quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa.

"Tenho porém que confessar: quando ali em Aspremonte me vi diante daquela centena de descamisados, alguns com cara de fanáticos incuráveis, outros com jeito de revoltosos profissionais, fiquei feliz que as ordens coincidissem com aquilo que eu mesmo pensava: se não tivesse mandado atirar, aquela gente teria feito picadinho dos meus soldados e de mim, e o desastre não seria grande, mas acabaria provocando a intervenção francesa e a austríaca, uma confusão sem precedentes em que desabaria este Reino da Itália que se formou por milagre, não se sabe como" (Página 274). A fala é de Pallavicino, militar que participara da batalha.

O Gattopardo. Tomasi di Lampedusa. BestBolso. Tradução: Marina Colassanti.

Essa passagem do livro indica o seu tema principal, as lutas em torno da unificação italiana. Aspremonte foi uma das batalhas em que Garibaldi, vindo da Sicília, no rumo de Roma, venceu as tropas do reino italiano. Como este é o tema principal vamos a uma pequena contextualização em torno dessa unificação, iniciada no ano de 1860. Um tema bem complexo. Vejamos a situação anterior ao movimento.

O atual território italiano era fragmentado em diversas cidades estado (reinos, principados, repúblicas) onde predominava fortemente uma economia agrícola e não havia um sentimento de unidade nacional. A fragmentação resultava em fragilidade, que despertava a cobiça das potências já estabelecidas como a Áustria e a França. Os reis borbônios, que tanto aparecem no romance, é uma alusão aos reis Bourbons. Um desses estados tomará a dianteira: o reino do Piemonte-Sardenha. A capital do Piemonte é a cidade de Turim. Ali também está em marcha uma processo de industrialização. Alguns nomes ligados ao processo: o rei Vitório Emanuel II, Mazzini, o intelectual e ideólogo do movimento, e pelo grande chefe militar, Garibaldi, fundamental nas lutas na Sicília e em todo o sul. Garibaldi, o aclamado herói de dois mundos, é velho conhecido dos brasileiros por sua participação na Revolução Farroupilha (1835-1845) Em 1861 será proclamada a monarquia constitucional da Itália, sendo Vitorio Emanuel II o rei e Cavour o seu primeiro ministro. Creio que estes dados são suficientes para se ter a devida compreensão do romance.

Creio que podemos afirmar, sem erro, que as lutas em torno da unificação italiana são, ou constituem o que se pode chamar de - a revolução burguesa na Itália. A partir desse dado vamos aos grandes personagens, aos protagonistas de O Gattopardo. Em primeiríssimo plano aparece Dom Fabrício Salina, o nobre todo poderoso de Palermo, na Sicília. Pertence, portanto, à nobreza decadente. Do outro lado, pela burguesia emergente, está a família Calogero Sedara. Muita atenção aos personagens mais próximos: Tancredi, o sobrinho de Dom Fabrício e Angélica, a bela filha de Dom Calogero. Os personagens coadjuvantes serão os ligados à família Salina, mulher, filhos e em especial as três filhas, com destaque para Concetta, o padre Pirroni, um jesuíta e, não dá para esquecer de Bendicò, o onipresente cachorro da nobre família.

Creio que o enunciar dos personagens já dá uma pista fabulosa em torno da trama, mas vou dar mais uma. "Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro"? (Página 69). Assim proclama Dom Fabrício. E um pouco mais adiante ele pergunta: "E então, o que vai acontecer? Negociações pontuadas por tiroteios quase inócuos, e depois tudo continuará igual quando tudo terá mudado" (Página 73).

Como assim? Mudar para não mudar? Em outras palavras, depois da unificação consolidada, tudo continuará igual. Para isso, basta apenas usar muita astúcia. O casamento será o grande instrumento. Fabrício entrará com o noivo, Tancredi, enquanto que a bela Angélica representará a aliança com a burguesia. A permanência do estado de coisas estará garantida. Os casamentos, o seu fazer e desfazer, não foram sempre marcados pela utilidade? Coitada de Concetta!

O romance é de autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (Palermo, 1896 - Roma, 1957) e o seu livro aparece no ano de 1958. Veio acompanhado de muita polêmica. O livro está dividido em oito partes, com os temas bem marcados. Não é muito longo. A edição da BestBolso, que eu li, tem 348 páginas, com muitas notas de introdução e posfácio. Os acontecimentos dos capítulos são datados, o que facilita bastante.

"Nunc et in hora mortis nostrae. Amen. Assim começa a primeira parte (Maio-1860). Um capítulo maravilhoso sobre os costumes da Sicília, a fantástica Trinácria do tempo dos gregos. O final da oração da Ave Maria nos indica a força do catolicismo na ilha. Dos costumes deve-se ressaltar o patriarcalismo e o poder absoluto e incontestável de Dom Fabrício. Na segunda parte (Agosto-1860), a família vai passar férias na vila de Donnafugata, a resplandecente propriedade dos Salina. Na terceira parte (Outubro-1860) a questão italiana nos é apresentada. Os resultados do plebiscito, com o fabuloso resultado de 512 sim contra 0 não, embora sob protestos de que alguns votos no não, tenham sido transformados em sim. Também veremos Tancredi se decidindo por Angélica, em detrimento de Concetta, sob fortes protestos de sua mãe.

A quarta parte (Novembro-1860) se constitui num extraordinário capítulo em que é relatado o acordo nupcial, costurado por Dom Fabrício. Este também recebe a visita de um agente do Piemonte, junto com um convite para o senado, que ele gentilmente recusa, para "não enganar a si próprio". Ao menos é isso que ele afirma. A quinta parte (Fevereiro-1861) é dedicada ao padre Pirroni. Na sexta parte (Novembro-1862) é mostrado um baile, em que brilham Tancredi e Angélica, enquanto Fabrício e o coronel Pallavicini confabulam longamente. E um parágrafo notável sobre os resultados da unificação, nas palavras do coronel: "O Senhor não esteve no continente depois da fundação do reino? Sorte sua. Não é um belo espetáculo. Nunca estivemos tão divididos como desde que estamos unidos. Turim não quer deixar de ser capital, Milão acha nossa administração inferior à austríaca, Florença teme que lhe levem as obras de arte, Nápoles chora pelas indústrias que perde, e aqui, na Sicília, está em gestação algum grande, irracional desastre..." (Página 276).

A sétima parte (Julho-1883) é dedicada ao fim, à morte de Fabrício, sem antes passar por suas mais ricas reminiscências. Morte com assistência de padre, confissão, comunhão e encomendação. A oitava e última parte (Maio- 1910) também é fantástica. É dedicada às três filhas Salina, nos seus setenta anos. Referência especial a Concetta e as mágoas de uma vida inteira. Psicanálise pura. Fanatismos religiosos e correções por parte das autoridades eclesiásticas. Apenas cinco das 74 relíquias que acumularam foram reconhecidas.

O Gattopardo é uma referência a Dom Fabrício e ele está no brasão da família Tomasi. Mas há no livro uma passagem notável referente ao Gattopardo: "...e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos e os leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra" (Página 224-5).

Quando se conclui o processo da unificação italiana? Nos conta a história, que isso ocorreu com a conquista de Roma, em 1870. Mas eu diria que ela ainda está em curso. Em 2012 viajei pela Itália por quase um mês. Uma semana foi dedicada a fabulosa Sicília. Num dos trechos, tivemos um guia basco. Um primor no seu ácido humor. Nos contava ele que a Itália ainda estava longe de ser um país unificado. O sul brigava com o norte e o norte brigava com o sul. E, tanto o norte quanto o sul, brigavam com Roma. O Gattopardo é um livro imperdível. Absolutamente ímpar. Mudar para não mudar.


terça-feira, 29 de julho de 2025

Suave é a noite. F. Scott Fitzgerald.

O meu contato com a obra de Francis Scott Fitzgerald, se deu por uma indicação de livros de Luís Fernando Veríssimo, provavelmente feita numa das feiras de livro da cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. Na ocasião, lhe foi solicitada a lista de seus dez livros preferidos. Entre eles estavam os dois de Scott: O grande Gatsby e Suave é a noite. O comentário de um leitor no post do blog de 2012sobre os livros indicados, me fez retomar a leitura dos dois. Desta vez o fiz pela ordem de sua escrita. Primeiro O grande Gatsby, escrito em 1925 e Suave é a noite, em 1934.

Suave é a noite. Scott Fitzgerald. BestBolso. 2008. Tradução: Lígia Junqueira.

O cenário do primeiro romance é o dos arredores luxuosos de Nova York, enquanto que o do segundo é o da Riviera Francesa. Em comum, os dois tem como protagonistas pessoas riquíssimas que vivem em ambientes de muito luxo e de poucos momentos felizes, em meio às suas graves crises existenciais. Em comum, os dois tem também a década de 1920, década em que os Estados Unidos decolam ruma a maior potência econômica e mergulham em profundas contradições morais, em meio ao puritanismo da Lei Seca (1920- 1933) e a rápida ascensão econômica proporcionada por meios ilegais de atividades comerciais duvidosas. É também a década da geração perdida, a era do jazz, em que muitos escritores norte americanos foram viver em Paris, entre eles, Scott.

Suave é a noite tem uma outra característica peculiar ao seu tempo. Os tempos da psicanálise. Dick Diver é um psiquiatra que, em clínicas suíças, envereda por esses campos. Dick e Nicole serão os protagonistas do romance. Eles são, respectivamente, o médico e a paciente. Outra característica particular deste romance é o seu caráter autobiográfico. Vejamos o fato na descrição de Roberto Muggiati, no prefácio:

"Se o perfil social foi inspirado em Gerald e Sara Murphy (inspiradores do cenário, na Riviera), o perfil psicológico do casal protagonista de Suave é a noite acabaria ganhando os contornos de Scott e Zelda neste que é o mais autobiográfico dos textos de Fitzgerald. Scott e Zelda casaram-se no Sábado de Aleluia de 1920, na catedral de São Patrício, em Nova York. Ele tinha 24 anos, ela 20. Um ano depois nasceu a única filha, Scottie. Jovens na primeira década transgressora do século XX, gostavam de passear de táxi (sentados no capô, é claro), de dançar e de beber. Eram os anos turbulentos que Scott batizou de 'A Era do jazz': a América vivia sob a Lei Seca, proliferavam os bares clandestinos, a bebida falsificada; a trilha sonora da década era o jazz e as metralhadoras dos gângsteres. [...] Espírito inquieto e crítico, Zelda antecipou de certa forma o feminismo e a guerra dos sexos. [...] Ela e Scott defendiam um casamento mais aberto e menos hipócrita do que os da geração de seus pais. Em 1924, na praia de Garoupe - enquanto Scott passava o dia inteiro escrevendo O grande Gatsby -, Zelda conheceu um jovem aviador francês. [...] O caso não durou muito, mas levou Zelda a uma tentativa de suicídio e criou uma chaga viva no casal". E já que enveredamos nos dados biográficos, vamos ao seu final:

"Seria o último romance escrito por Fitzgerald (Suave é a noite) - ele morreu de um ataque do coração em 1940, aos 44 anos, deixando inacabado O último magnata. Zelda continuaria a perambular pelos asilos - em meio a lampejos de lucidez - até morrer em 1948 no incêndio do hospital Asheville. Tinha 47 anos e foi identificada por um chinelo debaixo do corpo carbonizado".

