentro da mesma perspectiva e que muito cedo serão mandados para os campos ou para as fábricas, numa naturalidade e normalidade que não causam nenhum tipo de constrangimento e indignação. A escola é, em seu todo, um processo de seleção e em consequência, de exclusão.

Seguem outros títulos que examinam a realidade desta escola, como os exames, o novo ensino secundário, estatísticas. A força do texto continua na análise dos mecanismos de exclusão, como a linguagem inadequada, os exames e os chumbos, a repetência e os abandonos. O mesmo tom continua, - Não nasceram iguais e que, por isso, para serem iguais, precisam ser tratados de forma desigual. Continua com questionamentos aos professores, era o seu papel e com as incômodas questões sobre - se a seleção serve a alguém, sobre  o patrão e faz ainda uma interrogação sobre - se a seleção atingiu os seus fins. Ainda sobra espaço, talvez para a mais incômoda das perguntas, por quem o faz? A partir desse momento abre-se espaço para a apresentação de alternativas, as reformas que propomos.

Estas alternativas, basicamente, são três. A primeira é absolutamente enfática, não haver mais chumbos, onde encontramos a afirmação categórica de que a escola que reprova não é digna deste nome. A segunda, tempo inteiro é a proposta da escola em tempo integral e o que nela fazer, além do como fazer. A terceira é a discussão em torno de um fim, para a escola, obviamente.
Este livro marcou o meu reencontro com Carta a uma professora.


Na segunda parte existem alguns dados comparativos sob o título Inglaterra, quando o narrador vai a este país para estudar e trabalhar. Depois volta ao tema da exclusão sob o título de seleção suicida, para continuar com outro intrigante tema que é a discussão sobre a vocação e a profissão do professor, em o fim. Nele são abordados os temas de a cultura de que precisamos e a cultura de que os senhores precisam e sobre o processo criminal representado pela exclusão sob os mais diferentes pontos de vista. Os complementos vem com infecção, o correio e desinfecção. Há uma bela proposta sobre a inclusão dos evangelhos no currículo escolar, sob a justificativa de que "é que Jesus sempre foi muito amigo dos pobres e pouco dos bens".

Os dados finais, já os apresentei no início do post, de que a teimosia em continuar estudando e a escrita desta carta foi a forma que os alunos encontraram para se vingarem da professora ou da carga cultural que ela representa e simboliza. O livro é uma provocação (pró-vocare - chamar para) para um grande repensar da escola. Ela precisa ser vista sob a ótica da formação dos filhos da classe trabalhadora e da superação de sua concepção como reprodutora das estruturas sociais existentes, sob o chumbo da lei da gravidade social representada pela exclusão. Deveria ser leitura obrigatória em todos os cursos de licenciaturas e presente em todos os debates pedagógicos das escolas.


Mais duas frases: "E depois, enquanto ensinava, também me fartava de aprender coisas (o aluno/professor).
Por exemplo, aprendi que o problema dos outros é igual ao meu. A política é a gente conseguir fazer as coisas todos juntos, a avareza é fazê-las sozinhos.
.... A senhora professora dirá que estas coisas não são nada do outro mundo. Mas o que é certo é que não faz o mesmo pelos seus alunos. Nunca lhes pede nada. Ou melhor, pede-lhes; manda-os fazer sozinhos o caminho deles". Página17.

" Há certa gente a quem a igualdade faz perder a cabeça".

"A ideia de gênio é uma invenção burguesa que está intimamente relacionada com o racismo e com a preguiça". Página 144. Eu prometi duas frases, uma delas, tome como gorjeta. São belas demais. Devem ser algumas das 'bolas bem mandadas'.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Petista doente. Sebastião Donizete Santarosa.

Um texto magnífico do meu amigo Sebastião Donizete Santarosa. Enquanto houver indignação haverá esperanças. Toda a luta começa pela indignação. Ela só se hospeda em corações extremamente sensíveis. Ouvi de Paulo Freire que todo o anúncio é precedido pela denúncia, que, por sua vez, dela deriva. Agradeço ao Sebastião a honra em permitir a publicação da beleza deste texto. Podes ter certeza de que ele fará eco.


