quinta-feira, 10 de março de 2016

O Mal sobre a Terra. Uma história do terremoto de Lisboa. Mary del Priore.

A minha maior curiosidade ao iniciar a leitura do livro de Mary del Priore, O Mal sobre a Terra - A história do terremoto de Lisboa, foi a de contextualizar a política de Portugal nos meados do século XVIII, e mais de perto, ver as políticas e a importância histórica do marquês de Pombal na história do povo português. Duas viagens me despertaram para esta curiosidade. Em Diamantina, lendo a história de Chica da Silva me deparei com o marquês e, agora, mais uma vez me encontrei com ele, numa viagem às terras missioneiras no Paraguai, na Argentina e no Rio Grande do Sul.
O livro de Mary del Priore sobre o terremoto de Lisboa. Uma contextualização da segunda metade do século XVIII.

Como conheço a historiadora, lhe dei os créditos necessários para atender as minhas curiosidades e, mais uma vez, fui inteiramente contemplado. O terremoto de Lisboa ocorreu no dia primeiro de novembro de 1755, em pleno dia de todos os santos, um pouco antes das dez horas da manhã e que durou algo em torno de quinze minutos, sendo seguido por um maremoto e por inúmeros incêndios, que consumiram quase todo o centro histórico de Lisboa. O número de mortos, varia conforme as diferentes fontes, entre 15.000 dos mais moderados e 85.000 dos mais extremados. Algo em torno de nove graus na escola de Richter, teria sido a sua intensidade e com prejuízos em torno de 20.000 contos de réis. 

O livro possui quatro capítulos. O primeiro: Antes do terremoto: a cidade e as terras, o segundo: Durante o terremoto: o furor da terra, o terceiro: Depois do terremoto: Lisboa "toda cheia de mágoa e tristeza" e o quarto: A incerta memória do terremoto. Também tem  prefácio de Francisco José Calazans Falcon, autor de livro sobre o tema, datado de 1975 e introdução e conclusão da própria historiadora.
A historiadora Mary del Priore.

O primeiro capítulo nos dá uma bela visão da suja e feia Lisboa da primeira metade do século XVIII, a Lisboa de D. João V. Faltava água, limpeza e higiene. Muitos viviam na indigência à espera de sopas fornecidas pela caridade do rei, dos nobres e dos religiosos. A cidade era entregue aos perigos e à sujeira. A violência grassava em todas as ruas, sempre mal iluminadas. O processo civilizatório era lento em meio a um "esbanjar de riquezas escassas", como relatava um viajante um pouco mais atento. O absolutismo era total, tanto na política quanto na religião, sob a onipotência do Tribunal do Santo Ofício. Os autos de fé que antecediam as execuções eram festas monumentais e monstruosas. Os votos de castidade de padres e freiras não eram, digamos, inteiramente cumpridos. A dependência econômica da Inglaterra aumentava na mesma proporção em que escasseava o ouro da colônia brasileira. A esperança se fazia presente com as fantasias do sebastianismo, da volta do bom rei.

O segundo capítulo se ocupa das descrições do fenômeno do terremoto, do seu depois e das terríveis consequências. Ele durou um pouco mais de dez minutos e ocorreu um pouco antes das dez horas da manhã. Foi seguido de maremoto e de incêndios. O povo, nesta hora, ainda se acotovelava nas igrejas, em suas preces matinais, o que fez aumentar enormemente as vítimas, com a queda das cúpulas. A dignidade e a bestialidade humana andavam juntas. Houve muita solidariedade e atos abjetos de saque e de pilhagem. Familiares eram abandonados, na busca da salvação individual. D. José mostrou ser um rei caridoso e a Pombal coube a glória da reconstrução. Como em Sodoma e Gomorra, as causas foram atribuídas ao castigo divino. Pombal não foi um heroi. Se herois houve, todos foram anônimos.

O terceiro capítulo se ocupa do posterior ao acontecido. Aí entram os números. Nove graus de intensidade na escala Richter. Conforme as fontes, houve, de quinze a oitenta e cinco mil mortos, que por decisão real deveriam encontrar abrigo definitivo sob as águas do mar, fato que causou muitos abalos diante da religiosidade do povo com os rituais dos cerimoniais fúnebres. A ira divina continuava fumegando por toda a cidade e os dias eram de reconciliação com a Divina Misericórdia. O fato tem repercussões mundiais e houve muita mobilização para amenizar os efeitos funestos para com os sobreviventes. Aos poucos Lisboa volta à sua normalidade, isto é, ao que era antes do "castigo divino". O arrependimento não ganhava formas concretas. A corrupção voltou a grassar solta e as interpretações religiosas atingiam a impenitência e a luxúria do clero e da nobreza. Os jesuítas são acusados até de uma tentativa de um ato regicida, atentando contra a vida de D. José. O jesuíta italiano, Malagrida faz acusações e sinistras profecias. A sua popularidade aumentava. Os jesuítas deixam de ser os confessores dos reis, as Missões lhes são tomadas e, enquanto são expulsos de Portugal, Malagrida é condenado a expiar seus pecados na terrível mas previsível fogueira.
As ruínas da igreja de São Nicolau, que ilustra a capa do livro.


O quarto capítulo se ocupa das memórias e interpretações do terremoto. Lembrando que o século XVIII foi o século do iluminismo. As luzes da razão começavam a clarear as ideias obscurantistas que prevaleciam até então, mas permaneciam distantes de Portugal. As interpretações religiosas da ira divina, prevaleciam até mesmo no mundo da ciência iniciante, havendo convergências entre a religião e a ciência. Praticamente todos os sábios do mundo se manifestaram sobre o fenômeno, entre eles, Kant, Voltaire e Rousseau. A observação de Rousseau é interessante e merece um destaque: "Em seu entender, a natureza não reunira 20 mil casas de seis ou sete andares e, se os habitantes da cidade tivessem sabido dispersar-se para construir suas casas, os desgastes teriam sido quase nulos! Quantos não morreram - criticava com amargor - por quererem buscar roupas, papéis ou dinheiro?"

Também Voltaire lança um olhar extremamente irônico: "Os 100 mil homens que desapareceram em Lisboa já foram reduzidos a 25 mil. Em breve, o serão a 12 ou dez. Apenas os negociantes sabem com precisão suas perdas, pois conhecem as contas de sua mercadoria; os reis não conhecem jamais as de seus homens". Quanto aos comerciantes ingleses, também atribuíam à ira divina, as causas do terremoto. Mas a sua racionalização era diferente. Era a versão protestante. Lisboa fora castigada pela onipresença religiosa dos jesuítas, pelos excessos do Tribunal da Inquisição e pela constante perseguição aos comerciantes judeus.
Sebastião José de Carvalho e Melo, o poderoso marquês de Pombal.


Uma última palavra sobre o marquês de Pombal, o "homem terremoto". Esta caricatura, a historiadora a buscou em Oliveira Martins, que assim se referia ao plenipotenciário ministro. "Ele diria que o 'jesuitismo' caricatural que dominava o país deixara um 'vazio'. Para substituí-lo, inventou-se o 'homem terremoto', Pombal, cuja ação desapiedada, tão violenta quanto a do desastre natural, procura dar uma modelagem racional à sociedade". Pombal é apresentado nos livros de história como um déspota esclarecido. De déspota, com certeza, tinha tudo. Em compensação, de esclarecido, muito pouco. Em suma, um grande e belo livro.




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