Mas vamos ao romance, identificando os principais personagens. Dick e Nicole formam o casal protagonista (médico e paciente). Rosemary Hoyt e Tommy Barban rodearão o casal. Rosemary é bela e jovem, do mundo cinema. Já Tommy seria o "jovem aviador francês"? Os personagens periféricos seriam Abe North, amigo de Dick, Baby Warren, a irmã e tutora de Nicole e rica herdeira de uma imensurável fortuna. e a senhora Speers, mãe de Rosemary. Estão aí os personagens para a envolvente trama que se passa nas clínicas, nos bares e nas calorosas recepções oferecidas na Riviera Francesa. Muito luxo, paixões ardentes e o penetrar nos mais recônditos refúgios de seres humanos envolvidos em seus mistérios mais profundos. O livro é dividido em três partes, que ocupam 445 páginas 

Vejamos a contracapa: "Ambientado na Riviera Francesa em fins da década de 1920, este livro narra a história de Dick Diver, brilhante psiquiatra que se casa com a paciente Nicole Warren. A vida do casal não é mais do que uma farsa: dominados pelo tédio, incapazes de dialogar, entre interessantes coquetéis, recepções e dinheiro, vivem numa atmosfera de falsa euforia. Fitzgerald foi o autor que melhor captou a aura da riqueza e seu efeito sobre a alma humana, mostrando a rotina dos privilegiados numa época em que a América decolava num binômio de prosperidade e hipocrisia. Obra marcante da Geração Perdida, Suave é a noite, em tom marcadamente autobiográfico, revela personagens com uma excepcional carga de realismo".

Vamos ainda ao último parágrafo do prefácio de Roberto Muggiati, sobre a permanência da obra. "Suave é a noite permanece como testemunho da arte de um escritor que teve a coragem de enfrentar a selva das relações afetivas e de estudar a fundo o amor numa época em que a sensação imperou sobre o sentimento. Melhor do que qualquer outro romancista do século XX, Scott Fitzgerald soube navegar  por águas turvas no seu empenho de traçar a cartografia do desejo humano".

Deixo também a resenha de O grande Gatsby. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/07/o-grande-gatsby-f-scott-fitzgerald.html



 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O grande Gatsby. F. Scott Fitzgerald.

Ainda em 2012, ano em que eu comecei este blog, publiquei os dez livros preferidos de Luís Fernando Veríssimo. Ele manifestou esta sua preferência provavelmente numa das Feiras Literárias de Paraty. Para não vou deixar vocês curiosos, eu apresento a lista:

O grande Gatsby. Scott Fitzgerald. Penguin & Companhia. 2011. Tradução: Vanessa Barbara.


Tarzan dos macacos. Edgar Rice Burroughs.

O grande Gatsby. Francis Scott Fitzgerald.

O tempo e o vento. Érico Veríssimo.

Lolita. Vladimir Nobokov.

USA. John dos Passos.

O encontro marcado. Fernando Sabino.

Ulisses. James Joyce.

Put out More Flags. Evelyn Waugh.

Suave é a noite. Francis Scott Fitzgerald.

Fim de caso. Graham Greene.

Apresento esta lista porque ela despertou a minha curiosidade e me fez procurar estes livros. Alguns eu nem mesmo encontrei. Outros eu li. Entre eles O grande Gatsby. Agora, lendo alguns livros da literatura norte americana, me decidi a fazer a sua releitura.

Um dos últimos livros dessa literatura foi Babbitt, de Sinclair Lewis, publicado em 1922. Embora o livro de Scott Fitzgerald aparecesse apenas em 1925, ele foi escrito no início da década. e, de uma forma ou de outra, existe uma semelhança entre eles, ao menos quanto a abordagem do tema. Foi o tempo em que imperou a Lei Seca (1920-1933), um período de muitas transgressões e um tempo em que se fizeram grandes fortunas. É óbvio que isso não passaria despercebido pelos escritores desse período. Literatura rica e farta.

O livro que eu li pertence a coleção clássicos, da Penguin & Companhia, 2011. Nele tem uma longa introdução em  que o crítico literário inglês Antony Tanner, nos apresenta a obra. Dela eu tomo o primeiro parágrafo e um pedaço do segundo, como uma introdução ao tema:

"De início, não era para se chamar O grande Gatsby. Numa carta a Maxwell Perkins, Fitzgerald escreveu: 'Decidi que vou insistir com o título que dei ao livro, Trimalchio em West Egg'. Trimálquio é o novo-rico vulgar e de imensa fortuna do Satyricon, de Petrônio; um mestre das alegrias gastronômicas e sexuais que oferece um banquete de luxo inimaginável, do qual indiscutivelmente participa - ao contrário de Gatsby, que é um espectador sóbrio e isolado das próprias festas. É um verdadeiro glutão, ao passo que Gatsby mantém uma curiosa distância de tudo o que possui e exibe, tanto que às vezes recua do próprio discurso e o submete à avaliação, como se fossem palavras alheias, e tanto que ostenta camisas que nunca usou, livros que nunca leu e convites para nadar na piscina que nunca utilizou.

Se Fitzgerald concebia Gatsby como uma espécie de Trimálquio americano urdido pela licenciosidade desenfreada dos anos 1920, por certo o sujeitara a uma notável metamorfose. (Gatsby é chamado de Trimálquio apenas uma vez no romance.) Mas há alguns claros traços genealógicos do remoto ancestral de Gatsby". E uma pergunta incômoda paira no ar . O sonho americano é uma aspiração ou uma privação? Gatsby alimenta uma enorme paixão por Daisy, mas quando eles se encontram permanecem desajeitados e com os "olhos tensos e infelizes".

Mas vamos aos personagens desses afortunados. Ou seriam desafortunados? Nick Carraway é o narrador. Jay Gatsby, por óbvio, é o personagem central. Gatsby entra em cena pela primeira vez apenas no terceiro capítulo, quando Nick veio morar no estreito de Long Island, um paraíso terrestre dos novos ricos, nas proximidades de Nova York. Nick será vizinho de Gatsby, sempre observando e, mais tarde, participando de suas enormes festas. Nas proximidades, mas do outro lado da casa de Gatsby, morava um casal. Daisy e Tom Buchanan, amigos de Nick e de Jordan Baker, uma atleta, amiga de todos. Existem ainda outros dois personagens centrais na trama. Myrtle Wilson, esposa de um pacato e apaixonado marido, dono de uma oficina mecânica, mas amante de Tom e Meyer Wolsheim, um homem em permanente "estado de negócios" e mentor de Gatsby. Bem, eu paro por aí, mas não sem antes dizer duas coisas: Gatsby sempre fora apaixonada por Daisy e tudo fez para dela se aproximar. Essa era a razão das grandes festas, uma tentativa de aproximação. E a segunda, que tudo acaba numa grande tragédia. O romance busca desvendar quem era efetivamente Jay Gatsby e qual teria sido a origem de sua enorme fortuna. 

Ao final Nick fala do casal Tom e Daisy: "Tudo decorrera de forma descuidada e confusa. Eles eram todos descuidados e confusos. Eram descuidados, Tom e Daisy - esmagavam coisas e criaturas e depois se protegiam por trás da riqueza ou de sua vasta falta de consideração, ou o que quer que os mantivesse juntos, e deixavam para os outros limparem a bagunça eles haviam feito" (página 239). Também já eram os tempos da psicanálise. Deixo ainda as anotações da contracapa:

"Seus pais eram fazendeiros preguiçosos e fracassados - sua imaginação nunca os reconhecera como pais. A verdade era que Jay Gatsby de West Egg, Long Island, havia saído da própria concepção platônica de si mesmo. Ele era um filho de Deus".

"Se Scott Fitzgerald (1896-1940) foi o escritor da Era do Jazz, nenhum de seus livros foi capaz de captar o espírito da época como O grande Gatsby. Entre a música e a vida extravagante da década de 1920, a saga de Jay Gatsby reproduz uma ideia comum a toda a sua obra: o sonho americano, mais do que uma realização, pode ser frustrante.

Fitzgerald escreveu este romance durante sua estadia em Paris, para onde, na mesma época, se mudaram Ernest Hemingway e Gertrud Stein, a 'geração perdida' da literatura americana. Egresso da classe média alta, Fitzgerald usou a própria experiência para fazer um alerta sobre o materialismo. Ainda que o narrador Nick Carraway não seja um alter ego do autor, ambos compartilham conclusões amargas a respeito da falsidade e do dinheiro. O grande Gatsby é uma obra que valoriza os ideais e a força do desencanto por trás de uma aparente narrativa".

Deixo aqui o post de Babbitt, também um termo para designar o novo-rico.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/05/babbitt-harry-sinclair-lewis-1922-nobel.html

E é impossível compreender os Estados Unidos sem o livro de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo.

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/01/a-etica-protestante-e-o-espirito-do.html



terça-feira, 15 de julho de 2025

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski.

Depois de uma série de leituras que envolveram história, a busca por origens, me lembrei de um livro cuja leitura me impressionou muito quando o li. Isso foi lá no ano de 2007. Resolvi retomá-lo. Trata-se de Minhas viagens com Heródoto - Entre a história e o jornalismo. O autor é o polonês Ryszard Kapuscinski, um jornalista a recordar as suas primeiras reportagens, quando fora destacado pela sua agência, a fazer reportagens mundo afora, para muito além de sua pátria. Ele próprio conta que sempre fora movido pelo desejo de conhecer o outro lado, o lado de fora, o lado diferente. Uma curiosidade infinita.

Minhas viagens com Heródoto. Ryszard Kapuscinski. Companhia das Letras. 2006. Tradução: Tomasz Barcinski.

Na contracapa temos a explicação de sua situação, o contexto do surgimento de sua obra: "Criado numa Polônia ocupada primeiro pelos nazistas e depois pelos soviéticos, Ryszard Kapuscinski cresceu com a obsessão de conhecer o que havia 'do outro lado da fronteira'. Essa motivação, que o transformaria num dos mais importantes jornalistas internacionais de nosso tempo, foi confirmada e iluminada pela leitura do clássico História, escrito no século V antes de Cristo pelo grego Heródoto de Halincarnasso".