PETISTA DOENTE

Sou um esquerdopata, um defensor de ladrões, um petista idiota, mesmo sem jamais ter sido petista. Em minha doença e em minha idiotia, entretanto, assim como Mickin, o príncipe de Dostoievsck, encontro lucidez para me reconhecer frente aos outros e me posicionar frente às forças, sempre obscuras, que regem os movimentos da história.
O livro do grande romancista russo.

Sou um idiota, reconheço. Trata-se de uma insanidade que me acompanha e se constrói desde a infância. Muito cedo tive que aprender que a comida era pouca, o rebenque pesado, o sono curto e o fardo pesado. Ver a mãe dizendo que não estava com fome na hora da janta porque sabia que a comida era pouca; frequentar escola em que a professora nos espancava e tentava provar, em cada lição, que não sabíamos falar, que éramos feios  e que o conhecimento não era para nós; começar a trabalhar ainda na infância, acordar bem antes do sol nascer, ir dormir de madrugada com o corpo jovem estraçalhado, ganhar um salário miserável que mal pagava o ônibus, o lanche e a mensalidade do supletivo de colégio de qualidade duvidosa; enfrentar filas infindáveis em busca de empregos que não existiam; apanhar da polícia na rua de casa apenas por ser menor, pobre e estar andando na rua de casa... entre tantas dores e apertos, o corpo vai enfraquecendo, a mente se debilitando, a alma se apequenando. Dessa forma, há que se convir, é impossível deixar de se tornar um idiota.

Confesso que queria ser um empreendedor altivo, desses que confiam na força da mente e da individualidade, desses que creem, sem nenhuma sobra de dúvidas, que tudo é questão de entrar em sintonia com as energias cósmicas superiores. Lamentavelmente, as pessoas que encontrei pelo caminho, e comigo ainda andam, não me ensinaram os passos da santificação.

Sou um pobre diabo, vivi e vivo entre más companhias. Ainda no início da caminhada, fui vítima do falastrão Gregório de Mattos, com quem aprendi que no império da fé reina a hipocrisia. Também fui vítima do ateu Antônio Vieira, para quem a igreja era um dos sustentáculos da opressão e da desumanização através da subversão das palavras de Cristo. Influenciaram-me Castro Alves e Joaquim Nabuco, esses liberais lunáticos que achavam possível acabar com a escravidão e com a obra da escravidão, imaginem em que mundo viviam. Acompanhei as páginas de Machado de Assis e de Aloísio Azevedo, vi e ouvi em suas narrativas as relações de exploração, de exclusão e de violência na construção dos cortiços nas cidades maravilhosas. Com Lima Barreto comecei a fazer perguntas embaraçosas para nobres ouvidos delicados, quis saber como é possível, afinal, um país com tantas riquezas naturais e possiblidades, ser tão contraditório, constituído por uma enorme parcela de gente que rasteja à beira da miséria e da indigência intelectual.  Euclides da Cunha, aquele jornalista inocente e lunático, mostrou-me os sertões, a paisagem mais precisa de uma terra, de um homem e de uma luta. E ai, com os pés fincados no chão de nossa terra, conheci o místico José Lins do Rego, o atormentado Graciliano Ramos e o fanfarrão Jorge Amado. Entre eles, e acima de todos, dei ouvidos aos versos impertinentes e desarrazoados de Oswald de Andrade, esse pária que foi capaz de macular a última flor do lácio ao insinuar que havia beleza no jeito grosseiro do povaréu falar, cantar e contar suas histórias.

Assim desse jeito, como um entre tantos vadios, caminhando e cantando, seguindo rebeldes indecentes, Chicos, Elises, Belchiores e Seixas, petulantemente, vejam só, quis que o pai afastasse de mim esse cale-se. Aos trancos, barrancos e versos, Drummond, o menino indisciplinado expulso do colégio por desacatar o nobre professor de português, ensinou-me que eu vivia em um tempo em que não adiantava morrer, a vida era uma ordem, a vida apenas, sem mistificações.  E foi o alcoólatra Vinícius que me apresentou a mim mesmo como um operário em Construção. Clarice, Lispector e louca, abriu as portas para os perigos da introspecção, adornada com a musicalidade da depressiva Cecília Meireles e do suicida Fernando Pessoa. Este levou-me definitivamente a perdição. Aprendi com ele que não sou nada e que jamais serei alguma coisa, mas, a parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. E com todo o direito a tê-los. Ouviu, com todo direito a tê-los!

