Nas rodas de conversa que eu frequento o tema da religião sempre é recorrente. Assim, numa delas, veio à tona o livro Domínio - o cristianismo e a criação da mentalidade ocidental, do historiador inglês, especializado no mundo antigo, Tom Holland. Esta mentalidade ocidental moldada pelo cristianismo pode mais ou menos ser assim definida, como a definiu o autor, já quase ao final de seu livro:
Domínio. O cristianismo e a criação da mentalidade ocidental. Tom Holland. Record. 2022."... O humanismo (presente no mundo ocidental) deriva, no fim das contas, de alegações feitas na Bíblia: os seres humanos são feitos à imagem de Deus; seu Filho morreu igualmente por todos; não existem judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Repetidamente, como um grande terremoto, o cristianismo enviou reverberações pelo mundo. Primeiro houve a revolução primal, pregada por São Paulo. Então vieram os tremores secundários: a revolução do século XI que colocou a cristandade latina em seu curso momentoso, a revolução comemorada como Reforma, a revolução que matou Deus. Todas com a mesma estampa: a aspiração de incluir em si mesma toda outra forma de ver o mundo e a reivindicação de um universalismo que era culturalmente específico. Que os seres humanos possuem direitos, nascem iguais e devem obter sustento, abrigo e proteção contra a perseguição nunca foram verdades autoevidentes". Em suma, o mundo ocidental foi tomando as formas de pensar do mundo cristão (Página 535).
No belo prefácio do livro encontramos a pergunta fundamental que o autor busca responder: "Como um culto inspirado pela execução de um criminoso obscuro em um império há muito desaparecido pôde exercer uma influência tão transformadora e duradoura no mundo?" (página 24). Logo adiante, o autor dá as marcas do mundo cunhadas pela morte desse criminoso. "Dois mil anos após o nascimento de Cristo, não é preciso acreditar que ele se ergueu dos mortos para ser marcado pela formidável - de fato, inescapável - influência do cristianismo. Seja a convicção de que os mecanismos da consciência são os mais seguros determinantes das boas leis, de que a Igreja e o Estado existem como entidades distintas ou de que a poligamia é inaceitável, seus elementos podem ser encontrados em todo o ocidente. Mesmo escrever em uma língua ocidental é usar palavras permeadas de conotações cristãs. 'Religião', 'secular', 'ateu, - nenhuma dessas palavras é neutra. Todas elas, embora derivem do passado clássico, trazem consigo o legado da cristandade. Falhar em entender isso é correr o risco de anacronismo. Por mais vazios que estejam os bancos das igrejas, o Ocidente permanece firmemente atracado a seu passado cristão" (página 25). O termo criminoso, usado pelo autor, é uma referência à morte na cruz, reservada no Império Romano, aos piores criminosos. Vai por aí o teor do longo livro de Tom Holland. Ele tem também três grandes divisões: Antiguidade, Cristandade e Modernistas.
Acima de tudo o livro do historiador é um livro de história, um longo livro de história. São 642 páginas, divididas em prefácio, vinte e um capítulos, notas e bibliografia. E três epígrafes notáveis. Eu as apresento: Ame e faça o que quiser. Santo Agostinho. // Que você sinta haver algo certo pode se dever ao fato de jamais ter pensado muito a respeito de si mesmo e ter aceitado cegamente os rótulos que recebeu desde a infância. Friedrich Nietzsche. // Tudo de que você precisa é amor. John Lennon e Paul McCartney. Os autores estão muito presentes nas análises do livro, que é, aliás, o sentido do emprego de boas epígrafes.
Vamos aos títulos dos capítulos: ANTIGUIDADE: I. Atenas (Até chegar à filosofia grega); II. Jerusalém (Antigo testamento - domínio romano); III. Missão (As cartas de Paulo - Roma e o legado de Pedro); IV. Crença (Expansão da doutrina, mártires, Cartago, heresias, Constantino e Niceia); V. Caridade (Juliano, Partilhando e cuidando, o voltar-se aos pobres. Agostinho); VI. Paraíso (A invenção do demônio, o bem contra o mal, usinas de orações); VII. Êxodo (Judeus, muçulmanos, choque de civilizações, Carlos Magno).