Ryszard ou Richard frequentava os bancos escolares da universidade quando tem os seus primeiros contatos com os gregos. Ele mesmo nos conta, logo no primeiro capítulo de seu livro: "A guerra terminara cinco anos antes (Devia ser então o ano de 1950), a cidade jazia em ruínas, as bibliotecas haviam sido consumidas pelo fogo. Diante disso, não tínhamos compêndios, faltavam-nos livros". Richard ainda nos informa que História começou a circular na Polônia apenas no ano de 1955, dois anos após a morte de Stálin. Foi também nesse período que Richard começou a trabalhar, num jornal chamado "Estandarte dos Jovens'. Seus primeiros trabalhos chamaram a atenção de sua diretora, da qual, num certo dia, recebeu a notícia para o seu primeiro grande trabalho: "Vamos enviá-lo para a Índia".

Richard nos informa a sequência daquela conversa: "Ao término daquela conversa, durante a qual fui informado de que partiria para o mundo, a senhora Tarlowska foi até um armário, tirou de lá um livro e, entregando-o a mim, disse: 'Um presente meu para a sua viagem'. Era um livro grosso, cuja capa dura estava coberta por um pano amarelado. Nela, em letras douradas, pude ler o nome do autor e o título: Heródoto. História". Assim começa a missão do grande repórter internacional que ele viria a ser. Parte para a Índia, para a China, para o Congo e outros países africanos convulsionados após a conquista de suas independências, para o Irã... Haja mundo diferente e, quantas diferenças. Ao longo da descrição dessas viagens, ele sempre as intercala com a leitura de Heródoto. Com o livro de Richard, você praticamente tem dois livros. O livro História de Heródoto e Minhas viagens com Heródoto, de Kapuscinski.

O livro tem 28 capítulos, tendo cada um em torno de dez páginas. Sempre, numa alternância entre os locais visitados e as histórias dos povos visitados por Heródoto e a sua forma de contar o diferente. Verdadeiras aulas, tanto de história, quanto de jornalismo, especialmente de reportagem. História é considerado como o primeiro grande livro reportagem, detalhando como Heródoto as fazia. Riquíssimo. São, ao todo, 305 páginas de um magistral aprendizado. Na contracapa temos a continuação da apresentação do livro:

"Em Minhas viagens com Heródoto, Kapuscinski relata de modo caloroso e bem humorado seus primeiros tempos de repórter, quando recém saído da universidade, foi enviado a países remotos e indecifráveis como a Índia, a China e o Congo para contar a seus compatriotas o que se passava por lá. Felizmente, o jovem aprendiz de jornalista levava na bagagem o livro de Heródoto, que ele considera 'a primeira grande reportagem da literatura mundial'. Ao ler sobre a expansão do império persa ou a batalha de Salamina, mais do que técnicas de coleta e organização de informações, Kapuscinski aprendeu a lição essencial de que conhecer e buscar compreender outras culturas é um exercício de tolerância e autocrítica".

Sublinhei muitas passagens. Entre elas esta, já ao final da obra: "Heródoto viaja para poder responder a uma pergunta formulada na infância: de onde vêm os navios que vemos no horizonte? Eles surgem de onde? Qual sua procedência? Quer dizer que o que vemos com nossos olhos ainda não é a fronteira do mundo? Existem outros mundos? Quais? Quando crescer, vai querer conhecê-los. Mas é melhor que não cresça por completo, que permaneça algo de criança em sua alma, pois só elas fazem perguntas importantes e querem, realmente, aprender.

E, com entusiasmo e encantamento infantis, Heródoto se lança à descoberta de seus mundos. Eis sua maior descoberta: eles são muitos, diferentes entre si, mas importantes cada um à sua maneira.

É preciso conhecê-los porque esses mundos e essas culturas são espelhos nos quais nos miramos - nós e a nossa cultura - e nos quais ela se reflete. Graças a eles, entendemos melhor a nós mesmos, já que não podemos definir a nossa singularidade se não a confrontarmos com outras.

Tendo feito essa descoberta - a descoberta de que as outras culturas são espelhos nos quais podemos nos olhar para compreender melhor quem somos -, Heródoto, a cada manhã, infatigavelmente, de novo e mais uma vez, parte em viagem" (Páginas 292- 3).Que lição maravilhosa. Compreensão de mundo. E também uma concepção de educação: trabalhar a curiosidade da criança. E, que vontade de viajar...

E para terminar, uma historinha. É sobre os trausos e sobre um costume seu: "[...] são em tudo semelhantes (os seus costumes) aos dos outros Trácios, exceto com relação aos recém nascidos e aos mortos. Quando nasce, entre eles uma criança, os parentes, sentados em torno dela, enumeram os males a que está sujeita a natureza humana e lamentam, com gemidos, a sorte ingrata que fatalmente a acompanhará enquanto viver; mas, quando morre um deles, enterram-no alegremente, regozijando-se com a felicidade desse que acaba de libertar-se de tantos males" (páginas 172-3).

quarta-feira, 9 de julho de 2025

História universal da destruição dos livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Fernando Báez.

Uma série de leituras em sequência. Uma história da leitura, de Alberto Manguel, O infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, livro maravilhoso de Irene Vallejo, e agora, História universal da destruição dos livros - Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, do venezuelano Fernando Báez. Essas leituras proporcionam uma ampla visão sobre o tema dos livros, especialmente sobre a sua importância e muito mais ainda, sobre o verdadeiro pavor que eles provocam em determinadas mentes. Sobre este pavor, História universal da destruição dos livros é absolutamente insubstituível.

História universal da destruição dos livros. Fernando Báez. Ediouro. 2006. Tradução: Léo Schlafman.

Não houve um único momento ao longo da história em que não se tenha buscado a sua não chegada aos leitores, seja pela censura ou pela sua radical destruição. O fogo foi sempre o principal meio utilizado. Por outro lado, a censura e a destruição, também sempre provocaram a curiosidade e o aumento do desejo das chamadas leituras proibidas. Deixo inicialmente as duas frases em epígrafe do livro. Pelo seu poder de síntese, eu aprecio muito epígrafes bem postas. Vejamos:

"Onde queimam livros, acabam queimando homens". Heinrich Heine, Almansor, 1821.

"...cada livro queimado ilumina o mundo...". Ralf Waldo Emerson, Essays, First series, 1841. A realidade contida nessas epígrafes são facilmente constatadas ao longo do livro. Vejamos a  sua apresentação, contida na contracapa:

"Desde que surgiram as primeiras formas de livro na Suméria, o homem empreendeu uma verdadeira saga que reduziria em cinzas um número incalculável de obras. Medo, ódio, soberba, intolerância e sede de poder são o que sempre motivaram os biblioclastas, cuja intenção na verdade nunca foi simplesmente destruir o objeto em si, mas, o que este representava: o vínculo com a memória, o patrimônio de ideias de toda uma civilização.

História universal da destruição dos livros é o resultado de um estudo de 12 anos, em que Báez nos oferece uma visão aterradora da devastação sistemática, que se inicia no Mundo Antigo, passando pela Inquisição e tempo de conquistas, até a catástrofe mais recente: a destruição de um milhão de livros no Iraque como consequência de uma guerra absurda. Para o autor, trata-se de mais uma manifestação da inexorável necessidade de impor uma cultura sobre a outra.

Mais do que um levantamento minucioso dos prejuízos, esta obra denuncia os crimes cuja maior vítima é a própria humanidade, pois 'onde se queimam livros, acabam queimando homens', assim disse o poeta alemão Heinrich Heine". Na mesma contracapa se lê um elogio mais do que grandioso; pela sua origem; de Noam Chomsky: "Impressionante. O maior livro escrito sobre este tema". Báez nos conta sobre a origem, sobre os motivos que o levaram a esta escrita:

"E assim começou esta pesquisa, por um erro, como todas as coisas importantes. Munido com esse livro em ruínas como único amuleto, descobri que, além de centenas de milhares de mortos, a Guerra Civil Espanhola provocou um desastre cultural oculto durante décadas". Ele dá detalhes. Ele se encontrava num sebo em Madri, em busca de um livro de Unamuno. Não o encontrou, mas em compensação, encontrou um livro em frangalhos. Ele narra: "A duras penas, reconheci entre os fragmentos uma antologia de poemas de Federico García Lorca. Li, fascinado, um dos textos e, enquanto segurava as páginas, pedaços inteiros caíram no chão. O livro não tinha índice e faltavam as páginas finais, arrancadas com pouco cuidado. Havia uma nota oficial de algum censor: 'Livro proibido. Astúrias, El Infierno.'. Intrigado, corri para perguntar o preço e o implacável dono me pediu que o levasse, visivelmente incomodado. Diante de minha perturbação, o homem disse: 'Leve-o, não sei quem pôde trazer até aqui o livro desse comunista'". Eis a provocação da qual saiu este livro e um dos motivos - sempre entre os mais presentes - na obra da destruição.

O livro é relativamente longo e é também uma viagem na geografia, passando pelos mais diversos lugares do mundo, uma vez que o desejo da destruição dos livros é uma fenômeno universal. Ele tem 438 páginas, divididas em Introdução, três partes e notas com a indicação de suas preciosas fontes, além da bibliografia. As partes tem os seguintes títulos: Primeira parte: O mundo antigo; Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX; Terceira parte: O século XX e o início do século XXI.

Convido a uma viagem pelos capítulos das diferentes partes:

Primeira parte: O mundo antigo, com dez capítulos: 1. Oriente médio; 2. Egito; 3. Grécia; 4. Apogeu e fim da biblioteca de Alexandria; 5. Outras antigas bibliotecas destruídas; 6. Israel; 7. China; 8. Roma; 9. As origens radicais do cristianismo; 10. O esquecimento e a fragilidade dos livros.

Segunda parte: Da era de Bizâncio ao século XIX, com 14 capítulos: 1. Os livros perdidos de Constantinopla; 2. Entre monges e bárbaros; 3. O mundo árabe; 4. Um confuso fervor medieval; 5. Espanha muçulmana e outras histórias; 6. Os códices queimados no México; 7. Em pleno Renascimento; 8. A Inquisição; 9. A condenação dos astrólogos. 10. A censura inglesa; 11. Entre incêndios, guerras e erros; 12. De revoluções e provocações; 13. Em busca de pureza; 14. Alguns estudos sobre a destruição de livros.