É claro que me encontrei com muitos outros deploráveis profanadores do sagrado, indesejáveis e abjetos intelectuais que fizeram da Filosofia, da Sociologia, da História, das Ciências e das Artes exercícios de fé e de militância. Em sua perversidade descomedida, muitos deles ousaram e ousam questionar a verdade inalienável do mundo aparente, tentando-nos convencer de que existem mais coisas entre o céu e a terra do que as nossas perfeitas e santas telas das tevês possam demonstrar. Essa gente é culpada. É gente pretensiosa, que provoca a confusão e promove o mal. Shakspeare, Vitor Hugo, Gogol, Dostoievski, Max Gorki, Brecht, Neruda, Orwel, Freire, Steimbeck, Geraldi,  e esses quixotes todos, com suas palavras e pensamentos sem controle, acabam alargando as fronteiras da percepção e, perigosamente, nos fazem delirar, pensar nossas condições existenciais e sonhar com mundos impossíveis.

Confesso que eu não gostaria de ser um petista idiota. Gostaria muito de não ter sido vítima das más companhias. Se eu tivesse sido convertido por um pastor da universal do reino de deus ou por um padre carismático, se eu me tornasse um fiel pagador de dízimos e tivesse a certeza inabalável de que seria um dos escolhidos para entrar pelas portas do reino dos céus como recompensa pela minha mansidão e resignação, provavelmente eu não seria um esquerdopata. Se eu tivesse sido convertido por alguém que detém os segredos do mistério da vida, certamente eu seria um homem de bem, assistiria a Globo, leria a Veja, iria a missa ou ao culto, oraria pacífico em meu canto, idolatraria o magnânimo Deltan Dallagnol, louvaria o santíssimo Sérgio Moro e também odiaria esse povo do mal, essa gente que quer viver às custas do estado, que não gosta de trabalhar, que anda de vermelho e defende ladrão.

Mas eu não fui convertido. Meus mestres eram do mal. Tornei-me um doente, um petista idiota, um esquerdopata. E agora, com a prisão do maior líder popular que esse país já teve, mais do que nunca defendo o meu direito de ser um doente e de viver minha doença. Mais do que nunca defendo Lula, vítima de um processo político kafkiano. Mais do que nunca tenho a certeza de que as forças de esquerda estão se fortalecendo e que em breve retomaremos o caminho da reconstrução do estado democrático de direito. Mais do que nunca tenho a certeza da necessidade da luta radical em defesa da escola e da universidade públicas e gratuitas, em defesa da saúde de qualidade, de políticas de moradia, de geração de empregos e de valorização do trabalho. Mais do que nunca tenho a certeza de que iremos construir o caminho para o controle popular dos meios de comunicação, para o fortalecimento das relações democráticas, para o avanço tecnológico, para a industrialização, para o cuidado ambiental, para a distribuição de riquezas e para soberania nacional. Em minha idiotia, sonho, e vou ajudar a construir incansavelmente, uma sociedade em que se vive e se deixa viver, cada um em suas singularidades e diferenças.
Foto histórica de Lula saindo do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo no dia 07.04.2018.


Sou um petista doente e continuarei sendo, queiram ou não os sadios, os inteligentões, aqueles que caminham com Bonners, com Leitões, com Sardembergs, com Boecharts, com Dórias, com Ronaldinhos Gaúchos, com Pastores, Franscischinis e Bolsonaros...

Sebastião Donizete Santarosa

Observação: Este texto me provocou para a leitura  de O Idiota de Dostoiévski. Deixo uma pequena resenha deste monumental livro.http://www.blogdopedroeloi.com.br/2018/11/o-idiota-fiodor-dostoievski.html

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Carta a um jovem professor - inconformado com o sindicato e meio desanimado.