CRISTANDADE: VIII. Conversão (modelo carolíngio, Bonifácio, as fundações da ordem cristã, bávaros, húngaros, fragmentação do império franco); IX. Revolução (ressurgem os donatistas, um exército de peregrinos, universidades, o direito humano, Abelardo e Heloísa, a racionalidade da ordem divina); X. Perseguição (o julgamento dos hereges, a instituição da confissão, guerra santa, remover feridas à faca, os dominicanos contra as heresias, a perseguição aos judeus); XI. Carne (a era do Espírito Santo, uma era feminina, Catarina de Sena, a continência da carne, a liberdade de escolha do casamento e a negação do Pater familias, Madalena e a precedência, a igreja e a prostituição, sodomia; XII. Apocalipse (O monte Tabor, os reformistas sociais, ovelhas entre lobos - o colonialismo e a escravidão, Bartolomeu de las Casas, Lutero e a consciência); XIII. Reforma (Carlos V. Lutero e a tradução da Bíblia, a adesão dos príncipes, a justiça como dever dos príncipes, Müntzer, Henrique VIII, Calvino e a reforma moral, o papismo, os puritanos); XIV. Leiden (Leiden e Praga, Plymouth e a comunidade devota, os passageiros do Myflower - sua procedência, uma nova aliança, o morticínio indígena, Copérnico e o heliocentrismo).
MODERNISTAS: XV. Espírito (a propriedade, os presbiterianos, Cromwell, a liberdade religiosa, Maryland, Filadélfia - a cidade do amor fraterno, Spinoza, os huguenotes); XVI. Iluminismo (Diderot, Voltaire, a Vendeia, Robespierre e o terror, Napoleão, o marquês de Sade); XVII. Religião (A Inglaterra e os judeus, Colônia e os judeus, a Inglaterra e a abolição); XVIIII. Ciência (Os fósseis de Montana, uma teologia natural, Darwin,, as leis da evolução, Marx e os primeiros cristãos); XIX. Sombra (Nietzsche e o triunfo da vontade, Rússia - 1917, fascismo e nazismo, o sentimentalismo misericordioso, Tolkien); XX. Amor (All You Need Is Love, Beatles, o pós 2ª Guerra, Luther King, John Lennon, África e o gerenciamento da selvageria, Frantz Fanon e o colonialismo. Bush, o 11 de setembro e o Iraque); XXI. Woke - desperto (Ângela Merkel e os imigrantes, Orbán e a Hungria, Charlie Hebdo, o cristianismo e a transformação do mundo).
Eu assinalei pelo menos três destaques do livro: o significado da morte pela crucificação entre os romanos e o caráter de rebeldia de Jesus; a contextualização das cartas de Paulo e a escrita temática para cada povo ao qual ele se dirige e o posicionamento do autor frente ao tema. Ele claramente se posiciona como um cristão, mas não se omite e muito menos assume posições de neutralidade diante do mundo de contradições que permeiam todo o cristianismo. Eu destaquei uma passagem: "Em um país tão saturado de suposições cristãs quanto os Estados Unidos, não havia como escapar de sua influência, mesmo para aqueles que imaginavam ter escapado. As guerras culturais norte-americanas eram menos uma guerra contra o cristianismo que uma guerra civil entre facções cristãs". (página 526).
Deixo também a orelha da capa do livro: "Os romanos acreditavam que a crucificação era o pior destino imaginável, uma punição reservada aos ladrões e aos escravos. Foi surpreendente, então, quando as pessoas passaram a acreditar que uma vítima em particular da crucificação - um desconhecido que atendia pelo nome de Jesus - deveria ser adorado como Deus.
O cristianismo é o legado mais longevo e influente do mundo antigo, e seu surgimento foi o episódio mais transformador da história do Ocidente. Mesmo aqueles que abandonaram a fé de seus pais, julgando a religião uma superstição sem sentido, permanecem inegavelmente seus herdeiros. De perto, a divisão entre os que creem e os que não creem pode parecer irreconciliável. No entanto, basta se afastar um pouco para perceber que o impacto duradouro do cristianismo no Ocidente pode ser observado em muito do que é tradicionalmente visto como seu oposto: a ciência, o secularismo e, sim, até mesmo o ateísmo.
Domínio explora as consequências desta crença e seus efeitos ao longo da história mundial. Hoje, o Ocidente está completamente saturado das crenças cristãs: como demonstra Tom Holland, nossa moral e nossa ética não são universais, e sim fruto de uma civilização muito específica. Conceitos como secularismo, liberalismo, ciência e homossexualidade são profundamente enraizados em fundamentos cristãos. Da Babilônia aos Beatles, de São Miguel ao movimento #MeToo, Domínio conta a história de como o cristianismo transformou o mundo moderno".

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