Terceira parte: O século XX e o início do século XXI, com 11 capítulos: 1. Os livros destruídos durante a Guerra Civil Espanhola; 2. O bibliocausto nazista; 3. As bibliotecas bombardeadas na Segunda Guerra Mundial; 4. Censura e autocensura literárias modernas; 5. Um século de desastres; 6. Os regimes de terror; 7. O ódio étnico; 8. Religião, ideologia, sexo; 9. Entre inimigos naturais e legais; 10. O terrorismo e a guerra eletrônica; 11. Os livros destruídos no Iraque.

Por óbvio, também os clássicos da literatura universal são citados, assim como as maiores e mais famosas bibliotecas. Também os grandes inimigos dos livros são nominados. Da segunda parte o destaque vai para a Inquisição, enquanto que na terceira, o destaque vai para o bibliocausto (um paralelo com o holocausto) nazista e a Guerra Civil Espanhola. Do livro também pincei a minha frase preferida. É de Pascal. Ela data de 1657. Ocorreu em resposta à queima de suas Cartas provinciais, onde ele denunciou desvios morais de jesuítas. Pascal assim se expressou: "Os homens nunca agem mal de maneira tão perfeita e aplaudida como quando o fazem movidos pela convicção religiosa" (Página 202).

Vejamos ainda as orelhas do livro: "Incêndios, enchentes, terremotos, guerras e regimes autoritários causaram a morte de milhões de pessoas . Mas nesta notável obra temos a chance de conhecer uma história nunca antes contada de forma tão minuciosa: a da destruição dos livros. O autor venezuelano Fernando Báez nos leva de volta ao Mundo Antigo para acompanhar, desde o início, a trajetória dessa prática que teve entre seus adeptos não só homens ignorantes ou perversos, mas também grandes filósofos, eruditos e escritores, como Descartes, Platão e Heidegger. Alguns porque acreditavam que, eliminando os vestígios do pensamento de uma determinada época, estariam promovendo a superação do conhecimento humano. Outros, mais modestos, lançavam ao fogo suas obras simplesmente por vergonha do que haviam escrito. No entanto, os principais destruidores de livros sempre tiveram como maior motivação o desejo de aniquilar o pensamento livre. Os conquistadores atribuíam à queima da biblioteca do inimigo a consagração de sua vitória.

E assim o autor nos conduz através dos tempos e pelos mais diversos continentes para refazer o percurso dessa pesquisa dolorosa, mas que ironicamente ameniza o nosso sofrimento. Afinal, ao remontar à perda de incontáveis obras, ideias, conhecimentos e memórias, é possível reconstruir e desvendar muitas épocas, mentiras, lendas e mistérios que envolveram essa história de horror que parece não ter chegado ao fim.

Em 2003, a guerra levou à extinção mais de um milhão de livros e dez milhões de documentos da Biblioteca Nacional do Iraque, berço da civilização ocidental. Inertes, assistimos em tempo real a um verdadeiro genocídio cultural, cujas consequências para as próximas gerações serão irreparáveis". 

Deixo também os posts dos livros referenciados no início: 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/uma-historia-da-leitura-alberto-manguel.html

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2025/06/leituras-proibidas-uma-historia-da.html 


quinta-feira, 3 de julho de 2025

O Infinito em um junco. A invenção dos livros no mundo antigo. Irene Vallejo.

Este livro eu ganhei de presente. Presente de uma pessoa muito querida e plena de significados em minha vida. Trata-se de O Infinito em um junco - A invenção dos livros no mundo antigo, da romancista e ensaísta espanhola Irene Vallejo. Sempre considerei muito o fato de os livros serem objetos para presentear. Acima de tudo eles referenciam a pessoa que as presenteia. Esta abertura do post é a minha forma de agradecer, publicamente, o presente recebido. Também, não o nego, um livro também referencia e reverencia a pessoa que o recebe. Vamos ao livro.

O Infinito em um junco. Irene Vallejo. Intrínseca. 2022. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht.

O livro é um maravilhoso tributo à escrita, aos livros, à sua preservação, bem como à leitura e aos leitores. Somente uma pessoa muito apaixonada pela causa conseguiria escrevê-lo, e, escrevê-lo tão bem. É uma agradável viagem no tempo, um penetrar no mundo antigo, no seu tempo lento em avanços, como que, para absorver todos os seus profundos significados. E que belo título: O infinito em um junco. Tudo remete às origens.

O livro é longo. Ele contem 493 páginas e está dividido em duas partes: I. A Grécia imagina o futuro; 2. Os caminhos de Roma. A parte sobre a Grécia tem vários subtítulos e 87 tópicos, enquanto a que versa sobre Roma também tem seus subtítulos e 48 tópicos. É uma questão de organização. A organização e estruturação dos livros, ao longo da história, é também um dos temas do livro. Tem também Prólogo, epílogo, notas e agradecimentos. O epílogo tem por título: Os esquecidos, as anônimas. Tem também várias frases em epígrafe, das quais transcrevo as duas últimas:

"Ler é sempre uma translação, uma viagem, um ir embora para se encontrar. Ler, mesmo sendo normalmente um ato sedentário, leva-nos de volta à nossa condição de nômades". Antonio Basanta, Leer conta la nada. E,

"O livro é, acima de tudo, um recipiente onde o tempo repousa. Uma prodigiosa armadilha com a qual a inteligência e a sensibilidade humanas venceram a condição efêmera, fluida, que levava a experiência do viver para o vazio do esquecimento". Emilio Lledó, Los libros y la libertad.

O livro também se constitui numa belíssima aula de história e de literatura clássica. A primeira parte, a que versa sobre a Grécia é dedicada à cidade de Alexandria, à sua Biblioteca, ao seu Museu e ao seu Farol. O grande personagem é Alexandre, o Grande. Alexandre nunca, em sua breve vida de viagens e combates se desfez da Ilíada, livro no qual buscava inspiração. Fala de Ptolomeu e dos Ptolomeus, os artífices da biblioteca, da grandeza do Egito, do papiro e dos pergaminhos. E, como não poderia deixar de ser, da fusão cultural do helenismo, da Ilíada, da Odisseia, do teatro, das tragédias e de toda a literatura grega e de seus significados.

A parte dedicada a Roma, fala da má reputação inicial da cidade, nascida de um fratricídio e de, apesar de toda a grandeza de seu império, terem sido dominados pela cultura dos gregos. Fala da Magna Grécia e dos horrores da escravidão que rondava como possibilidade e ameaça para todos. Fala da separação de classes e dos privilégios dos dominantes, entre eles, a escrita e a leitura. Fala dos primeiros livreiros e de seu ofício de copistas. Fala de Herculano e de Pompeia, cidades de prazeres, banhos e salas de leitura  e também dos fétidos pregadores contra os prazeres e os perigos dos banhos. Fala da perseguição aos livros e de suas queimas por temor de seus efeitos e de toda uma Idade Média, tempo de carência de livros. Apesar disso, não se consegue impedir o surgimento do Renascimento. 

Dessa segunda parte destaco um dos parágrafos finais, com destaque para beleza da escrita e do posicionamento da autora: "Devemos aos livros a sobrevivência das melhores ideias projetadas pela espécie humana. Sem eles, provavelmente teríamos nos esquecido daquele punhado de gregos temerários que decidiram entregar o poder ao povo e chamaram esse ousado experimento de 'democracia'; dos médicos hipocráticos, que criaram o primeiro código deontológico da história, no qual se comprometiam a cuidar também dos pobres e dos escravos: 'Leva em consideração os meios do seu paciente. Em determinadas ocasiões deves prestar teus serviços até gratuitamente; e, se tiveres oportunidade de atender um estrangeiro que se encontra em dificuldades econômicas, dá-lhe plena assistência'; de Aristóteles, que fundou uma das primeiras universidades e dizia aos alunos que a diferença entre o sábio e o ignorante é a mesma que entre o vivo e o morto; de Eratóstenes, que usou o poder do raciocínio para calcular a circunferência da Terra, com uma pequena margem de erro de oitenta quilômetros, utilizando apenas um pedaço de pau e um camelo; ou os códigos legais daqueles romanos doidos que um dia concederam a cidadania a todos os habitantes do seu enorme império; ou daquele grego cristão, Paulo de Tarso, que pronunciou o que possivelmente foi o primeiro discurso igualitário quando disse: 'Não há judeu nem grego, não há escravo nem homem livre, não há homem, nem há mulher'. Conhecer todos esses precedentes nos inspirou ideias tão extravagantes no reino animal, quanto direitos humanos, democracia, confiança na ciência, saúde universal, educação obrigatória, direito a um julgamento justo e preocupação social pelos mais fracos" (Páginas 434-435). E por aí vai. E, no mesmo tom, encerra o livro:

"Os livros legitimaram, é verdade, fatos terríveis, mas também sustentaram os melhores relatos, símbolos, saberes e invenções que a humanidade construiu no passado. Na Ilíada assistimos ao lancinante encontro entre um velho e o assassino do seu filho; nos versos de Safo descobrimos que o desejo é uma forma de rebeldia; em História, de Heródoto, aprendemos a buscar a versão do outro; em Antígona vislumbramos a existência da lei internacional; nas Troianas nos deparamos com a barbárie própria; numa epístola de Horácio encontramos a máxima iluminista 'atreva-se a saber'; na Arte de amar, de Ovídio, fizemos um curso intensivo de prazer; nos livros de Tácito compreendemos os mecanismos da ditadura; e na voz de Sêneca ouvimos o primeiro grito pacifista. Os livros nos legaram algumas ideias dos nossos antepassados que realmente não envelheceram de todo mal: a igualdade entre os seres humanos, a possibilidade de escolher os nossos dirigentes, a intuição de que talvez seja melhor para as crianças ficarem na escola do que trabalhando, a vontade de usar - e gastar - o erário para cuidar dos doentes, dos velhos e dos desvalidos. Sem os livros, as melhores coisas do nosso mundo teriam se dissipado no esquecimento" (Página 437).

Deixo ainda a apresentação da orelha da capa: "De fumaça, de pedra, de argila, de seda, de pele, de árvores, de plástico e de luz. O Infinito em um junco nos conduz pela vida do livro, em seus variados formatos, e pela vida daqueles que o preservaram há quase cinco milênios".

"Este é um livro sobre a evolução dos livros. Um passeio pela trajetória desse artefato fascinante que inventamos para que as palavras pudessem viajar no espaço e no tempo. É a história de sua fabricação e de todos os modelos e formatos ao longo da jornada humana.