Diante do maravilhamento provocado pela leitura deste livro Uma carta a um jovem professor, de Philippe Meirieu, quero compartilhar com vocês algumas reflexões do segundo capítulo. Por sinal, ele tem um título simplesmente fantástico - Nós ensinamos para que outros vivam a alegria de nossas próprias descobertas.  Meirieu passa por situações que não são estranhas a nenhum professor, especialmente, os do estado do Paraná, pela forma como foram tratados no governo do ignóbil Carlos Alberto Richa. Burocracia e bombas. Sofrimento físico e simbólico. Depressão e suicídios. Por outro lado, também se defronta com o seu sindicato, incapaz de grandes mobilizações e enfrentamento. Em meio a tudo isso, algumas palavras de alento.
O grande livro de Philippe Meirieu.

"... Mas, como explica Daniel Hameline (filósofo da educação francês) àqueles e aquelas que ainda sonham que a classe se torne uma verdadeira festa do saber, uma celebração coletiva consentida da inteligência das coisas, um grupo de descoberta alegre e espontâneo, 'a festa não é mais aqui'. Irremediavelmente, para a imensa maioria de nossos alunos, nunca mais haverá festa na escola... justamente porque, 'a festa é quando não tem aula'!

Eis-nos então de mãos vazias, vivendo na esperança de algo que hoje parece impossível, tendo escolhido um ofício com o intuito de realizar o que se revela impraticável. Eternamente insatisfeitos, e esperando em vão, ano após ano, ter diante de nós, finalmente a 'classe ideal', 'os alunos ideais', para poder reviver com eles a cena primitiva, que está na origem de nossa escolha profissional. É por isso, talvez, que, na educação francesa, a promoção consiste em uma aproximação, em função da antiguidade e classificação, desses públicos seletos - os 'grandes colégios', os cursos preparatórios para as grandes escolas - onde acreditamos que exista uma chance um pouco maior de encontrar aquilo a que aspiramos legitimamente. Mas só um pouco maior: pois, mesmo na universidade, a decepção não tarda! E no final da aula, acabamos quase sempre sozinhos, esperando em vão pela frase que justificaria, enfim, todos os nossos esforços: 'Ainda não, professor, é melhor continuar aquela nossa discussão...'

São coisas que a gente não diz quase nunca, mas que fazem parte da nossa sina comum: todos nós vivemos nesse descompasso, difícil de aceitar, entre nosso ideal e o nosso cotidiano. E sofremos com isso: de forma mais ou menos ostensiva, às vezes retornando o sofrimento contra nós mesmos - 'sou mesmo um incompetente e nunca deveria ter escolhido esse ofício!' -, às vezes transformando-o em agressividade contra a 'pseudodemocratização da escola' e 'a queda do nível provocada por políticas demagógicas'! Acreditem em mim: nenhum professor está livre dessas lamentações. E não se sinta culpado por ceder a elas eventualmente. É o reverso inevitável da medalha. O oposto da ambição luminosa que nos levou a escolher esse ofício...

Aliás, sou o primeiro a compreender - porque eu mesmo experimentei - esse sentimento de exasperação diante do que consideramos como perseguições administrativas irrisórias em relação ao nosso projeto de ensinar: 'professor Meirieu, o senhor não preencheu corretamente o diário da classe... O senhor está atrasado com seus boletins... O senhor esqueceu as últimas instruções ministeriais sobre a gramática? O senhor tratou de convocar os pais desse aluno? De encaminhar esse outro ao conselheiro de educação para a saúde e de procurar a assistente social para relatar o caso desse terceiro?'. Ou ainda: 'Professor Meirieu, o senhor não fez nada para a semana da imprensa na escola? O que o senhor está pensando em fazer para a semana contra o racismo? O senhor não está subestimando seu papel em matéria de educação para a saúde? O senhor parece estar esquecendo de nossas responsabilidades em matéria de prevenção de acidentes de trânsito. E o senhor tem certeza mesmo de que esse livro que está usando para ensinar seus alunos a ler faz parte do programa? A gente acaba explodindo! E se pergunta, nos momentos de cólera, se o objetivo daqueles que têm a incumbência de administrar nossa instituição não é, antes de tudo, o de nos impedir de ensinar!