É também um livro de viagem. Uma rota com paradas nos campos de batalha de Alexandre e na Vila dos Papiros sepultada pelas lavas do Vesúvio, nos palácios de Cleópatra e na cena do crime de Hipátia, nas primeiras livrarias e nas oficinas de cópia manuscrita, nas fogueiras em que eram queimados códices proibidos, no gulag, na Biblioteca de Sarajevo e no labirinto subterrâneo de Oxford no ano 2000. Um fio que une os clássicos ao vertiginoso mundo contemporâneo, conectando-os aos debates atuais: Aristófanes e os processos judiciais contra os humoristas, Safo e a voz literária das mulheres, Tito Lívio e o fenômeno dos fãs, Sêneca e a pós-verdade.

Mas, acima de tudo, esta é uma fabulosa aventura coletiva protagonizada por milhares de pessoas que, ao longo do tempo, tornaram o livro possível e o protegeram: contadores de histórias, escribas, iluminadores, tradutores, vendedores ambulantes, professores, sábios, espiões, rebeldes, freiras, aventureiros; leitores de todos os cantos, nas capitais onde se concentra o poder e nas regiões mais remotas, onde o conhecimento se refugia em tempos de caos. Pessoas comuns cujos nomes, muitas vezes, são apagados da história; gente que salva livros, os verdadeiros protagonistas desta história".

Enfim, um mergulho nas origens e mitos fundadores da cultura ocidental, nos fundamentos da cultura clássica, greco-romana, da qual Irene Vallejo é notória autoridade. E, se você, ao querer presentear alguém, se defrontar com dúvidas, eis aí uma bela sugestão. Com certeza você se dará muito bem. É impossível não agradar.

Deixo também a leitura anterior, em dois posts que versam sobre o tema.


quarta-feira, 25 de junho de 2025

LEITURAS PROIBIDAS. Uma história da leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota de rodapé sobre um tal de Comstock. Essa nota me fez brotar da memória uma leitura dos anos 2000. Trata-se do livro Uma história da leitura, do escritor argentino, mas cosmopolita, Alberto Manguel. Um capítulo em particular que versava sobre leituras proibidas. Nele aparece o notável censor de livros, Anthony Comstock, presidente de uma sociedade que tinha por finalidade a extinção do vício.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. 2002.

O livro de Manguel é notável. É, como diz o título, um passeio pelo mundo da leitura. Os livros nunca provocaram a indiferença das pessoas. Ou eles são amados, ou então, profundamente odiados. O capítulo das leituras proibidas nos remete ao ano de 1660, a Carlos II, rei da Inglaterra. O rei nos é apresentado como um monarca alegre "por seu amor ao prazer e aversão aos negócios". Ele acreditava, de acordo com Lutero, que "a salvação da alma dependia da capacidade de cada um ler a palavra de Deus por si mesmo". Os escravocratas discordavam. "Não acreditavam nos argumentos de que uma alfabetização restrita à Bíblia fortaleceria os laços da sociedade; percebiam que, se os escravos pudessem ler a Bíblia, poderiam ler também panfletos abolicionistas e que mesmo nas Escrituras seriam capazes de encontrar noções incendiárias de revolta e liberdade". 

Depois de algumas digressões, Manguel volta a Carlos II, desta vez sendo confrontado por Comstock. "Em 1872, pouco mais de dois séculos após o decreto otimista de Carlos II, Anthony Comstock - um descendente dos antigos colonos que tinham se oposto aos impulsos pedagógicos de seu soberano - fundou em Nova York a Sociedade para a Extinção do Vício, o primeiro conselho de censura efetivo dos Estados Unidos. Pensando bem, Comstock teria preferido que a leitura jamais tivesse sido inventada, mas, já que o fora, estava decidido a controlar seu uso.  Comstock considerava-se um leitor dos leitores, aquele que sabia o que era boa e o que era má literatura, e fazia todo o possível para impor suas ideias aos outros". Em seu diário se lia:

"Quanto a mim, estou decidido, com a força de Deus, a não ceder à opinião dos outros, e se sentir e acreditar que estou certo, hei de me manter firme. Jesus jamais foi afastado do caminho do dever, por mais duro que fosse, pela opinião pública. Por que eu o seria?" Manguel nos fornece alguns dados de seu personagem:

"Anthony Comstock nasceu em New Canaan, Connecticut, em 7 de março de 1844. Era um sujeito corpulento e, no decorrer da carreira de censor, utilizou muitas vezes seu tamanho para derrotar fisicamente os oponentes. Um de seus contemporâneos descreveu-o assim: 'Com um metro e meio (de sapatos), carrega tão bem seus 95 quilos de músculos e ossos que você diria que não pesa mais de oitenta. Seus ombros de Atlas, de enorme circunferência, encimados por um pescoço de touro, estão de acordo com um bíceps e uma panturrilha de tamanhos excepcionais e solidez de ferro. Suas pernas são curtas e lembram troncos de árvore'". E a narrativa continua:

"Comstock tinha vinte e poucos anos quando chegou a Nova York com 3,45 dólares no bolso. Conseguiu emprego como vendedor de tecidos e artigos de armarinho e logo economizou os quinhentos dólares necessários para comprar uma pequena casa no Brooklin. Poucos anos depois, casou com a filha de um ministro presbiteriano, dez anos mais velha que ele. Em Nova York, Comstock descobriu muita coisa que julgava censurável. Em 1868, depois que um amigo lhe contou como fora 'desencaminhado, corrompido e pervertido' por um certo livro (o título dessa poderosa obra não chegou até nós), Comstock comprou um exemplar na loja e depois, acompanhado por um policial, fez prender seu dono e confiscar o estoque. O sucesso desse primeiro ataque foi tal que ele decidiu continuar, provocando periodicamente a prisão de editores e impressores de material excitante.

Com a ajuda de amigos da Associação Cristã de Moços que lhe forneceram 8500 dólares, Comstock pôde fundar a sociedade pela qual ficou famoso. Dois anos antes de morrer, disse a um entrevistador em Nova York: 'Nos 41 anos em que estive aqui, condenei um número suficiente de pessoas para encher um trem de passageiros de 61 vagões, sessenta vagões com sessenta passageiros cada, e o sexagésimo primeiro cheio. Destruí 160 toneladas de literatura obscena'.

O fervor de Comstock foi também responsável no mínimo por quinze suicídios. Depois que conseguiu mandar o ex-cirurgião irlandês Willian Haynes para a prisão, Haynes se matou. Um pouco mais tarde, Comstock estava prestes a tomar a barca para o Brooklin (relembrou posteriormente) quando 'uma Voz' lhe disse que fosse até a casa de Haynes. Lá chegou quando a viúva estava descarregando de uma carroça as chapas de impressão de livros proibidos. Com grande agilidade, Comstock saltou para o assento do condutor e levou a carroça para a ACM, onde as chapas foram destruídas". E vamos deixar a a escrita de Manguel fluir:

"Que livros lia Comstock? Ele era um seguidor involuntário do conselho jocoso de Oscar Wilde: 'Jamais leio um livro que devo resenhar; ele o torna muito parcial'. Às vezes, porém, folheava os livros antes de destruí-los e ficava horrorizado com o que lia. Achava a literatura da França e da Itália 'pouco melhor que histórias de bordeis e prostitutas nessas nações lúbricas. Com que frequência se encontram nessas histórias torpes heroínas adoráveis, excelentes, cultivadas, ricas, e encantadoras em todos os aspectos, as quais têm por amantes homens casados; ou, depois do casamento, os amantes cercam a jovem esposa, gozando de privilégios que pertencem somente ao marido!'. Até mesmo os clássicos não estavam acima da exprobação. 'Tome-se, por exemplo, uma obra bem conhecida de Boccaccio', escreveu em seu Traps for the young [Armadilhas para os jovens]. O livro era tão imundo que Comstock faria qualquer coisa para 'evitar que ele, como uma besta selvagem, se soltasse e destruísse a juventude do país'. Balzac, Rabelais, Walt Whitman, Bernard Shaw e Tolstoi estavam entre suas vítimas. A leitura cotidiana de Comstock, dizia ele, era a Bíblia". Depois Manguel vai além em suas análises:

"Os métodos de Comstock eram selvagens, mas superficiais. Faltava-lhe a percepção e a paciência de censores mais sofisticados, que escavavam o texto com um torturante cuidado em busca de mensagens enterradas. Em 1981, por exemplo, a junta militar liderada pelo general Pinochet baniu Dom Quixote do Chile porque o general achava (com bastante razão) que o livro continha um apelo pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída.

A censura de Comstock limitava-se, num ataque de ultraje, a pôr as obras suspeitas em um catálogo dos amaldiçoados. Seu acesso aos livros também era limitado: só podia caçá-los se aparecessem em público, quando muitos já tinham escapado para as mãos de leitores ávidos. Em 1559, a Sagrada Congregação da Inquisição Romana publicara o primeiro Índice dos livros proibidos - uma lista de livros que a Igreja considerava perigosos para a fé e a moral dos católicos. O Index, que incluía livros censurados antes da publicação, bem como livros imorais já publicados, jamais pretendeu ser um catálogo completo de todos os livros banidos pela Igreja. Porém, quando foi abandonado, em junho de 1966, continha, entre centenas de obras teológicas, outras tantas obras de autores seculares, de Voltaire e Diderot a Colette e Graham Greene. Comstock certamente acharia essa lista muito útil.

'A arte não está acima da moral. A moral vem primeiro', escreveu Comstock. 'A lei vem em seguida, como defensora da moral pública. A arte só entra em conflito com a lei quando sua tendência é obscena, lasciva ou indecente'. Isso levou o New York World  a perguntar num editorial : 'Foi realmente determinado que não há nada de saudável e proveitoso na arte a não ser que ela esteja vestida?'. A definição de Comstock de arte imoral, como a de todos os censores, foge da dificuldade. Comstock morreu em 1915. Dois anos depois, o ensaísta americano H. L. Mencken definiu a cruzada de Comstock como 'o novo puritanismo', não ascético, mas militante. Seu objetivo não é elevar santos, mas derrubar pecadores'.

Manguel continua suas análises, rumando para o oriente, afirmando antes que a censura não era apenas uma exclusividade do mundo ocidental. Termino por fazer um insistente apelo para a leitura do belo livro de Manguel, do qual deixo a sua resenha. Lembrando ainda, que recentemente, o livro de Jeferson Tenório, O avesso da pele, foi motivo de censura de diversos governadores brasileiros, entre eles, o do Paraná. Permaneceu sob análise, alegou o governador do Paraná.

Segue a resenha de Uma história da leitura.


Adendo. 1 de julho 2025. Do livro: História universal da destruição de livros. Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, de Fernando Báez. Um inquisidor em Nova York: "Em 21 de setembro de 1915 morreu Anthony Comstock, aos 71 anos. Durante quarenta longos anos foi o inquisidor religioso mais temido do mundo e ainda hoje seu nome está relacionado com a destruição do maior número de livros dos Estados Unidos.