Sem dúvida, os responsáveis pela máquina-escola não têm a medida exata desse fenômeno. Às vezes, a gente chega até mesmo a se perguntar se eles não sonham com uma instituição sem professor: uma espécie de self-service em que os alunos estariam a cargo, alternadamente, de computadores e interventores externos, com avaliação em tempo real das competências adquiridas e retribuição imediata em 'grupos provisórios e adaptados'. Os diretores de escola poderiam assim, a partir de um diagnóstico inicial dos alunos, se aproximar o máximo possível da eficácia imediata, identificar melhor os refratários e pôr em prática as medidas necessárias... sem ter de se incomodar com o estado de espírito dos professores que ainda sonham em passear de vez em quando à beira do Ilissos (Rio de águas cristalinas em Atenas).

Da minha parte, não tenho a menor simpatia por esse devaneio tecnocrático que lembra os cenários mais sombrios da ficção científica. Continuo sendo professor, acima de tudo, e, como você, só me sinto verdadeiramente feliz quando me aproximo um pouco de minha fonte interior, quando saio de uma aula com a sensação de que 'as coisas funcionaram'.

Sei muito bem que, ao confessar isso, assumo o duplo risco da ingenuidade e da provocação. Ingenuidade em relação aos espíritos fortes das ciências ditas humanas que podem enquadrar-me para sempre no campo dos ultrapassados: 'Olhem como o Meirieu se perde no inexprimível... Um pouco mais e ele nos levará a uma crise de misticismo!'. Provocação aos olhos dos defensores dos 'saberes disciplinares' que veem em mim um demolidor da cultura: 'Depois de todos os discursos que ele fez sobre o projeto de estabelecimento e a pedagogia diferenciada, como acreditar nessa mixórdia indecente?' E, no entanto, diante de um jovem professor, eu reafirmo com veemência: não se construirá uma 'escola onde todos obtenham êxito', como nos pedem os políticos, contra aquilo que move todo professor em seu projeto mais íntimo. Não se construirá, tampouco, sem os professores em seu conjunto. Impondo-lhes de fora uma série de obrigações desconectadas de suas preocupações fundamentais e que eles experimentam frequentemente como obstáculos à sua missão.

É por isso que defendo a ideia iconoclasta segundo a qual toda pessoa que assume responsabilidades administrativas ou pedagógicas deveria manter um contato regular com os alunos: que o diretor da escola continue lecionando algumas horas por semana em sua disciplina de origem, assim como o inspetor e mesmo o inspetor geral. Que os funcionários da administração central do ministério assim como os reitores e seus colaboradores continuem a assumir cargas de ensino escolar ou universitário.

Para que ninguém esqueça jamais de onde emana e onde se pode regenerar permanentemente o projeto de ensinar". Páginas 26- 27 e 28.
O livro de Meirieu faz uma referência a este extraordinário livro.

Tomo outras frases interessantes: "Na época, eu era um militante pedagógico e político nutrido de cristianismo social e de socialismo libertário". Página 31. "Ser exigente consigo e com os alunos". Página 55. "As mídias exaltam o infantil quando a escola tenta fazer a criança crescer". Página 61. "Todos os professores são 'instituidor' de humanidade". Página 67. "Você se tornará assim, ao mesmo tempo, um profissional da aprendizagem e um militante político - no sentido mais nobre do termo - engajado, no dia a dia, na construção de um mundo à altura  do homem. Como professor de Escola, você será construtor de humanidade". Página 80. Esta é a frase final do livro.

E, ainda, três princípios a serem buscados e que são analisados no capítulo final do livro: - A escola como instituição do encontro da alteridade; - a escola como instituição da busca da verdade e - a escola como instituição de uma sociedade democrática.

domingo, 1 de abril de 2018

Carta a um jovem professor. Philippe Meirieu.

Sou ouvinte assíduo de rádio. Confesso que está ficando difícil. Os apresentadores, especialmente os seus âncoras, estão se descaracterizando dia a dia e, na mesma proporção, estão assumindo a fisionomia e a identidade das emissoras em que trabalham. Alguns estão até renunciando aos nomes próprios que construíram ao longo de toda uma vida.  Faço aqui uma honrosa e necessária exceção. Rosely Sayão e ao programa "Seus filhos", na Bandnews. Ela é a responsável por eu ter chegado a este livro. Creio que ao longo de toda a minha vida nunca comprei, um livro sequer, que me tenha sido indicado pela televisão.
Um livro perfeito para um verdadeiro debate sobre o trabalho pedagógico.

Mas vamos ao livro. Trata-se de Carta a um jovem professor, de Phillipe Meirieu, numa edição da artmed, 2009. Vou começar pela contracapa, que é uma mensagem direta ao leitor: "Você tem o desejo de transmitir e a paixão de ensinar. Foi para isso que você se tornou professor... ou vai se tornar. Não para se desgastar impondo disciplina. Não para sucumbir a reformas ministeriais contraditórias. Nem para tentar desesperadamente tapar as brechas de uma sociedade individualista. Assim, você se pergunta, às vezes, se não errou de ofício. Gostaria de convencê-lo que não é nada disso: não existe contradição entre seu projeto pessoal e as exigências da escola. Gostaria de lhe mostrar que você pode se dedicar plenamente à transmissão de saberes e, ao mesmo tempo, assumir a dimensão política do seu trabalho. Pois é no próprio cerne do ato de ensinar que se processa a educação do cidadão e que se constroi uma sociedade democrática.

Para os jovens professores e para todos aqueles que estão comprometidos com o futuro de nossa escola, procurei não evitar nenhuma pergunta e situar-me onde as tensões são mais agudas hoje".

Vamos continuar de forma invertida, buscando na conclusão, o relato da experiência do autor em sua vida profissional e na escrita do livro. Conta que no seu tempo, os professores eram marxistas, maoístas ou trotskistas. Quem não o era, era visto como "um reacionário irrecuperável". Desconfiou de todos, embora se preocupasse com o imperialismo americano e com a guerra do Vietnã. Mas eu, nos conta ele, "eu mantinha o mesmo apego a esse velho humanismo da tradição francesa que muitos de meus camaradas consideravam como 'um aliado objetivo do capital'.

Conta ainda por onde passou a sua formação, dizendo-se "nutrido pela leitura de Rousseau, mas também de Fourier e de Mounier" e que acreditava que a 'salvação' estaria mais na autogestão do que na ditadura do proletariado". E por aí vai relatando a sua trajetória de experiências.

O livro não é longo, tem apenas 93 páginas. Consta de uma introdução, sete capítulos, uma conclusão e uma entrevista com jovens professores. Na introdução versa sobre o ato de ensinar. Afirma que o 'ser professor é uma maneira particular de ser no mundo', é alguém enfronhado com a transmissão de saberes e estes necessitam ser  revestidos de significados. Não é um ofício de autômatos.

O capítulo primeiro tem por título - Não temos de escolher entre o amor aos alunos e o amor aos saberes. Versa sobre a centralidade do trabalho pedagógico, um trabalho de transmissão, de apresentação e acompanhamento da assimilação de saberes. Esta é a essência do ofício de professor. O título do segundo capítulo é simplesmente apaixonante - Nós ensinamos para que outros vivam a alegria de nossas próprias descobertas. Nele nos mostra que na origem da vocação do professor está sempre um encontro criador, quando nós mesmos enveredamos por caminhos que um dia nos foram abertos por um professor. Cada encontro com o aluno deve ser um ato criador, mas que para sê-lo, é necessária a superação de toda uma instituição burocrática na qual se transformou a escola, a máquina escola. Passa por toda uma análise das grandes dificuldades nesse processo.