Comstock nasceu em 7 de março de 1844, em Nova Canaã, Connecticut. Lutou na Guerra Civil e no exército da União, e algo do que viu ou não viu determinou suas ações posteriores. Instalou-se em Nova York e, em 1872, trabalhou na Young Men's Christian Association. Lia a Bíblia com um fervor que assustou todos seus amigos. No seu entender, o demônio se apoderara de muitos escritores e sua missão na Terra era por fim a essa atrocidade. Nada o deteve nessa inexplicável cruzada moral.

Em 1873 fundou a Sociedade de Nova York para a Eliminação do Vício e, como se não bastasse, conseguiu a aprovação no Congresso da chamada Lei Comstock, que impôs a proibição de transportar pelo correio qualquer texto considerado imoral. Revisou de graça milhares de livros e revistas e com uma única folheada podia encontrar as verdadeiras agressões aos bons costumes.

Cerca de 120 toneladas de livros, revistas e folhetos foram queimados publicamente. Sabe-se que odiava a obra de George Bernard Shaw" (Páginas 217-218).

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Uma história da Leitura. Alberto Manguel.

Ao ler O Diário de H. L. Mencken me deparei com uma nota referente a Anthony Comstock, numa de suas diatribes com o escritor Garland. A nota diz o seguinte: "Anthony Comstock (1844-1915) era secretário da Sociedade para a supressão do Vício e empreendia uma guerra incessante contra todos os livros que, em seu juízo, eram obscenos ou pudessem causar um rubor de vergonha nas bochechas de alguma jovem virgem e pura" (página 121). Isso me fez lembrar do belo livro Uma história da leitura, de Alberto Manguel, que eu lera no ano de 2004.

Uma história da leitura. Alberto Manguel. Companhia das Letras. Tradução: Pedro Maia Soares.

Do livro, um capítulo em particular me chamou muito a atenção. Ele tem por título - Leituras proibidas, onde este secretário é citado e largamente analisado. Quis retomar esta leitura quando governadores, para ser bastante condescendente com eles, não muito afeitos com livros, submeteram o belo livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, sob censura. Entre esses governadores, lamentavelmente, figurava o governador do Paraná. Outras leituras, no entanto, me detiveram. Agora o retomei.

Alberto Manguel, como filho de pai diplomata, é um cidadão do mundo. Nasceu em Buenos Aires no ano de 1948 e atualmente é cidadão canadense. Um de seus feitos foi ter conhecido Jorge Luís Borges numa livraria e, para ele passou a fazer leituras, quando o escritor já estava acometido por um cegueira quase que total. Certamente este fato o influenciou bastante para dedicar uma vida toda ao mundo das letras.

O livro, de extrema erudição, está estruturado em quatro partes: A última página; atos de leitura; os poderes do leitor e páginas de guarda. De - A última página - destaco a primeira afirmação - a de que ler é como respirar e a segunda - a eterna relação de adversidade entre a leitura e as ditaduras. Vejamos: "Os regimes totalitários exigem que não pensemos, e portanto proíbem, ameaçam e censuram [...] exigem que nos tornemos estúpidos e que aceitemos nossa degradação docilmente" (página 36).

Da segunda parte - Dos atos de leitura - destaco os subtítulos: Leitura das sombras; os leitores silenciosos; o livro da memória; o aprendizado da leitura; a primeira página ausente; leitura de imagens; a leitura ouvida; a forma do livro; leitura na intimidade e metáforas da leitura. O destaque vai para para a mensagem para os leitores silenciosos. Para as possibilidades de diferentes interpretações, para o surgimento de heresias e para toda uma história do livro, até ele adquirir a sua forma atual e a sua comercialização.

Já os subtítulos da terceira parte - Os poderes do leitor são: Primórdios; ordenadores do universo; leitura do futuro; o leitor simbólico; leitura intramuros; roubo de livros; o autor como leitor; o tradutor como leitor; leituras proibidas e o louco por livros. O meu grande destaque vai para dois subtítulos: O já assinalado - leituras proibidas e o roubo de livros. Para o - leituras proibidas - darei um destaque especial, num post em separado e sobre o roubo de livros devo dizer e concordar que para os seus ladrões poderia ser aplicada a pena da excomunhão. 

No - páginas de guarda - um novo livro de Uma história da leitura se abre como uma possibilidade. Livros que não escrevi, livros que não li.

Gostei da apresentação do livro que consta da contracapa: "Leitor voraz e ciumento, um grão-vizir da Pérsia carregava sua biblioteca quando viajava, acomodando-a em quatrocentos camelos treinados para andar em ordem alfabética. Em 1536, a lista de preços das prostitutas de Veneza anunciava uma profissional que se dizia amante da poesia e tinha sempre à mão algum livrete de Petrarca, Virgílio ou Homero. Na segunda metade do século XIX, em Cuba, os operários de algumas fábricas de charuto pagavam um lector, um leitor que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto enquanto eles manuseavam o fumo. Lia, por exemplo, romances didáticos, compêndios históricos e manuais de economia política. A ditadura de Pinochet baniu o Dom Quixote, identificando ali apelos à liberdade individual e ataques à autoridade instituída.

A leitura é a mais civilizada das paixões. Mesmo quando registra atos de barbarismo, sua história é uma celebração da alegria e da liberdade".

Tomo ainda as orelhas da capa e contracapa: "De certa forma, todo livro escolhe seu leitor, mas Uma história da leitura parece ter um modo muito particular de exercer essa escolha: talvez com uma ou outra exceção, todos os que se dispõem a lê-lo integram a comunidade das pessoas que gostam de ler. Por isso, cada uma delas encontra aqui certos fragmentos de sua própria experiência: o encantamento com o aprendizado da leitura, a leitura compulsiva de tudo (livrinhos de escola, cartazes de rua, rótulos de remédio), o prazer solitário de ser amigo do peito de Sinbad, o Marujo, de acompanhar a multiplicação dos significados de uma palavra, de descobrir o final da história. Como um volume da biblioteca impossível de Borges, o livro de Alberto Manguel contém um pouco da autobiografia de cada um de seus leitores.

E, sem dúvida, também do autor, cuja erudição ao falar de séculos e séculos de história é primeiro filtrada por uma vivência pessoal intensa. A clareza de texto de Alberto Manguel parece refletir uma generosidade, uma vontade de compartilhar informações, perspectivas e modos de sentir o ato de ler.

'Ler para viver', Flaubert escreveu, ou, na visão de Kafka, 'ler para fazer perguntas'. Das plaquinhas de argila da Suméria aos nossos cibertextos, sabemos que a história registra não só uma infinidade de motivações para a leitura, mas também para a sua proibição, como se fosse da natureza da palavra escrita penetrar a intimidade do leitor e fazê-lo agir, fazê-lo mover-se para lugares que só ele é capaz de escolher. O ato de ler pressupõe e, simultaneamente, cria uma liberdade.

Alberto Manguel é primeiro um leitor, e, nesta condição, se escolheu narrar as conformações da leitura ao longo do tempo, é porque está ciente de quantos tentáculos uma boa história pode ter".

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Educação como prática da liberdade. Uma apresentação para o ciclo de leituras.

Num certo dia, naquelas mensagens de lembranças trazidas pelo facebook, apareceu uma fala que eu fiz, contextualizando o primeiro grande livro de Paulo Freire - Educação como prática da liberdade. Revi a fala e deixei por isso mesmo. Alguns dias depois, a resgatei para deixá-la num espaço para que possa ser acessada mais facilmente. Mas antes de apresentá-la, quero deixar aqui a contextualização dessa fala.

Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz e Terra.

Duas datas relativas a Paulo Freire - o cinquentenário do lançamento de Pedagogia do oprimido (1968) e o centenário de seu nascimento (Recife 19 de setembro 1921) mereceram uma especial atenção nossa. Seguramente seriam datas a serem comemoradas. E resolvemos fazer isso. Quem e como isso foi feito? Na época, havia na APP-Sindicato, um grupo de oposição, capitaneado pelo Núcleo Sindical Curitiba Norte, mas com capilaridade em todo o Paraná, denominado APP-Independente. Desse Núcleo partiu a ideia da realização de ciclos de leitura denominados - Ciclos de Leituras e Estudos do Pensamento de Paulo Freire. Logo, a ideia foi abraçada pelos DEPLAE e NESEF, órgãos da UFPR e pelo Instituto Federal do Paraná, campus de Curitiba. Estes ciclos tiveram grande abrangência. No Brasil inteiro se formaram círculos de leitura, reunidos em cinco encontros, somados a um encontro final de celebração com os participantes possíveis de se reunirem.

Foi um dos trabalhos mais promissores dos quais eu participei ao longo de toda a minha vida. A fala, aqui resgatada, é datada de 21 de abril de 2021. Realizávamos o Terceiro Ciclo, com foco no Educação como prática da liberdade. Desse ciclo participaram mais de 150 grupos. Em outro desses ciclos, o foco se voltou, por óbvio, à Pedagogia do oprimido e ao seu magnífico - Pedagogia da autonomia. Em outros, vários livros, com os grupos escolhendo uma determinada obra. Foi um trabalho maravilhoso.

No presente vídeo, numa parceria com o professor Luís Paixão, apresentamos uma contextualização do meu primeiro contato com a obra de Paulo Freire, que é também o primeiro grande trabalho do Paulo - Educação como prática da liberdade. Com muito orgulho, devo ainda dizer, que conheci pessoalmente o grande educador, encontrando-o em vários e significativos momentos de minha vida. Deixo com vocês esta fala, datada do dia 26 de abril de 2021.

https://www.youtube.com/watch?v=S3SEEeKSWbo

Deixo ainda um post de uma das atividades promovidas pelo Ciclo, realizado na UFPR, uma peça de teatro denominada - Paulo Freire - o andarilho da utopia. 

http://www.blogdopedroeloi.com.br/2019/09/paulo-freire-o-andarilho-da-utopia.html


quinta-feira, 5 de junho de 2025

O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Fecher.

Na leitura de Babbitt encontrei uma referência a H. L. Mencken  Nela Babbitt encontra-se sozinho em sua residência, algo a que não estava acostumado. Eis a referência: "Estava desinquieto. Sentiu vagamente a necessidade de ler alguma coisa mais divertida que a seção cômica do jornal. Subiu ao quarto de Verona (filha), sentou-se no virginal leito azul e branco trauteando e grunhindo no tom de um cidadão sólido enquanto examinava os livros da filha: Rescue, de Conrad, um volume que trazia o título singular de Figuras de Terra, contendo poesias (extravagantes, disse Babbitt consigo) de Vachel Lindsay, e ensaios de H. L. Mencken - ensaios sumamente inconvenientes, que metiam a ridículo a Igreja e todas as coisas decentes. Nenhum dos livros lhe agradou". Página 308.