A burocracia escolar continua a ser analisada ao longo do terceiro capítulo - Nosso projeto de transmitir não combina com as pressões sociais sobre a escola. Trata-se de um belo capítulo. A escola sempre deveria ter ideais elevados, deveria ser ser marcada pelo respeito aos saberes, sem facilitações e promoções automáticas. "A ajuda aos alunos é uma maneira de se esquivar da transmissão ou de concretizá-la no cotidiano"? nos interroga o autor. Trabalhar o mais próximo dos saberes dos alunos e centrar as atividades no projeto de ensinar e no ato de aprender, sempre deveria ser a centralidade da escola. No início do capítulo tem uma bela confissão de credo do professor, "nutrido de cristianismo social e de socialismo libertário". Este posicionamento é de fundamental importância para que a escola atenda os interesses da sociedade e não apenas os do mercado.

O quarto capítulo, que tem por título - Queremos ser eficazes, mas não em quaisquer condições, analisa modelos educacionais de diferentes países e os impactos que causam sobre os alunos. A eficiência passa necessariamente pela organização de situações de aprendizagem em que o essencial não será mais "o que eu vou dizer a eles" mas "o que é que eu vou pedir para eles fazerem". Podem ver aqui a presença da escola nova, centrada em atividades para a aprendizagem. Devemos também ter muito cuidado com as estatísticas oficiais pois a essência do trabalho pedagógico não é mensurável. Fala também de uma escola justa e cita uma frase extraordinária de François Dubet: "Uma escola justa, não pode acrescentar ao fracasso a humilhação".

Do quinto capítulo - No cerne do nosso ofício está a exigência, vou destacar algumas frases ou interrogações: "É preciso estar motivado para trabalhar ou trabalhar para ficar motivado"? "Fazer emergir a motivação no trabalho". "Iniciar um trabalho quando se apoia na motivação". "Não desprezar o que pode mobilizar os alunos... desde que se atenha firmemente à exigência da qualidade". "Dar um basta às hierarquias arbitrárias entre as disciplinas" e ainda "ser exigente consigo mesmo e com seus alunos".

Vou fazer o mesmo procedimento com relação ao sexto capítulo - Uma preocupação da qual não devemos nos envergonhar é a disciplina em sala de aula. "Hoje ninguém pode afirmar que não tem problema de disciplina". "O aluno reproduz na sala de aula a atitude que tem diante da televisão: ele fica mudando de canal". ""As mídias exaltam o infantil quando a escola tenta fazer a criança crescer". "Construir no cotidiano uma verdadeira disciplina escolar". "Preparar o material, estruturar o espaço e o tempo". "Sermos precisos e rigorosos nas instruções" e ainda, "organizar o trabalho, não a disciplina". Tem também uma frase memorável. É sobre a influência da televisão: "Jules Ferry queria livrar os espíritos da superstição e do obscurantismo por meio da escola... Mas nenhum filho de camponês bretão passava tanto tempo no catecismo, nos anos de 1905, quanto o filho de um burocrata passa diante da televisão, do rádio e da internet nos anos atuais". Pág. 74.

O gran finale, obviamente, está no sétimo e último capítulo - Qualquer que seja nosso estatuto, quaisquer que sejam nossas disciplinas de ensino somos todos "professores de escola". Nele são abordados os temas de natureza mais filosófica. A escola como instituição do encontro da alteridade; a escola como instituição da busca da verdade e a escola como instituição de uma sociedade democrática. Deixo mais algumas frases. "Todos os professores são 'instituidor' de humanidade" (aquele que institui a humanidade no homem), e a frase com a qual ele encerra o livro: "Você se tornará assim, ao mesmo tempo, um profissional da aprendizagem e um militante político - no sentido mais nobre do termo - engajado, no dia a dia, na construção de um mundo à altura do homem. Como professor de Escola, você será construtor de humanidade".

Tenho certeza dos meus limites na construção deste post. O livro é infinitamente superior à qualquer resenha que se possa dele fazer. E ainda sobra para uma provocação, para uma chamada à reflexão. Um poema de Rilke, que está na abertura do livro: "Você está olhando para fora, e é justamente o que não deveria fazer. - Ninguém pode aconselhá-lo nem ajudá-lo, ninguém. - Só existe um meio. Volte para dentro de si mesmo".