O Diário de H. L. Mencken. Edição de Charles A. Flecher. Tradução Bento Lima.

De Mencken (1880-1956) eu já tinha lido O livro dos insultos e como tenho em minha biblioteca outro livro seu - O Diário de H. L. Mencken, me dei à curiosidade de conhecer algo mais e encontrar as inconveniências e ridicularizações que C. S. Lewis, ironicamente atribuíra ao autor. Devo ter comprado o livro numa grande liquidação e procurei lê-lo quando da leitura de O livro dos insultos, mas não me atraiu tanta atenção. Agora o retomei e tomei fôlego.

Verifiquei a sua estrutura. Um diário. As datas limítrofes eram os anos de 1930 a 1946. Já sabia da fama do escritor e como o período retratado é de grande interesse, mergulhei na leitura. Devo confessar que ela não correspondeu a toda a minha expectativa. Sabia que ele era ferrenho adversário de Roosevelt e da política do New Deal e esperava que ele analisasse criticamente esses anos pós crise de 1929 e os anos da Segunda Guerra Mundial. O livro tem peculiaridades que precisam ser sabidas. Na capa, além do título, temos a anotação de que o livro foi editado por Charles A. Flecher. Será ele também o autor de um esclarecedor prefácio. Depois que ele apresenta o autor e sua obra ele assim se refere aos diários:

"Finalmente havia o diário. Quando o começou em 1930, manteve-o com regularidade, mas depois da morte de Sara (a esposa), por vários anos, tocava-o raramente e, mesmo quando o retomou, o fez de modo intermitente. Foi no início dos anos 40 que voltou a escrever nele com regularidade e de modo sistemático. Em 31 de dezembro de 1943, assinalou que apenas os registros daquele ano superavam 65 mil palavras, 'o equivalente a um livro de bom tamanho'. É claro que, também, o diário - quase sempre no tom direto e sem-cerimônia, que o caracterizava - tratava de pessoas que ainda estavam vivas e, mais uma vez, preocupou-se em não ferir ninguém. Ordenou que fosse lacrado por 25 anos depois de seu falecimento". Foi quando a edição veio a público.

Como um notável homem de imprensa, com um desgosto profundo assistiu a superação dos jornais pelo rádio, instrumento que, segundo ele, era dirigido para retardados mentais. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, mostrou-se implacável contra a política do New Deal e contra a entrada dos Estados Unidos na Guerra. Vejamos uma anotação sua, datada de 2 de novembro de 1944: "... Contudo, de modo geral, dificilmente sou afetado pelo enorme esforço  de salvar a humanidade e de arruinar os Estados Unidos". Ele era absolutamente conservador e considerava como o melhor governo a sua inexistência. Era descendente de alemães e considerava um erro, o fato de o seu avô ter migrado para os Estados Unidos.

O livro é longo, são 574 páginas. Creio que a metade é dedicada a queixas sobre estados de saúde, quando não os seus, os de seus amigos. Quase outro tanto é dedicado a reuniões de trabalho de editores e jantares com os homens do mundo editorial, onde era uma pessoa de enorme influência. A ironia crítica está onipresente em suas anotações, em que a mediocridade da escrita é a anotação mais constante. Todos os grandes escritores do período fazem parte de seu diário, entre eles, com grande destaque, C.S. Lewis, de quem era grande amigo.

Vou transcrever duas passagens do ano de 1945, para ver um pouco da tonalidade da obra. A primeira é a sua visão dos Estados Unidos como a Pátria das liberdades: "Nestes dias que correm, até meu vocabulário é proibido. Não podia nem sequer mencionar Roosevelt, Churchill nem qualquer outro embusteiro sem ter de enfrentar um ataque violento, marcado por golpes baixos. A ideia tão difundida de que a liberdade de discurso prevalece nos Estados Unidos sempre me fez gargalhar" (página 449).  Na outra ele descreve o fim da guerra: 

"Na noite de ontem (ele escreve no dia 15 de agosto de 1945), quando se anunciou o fim da guerra, estava em meu escritório, trabalhando em minhas memórias nos dias de revista. As primeiras notícias do fato chegaram através dos sinos das igrejas. Até as freiras da Casa do Bom Pastor tocaram seu sino, embora apenas brevemente. Era 7:05 da noite. O barulho continuou intermitente por duas horas, com os debiloides andando em seus carros e tocando suas buzinas. às 8h50 fui até a esquina das ruas Baltimore e Gilmor (Ele morou a vida toda na cidade de Baltimore) para colocar algumas cartas na caixa do correio. Algumas dúzias de migrantes do campo, sulistas e gentalhas do gênero, estavam reunidos em grupos de esfarrapados, mas não faziam barulho...". Ele era acusado de nazista e de racista, fato negado pelo editor.

Não podia deixar de mencionar uma frase sobre Nietzsche e uma opinião sobre Freud. Como a de Freud é bem curtinha, começo por ela: "Adolf Meyer, diretor do Instituto Phipps, falou sobre livros de sexo em sua biblioteca com grande desdém. Guardava-os numa prateleira junto com livros a respeito de Freud e outras charlatanices do gênero" (página 154). A anotação sobre Nietzsche data de 15 de outubro de 1944. "Hoje completa-se o centenário de nascimento de Friedrich Wilhelm Nietzsche. Caso seja lembrado em algum lugar da América será porque era um sujeito nocivo e inventor de todas as diabruras de Hitler. Não consigo ver muita esperança para este grande país cristão. Por toda minha vida, assisto sua sistemática decadência e, ultimamente, o ritmo acelerou-se com rapidez" (página 422).Vejamos ainda as orelhas do livro:

..."O diário de H. L. Mencken, por expresso desejo seu, foi mantido em sigilo nos cofres da Biblioteca de Enoch Pratt de Baltimore, durante vinte e cinco anos depois de sua morte. O diário cobre os anos de 1930 a 1948 e proporciona um retrato vivo, autêntico e, às vezes, até chocante do próprio Mencken, de seu mundo, de seus amigos e antagonistas, dentre os quais aparecem personagens como Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis, William Faulkner e até Franklin D. Roosevelt, por quem Mencken nutria um ódio especial que resultou em espetaculares e celebrados atos de ataques injuriosos.

Charles A. Flecher, estudioso de Mencken, trabalhou o manuscrito datilografado com mais de duas mil páginas, que agora se publicam, e fez uma generosa seleção de registros cuidadosamente escolhidos para que se preservasse toda a amplitude, o colorido e o impacto do diário. Aqui, em toda sua plenitude. Mencken surge como um observador ímpar e como perturbador da sociedade americana. Aparece também como ser humano com seus impulsos contraditórios: o cético preso a pequenas superstições, o destemido guerreiro que era um obcecado hipocondríaco, o marido apaixonado e o amigo generoso que, infelizmente, era um intolerante".

E, como foi Babbitt que me fez retomar o livro, deixo aqui a resenha.


E também o seu livro O livro dos insultos




sexta-feira, 30 de maio de 2025

Geografia da fome. Josué de Castro.

Creio que este livro - Geografia da fome -, de Josué de Castro, foi um dos livros que eu mais ouvia falar ao final dos anos 1960 e ao longo de toda a década de 1970. Era o tempo da minha conclusão da Faculdade de Filosofia em Viamão e o início de minha atividade profissional em Umuarama. Mas não o li na época. O adquiri num sebo, ao longo dos anos 2000, mas somente agora é que eu  fui lê-lo. Deveria tê-lo feito na época de sua escrita.

Geografia da fome. Josué de Castro. 1908 (Recife) 1973 (Paris).

Mas quando ele foi escrito? A sua primeira versão é do ano de 1946. No entanto, a versão hoje corrente e definitiva é o da 9ª edição, do ano de 1960. O próprio autor o conta no Prefácio desta edição. Vejamos a sua fala: "Este livro foi publicado pela primeira vez em 1946. Nele tentou o autor esboçar um retrato do Brasil de cerca de quinze anos atrás. Do Brasil que era então um país tipicamente subdesenvolvido, com sua característica economia de tipo colonial, na exclusiva dependência de uns poucos produtos primários de exportação, entre os quais se destacava o café. Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa. Foi esta conjuntura econômico-social com todas as suas trágicas consequências que inspirou este ensaio" (página 47). Anteriormente, mas no mesmo prefácio, ele falava de seus objetivos:

"Aparecendo na aurora dessa nova era social, onde a tenebrosa noite do fascismo ainda projeta as suas sombras, este livro pretende ser um documentário científico desta tragédia biológica, na qual inúmeros grupos humanos morreram e continuam morrendo de fome, ao finalizar-se esta escabrosa era do homem econômico.

Para se compreender bem e se possa perdoar o uso que faz o autor, em certas passagens do seu livro, de tintas um tanto negras (Opa! naquele tempo podia), é bom que o leitor se lembre de que esta obra, documentário de uma era de calamidade, foi pensada e escrita sob a influência psicológica da pesada atmosfera que o mundo vem respirando nos últimos vinte anos. Atmosfera abafada pela fumaceira das bombas e dos canhões, pela pressão das censuras políticas, pelos gritos de terror e de revolta dos povos oprimidos e pelos gemidos dos vencidos e aniquilados pela fome" (página 39).

O que mais me chamou a atenção, já logo no início da leitura foi o entrelaçamento da fome e das carências alimentares sobre a constituição fisiológica do ser humano. Os terríveis efeitos da subnutrição e as deformações fisiológicas. Aí fui ver que não era um sociólogo quem escrevia o livro. Era sim, um médico, com o seu olhar científico. O livro pode ser visto assim como um mapa, ou documentário dos alimentos existentes nas diferentes regiões brasileiras, bem como o seu oposto, o das carências. As principais doenças da fome/subnutrição são: - beribéri, pelagra, escorbuto, xeroftalmia,, raquitismo, osteomalácia, bócios endêmicos, anemias, entre outras. O livro contem muita pesquisa, pesquisa em tempos pioneiros, quando a bibliografia era praticamente inexistente. São os tempos da FAO, da qual ele integrou o Conselho Mundial, vindo a morar em Paris.

Mas vamos falar um pouco da estrutura do livro. Começo pelas dedicatórias: A Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil e - A memória de Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. Aí seguem três prefácios, entre eles o do autor. Segue então o cerne do livro com sete capítulos e os apêndices e entre eles uma breve biografia e uma valiosa bibliografia. Vamos aos capítulos.

I. Introdução. Nela ele apresenta um panorama da fome pelo mundo, as vinculações entre a fome e a subnutrição e as cinco diferentes regiões, que se constituem  nos próximos capítulos.

II. Área amazônica. Os alimentos da mandioca (básica), da economia de coleta, a pimenta e a juta. Depois fala das contribuições indígenas para esta alimentação e a dos nordestinos, que para lá migraram no ciclo da borracha (1870-1910). A maior parte do capítulo é, no entanto, dedicada às deficiências alimentares e as suas consequências, analisando ainda as experiências norte-americanas, da Fordlândia e de Belterra.

III. Área do Nordeste açucareiro. Quatro séculos de devastação da floresta tropical, transformada em campos abertos para o cultivo da cana-de-açúcar. Terras férteis (massapê) e de grande variedade de frutas. A desinteligência da monocultura e dos rápidos desgastes da terra. Os holandeses e a obrigatoriedade do plantio da mandioca. E como no capítulo anterior, aqui são apresentadas as contribuições dos indígenas e dos escravizados para a alimentação. E, também, mais uma vez, as principais carências alimentares e as suas consequências.

IV. Área do sertão do Nordeste. Este é o mais longo dos capítulos. Apresenta as suas terras como sendo agrofágicas, fala das misérias das epidemias da seca e do milho e a sua miséria alimentar. Divide a região em agreste, caatinga e o alto sertão, da pouca diversidade de plantas e o domínio das cactáceas. Descreve os períodos de seca e as migrações dos retirantes. Analisa as implicações entre o fanatismo religioso e o banditismo, dos jagunços e ao mesmo tempo seus traços de bom caráter. Grande ênfase é dada à pecuária, - bovinos, caprinos e muares. Carne e leite e a riqueza alimentar.

V. As áreas de subnutrição: Centro e Sul. O autor considera esta região com deficiências mais discretas, caso de subnutrição, mais do que fome. Da região centro-oeste fala da cultura do milho, da criação de porcos e alimentos típicos, especialmente os de Minas Gerais. Fala também dos efeitos de levar a capital do país para Brasília. Por sul, ele entende tudo o que está abaixo do Rio de Janeiro. Fala dos efeitos da imigração e, de maneira especial, dos japoneses e sua dedicação ao cultivo de hortaliças. Mas a região convive com subnutrição crônica. O espaço dedicado é bem menor do que ao das outras regiões.

VI. Estudo do conjunto brasileiro. É a parte mais política do livro. Começa pela análise do espírito bandeirante e o desejo do enriquecimento fácil, do imperativo do "fique rico depressa". Fala da drenagem dos recursos públicos para as regiões sul e sudeste. Fala do subdesenvolvimento e crítica as políticas liberais que desconsideram a necessidade e o valor do planejamento econômico. O Estado é visto como indutor do desenvolvimento. Critica a direção do pêndulo em favor da política industrial e a pouca atenção à questão agrária e defende a urgência da reforma agrária. Não seria possível atingir o desenvolvimento com a permanência de uma agricultura semifeudal.

VII. Glossário. Um pequeno dicionário de hábitos que criaram os principais pratos regionais. Maravilhoso. O livro é concluído com um apêndice à oitava edição, com dados biográficos do autor e uma bibliografia, que nos fornece um belo quadro da literatura existente na época sobre este tão importante tema.

Da biografia tomo os dados finais para este post. Josué de Castro nasceu no Recife no ano de 1908 e morreu em Paris, no ano de 1973. Por que em Paris? Lá ele cumpria a sua vida de exilado político, como um condenado pelo regime civil militar instaurado no ano de 1964. Combater a fome era considerado um crime, coisa dos perigosos comunistas. Explicava as causas da fome. Sobre a sua importância deixo a parte final da biografia, na qual é citada uma reportagem do Le Figaro: "Cheio de flama e de paixão pela grande causa a que ele servia, ajudando, por suas fórmulas marcantes, a tocar de perto as realidades do subdesenvolvimento, a tomar consciência do círculo vicioso no qual se encerrou o mundo, exerceu ele uma influência profunda e duradoura".

Das orelhas de capa e contracapa tomo dois depoimentos. Da capa:"(...) um dos estudiosos mais lúcidos dos problemas do Terceiro Mundo". Rádio do Vaticano. E da contracapa: "Se foi o caloroso advogado dos pobres, Castro jamais pleiteou a piedade ou o assistencialismo. Mas a justiça é uma outra ordem no mundo. Morreu poucos dias após os acontecimentos do Chile e, sem dúvida, mais consciente do que nunca de tudo que restava por fazer. Mas porque viveu entre nós, a ignorância já não é uma desculpa. Daqui para frente nós sabemos. Como um geógrafo implacável, Josué de Castro traçou, sob nossos olhos, o mapa da fome. E o mínimo que podemos dizer dessa geografia é que ela não nos honra nem um pouco". Rémy Montour, Panorame. Simplesmente - um livro necessário.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Pró e contra. MAO. organização do texto: M. Bodino e C. Pastengo.

A China sempre foi vivo tema de meus interesses. Isso me levou a compra de livros que nem sempre foram lidos, em função de outras prioridades, especialmente a de estar em sala de aula. Um desses livros é o da coleção Pró e contra - O julgamento da história - Mao - . Edições Melhoramentos. A primeira edição do livro é de 1971 e a que tenho em mãos é de 1975. Essas datas trazem os limites do livro. Ele é valioso, na análise da Revolução chinesa, seus antecedentes e a sua consolidação. Como a centralidade desses acontecimentos gira em torno da pessoa de Mao Tse-tung, o livro, em parte é apresentado como uma biografia sua. Mao nasceu no ano de 1893 e morreu em 1976.

Pró e contra. Mao. Texto organizado por M. Bodino e C. Pastengo. Tradução: Raul de Polillo. 1975.

Digo em parte, porque ela ocupa a parte superior das páginas, enquanto que as inferiores são dedicadas à análise dos fatos históricos. O pai de Mao era militar. Sempre conseguia algumas economias de seu soldo, economias essas que lhe permitiram a condição de ser um pequeno proprietário de terras. Era extremamente autoritário. Na formação de Mao, o grande destaque vai para o seu gosto por leituras e a reflexão sobre elas. Muito cedo entrou em contato com a literatura marxista, tornando-se, inclusive, tradutor delas. Politicamente a China era um império, dominado pelas potências ocidentais, em particular pela Inglaterra. Movimentos rebeldes eram constantes.

A Revolução russa impacta profundamente a vida do país. Logo será criado o Partido Comunista Chinês, vinculado ao P.C. Soviético, o KOMINTERN, da Terceira Internacional (1919). Mao, desde logo, será um de seus militantes. Desde o início ele também será um voz dissonante. Em vez de basear a ação política na organização do proletariado, ele pretende centrar a sua organização nos pequenos camponeses, um vez que o desenvolvimento industrial ainda era muito pequeno. Ao longo dos anos 1920 surgem duas grandes forças políticas, que levarão o país a uma longa guerra civil, que começa em 1927 e termina apenas no ano de 1949. Duas grandes forças disputam o poder: O Partido Nacionalista Chinês, o Kuomintang, liderado por Chiang Kai-shek e o Partido Comunista Chinês, dentro do qual, com o tempo se afirma a liderança de Mao. A Guerra Civil se desenvolve ao longo de todos os anos de 1930. Ela é interrompida ao longo da Segunda Guerra, quando o Japão se torna o seu inimigo comum. Ao final da guerra a luta é retomada. Mao, com o seu exército de camponeses e as suas táticas de guerrilha, sai vencedor e em 1949 é proclamada a República Popular da China.

Como as forças dos derrotados são exprimidas para o mar, Chiang Kai-shek, se refugia na ilha de Formosa (Taiwan), e em 1950, com a ajuda dos Estados Unidos funda a China Nacionalista. Ela se transforma num grande problema, pois, as potências ocidentais, apenas a ela reconhecem e negociam. Tentam isolar a República Popular, emergente do longo processo revolucionário.

Isolado e merecedor de poucas atenções de Stalin, Mao praticamente está sozinho na consolidação da Revolução. Com alguma ajuda russa ele se dedica ao empreendimento. A primeira questão a ser enfrentada será a do latifúndio, poupando as pequenas propriedades. Além da expropriação ofereceu meios de assistência e já em 1951 a reforma agrária estava consolidada. Antes de começar as demais reformas houve a Guerra da Coreia (1950-1953), gastando ali enormes energias. Conta-se que Mao teria preferido empregar estas energias contra Chiang Kai-shek. Além disso enfrentou duramente os contra-revolucionários. Como a persuasão não foi suficiente, cerca de oitocentos mil proprietários foram executados. Em 1952 é lançado o Primeiro Plano Quinquenal. Inicia a politização das massas.

Em 1954 é aprovada a Nova Constituição e é feito um grande incremento à produção industrial, agrícola e comercial. Uma abertura política interna e externa é buscada. Em 1955, os países em desenvolvimento procuram um alinhamento, em Bandung. A China procura ser protagonista no cenário mundial. Enquanto isso Estados Unidos e Rússia procuram a Coexistência Pacífica. Internamente, em função do desviacionismo, uma política de retificação é ativada. Novas repressões.

Em 1959 ocorrem crises, especialmente em função de crises climáticas.  Mao se afasta da presidência, mas não do Partido. São feitas readequações. Planos anuais. Produção de alimentos ganham prioridade sobre a indústria pesada. Em 1961 a situação se estabiliza. Mas as divergências com a União Soviética aumentam. Em 1965 retoma o poder e já no ano seguinte inicia a famosa "revolução cultural", com a qual procura moldar o "homem novo", com a destruição das "superestruturas burguesa". Este novo homem será despido do egoísmo e estará totalmente voltado ao bem-comum. Isso com modificações nos sistemas de ensino, da literatura, da arte, do teatro e a modificação dos hábitos cotidianos. Os carcomas do país, ou seja, os burgueses seriam destruídos, numa guerra sem quarteis. Os nascidos depois de 1949 foram arregimentados como os protagonistas do processo.

Já no início dos anos 1970 a Revolução está consolidada. A República Popular da China é reconhecida pelos Estados Unidos e o país  integra a Organização das Nações Unidas, ocupando inclusive uma das cadeiras permanentes no Conselho de Segurança. Estavam lançadas as bases para a grande potência mundial. Qual o seu tamanho e dimensão, o futuro, em breve, o dirá. A data inaugural está aí. O ano de 1949 e o seu líder, Mao Tse-tung, também. Em breve eu atualizo. O depois dos anos 1970.

Este post foi escrito no dia 14.05.2025. Momento de grande aproximação do Brasil com a China, após visita do presidente Lula a este país.

Como o livro  A condição humana de André Malraux também fala da Guerra Civil chinesa que levou ao 1949, deixo o link da resenha.