quinta-feira, 17 de março de 2016

Padre Cícero. Poder fé e guerra no sertão. Lira Neto.

Conheci o Lira Neto através de sua monumental biografia de Getúlio Vargas, em três volumes. Nunca escondi o meu gosto por biografias. Poucos livros nos dão melhores informações e contextualizações do que boas biografias. O meu amigo, professor Rodolfo sabe disso. Rodolfo é amigo de Lira Neto. Se conheceram, ministrando cursos em universidades americanas. E é meu amigo, dos tempos em que juntos lecionávamos na Universidade Positivo. Pois bem, Lira Neto estaria em Curitiba e marcara um jantar na casa de Rodolfo e, Rodolfo, gentilmente, me convidou.
Um livro extraordinário. Lira Neto. Padre Cícero - Poder, fé e guerra no sertão.

Um bom filé e um vinho, melhor ainda, nos reuniu numa agradabilíssima roda de conversas. A minha curiosidade sempre ronda pelas leituras de formação da pessoa. Todo o intelectual passa por uma montanha de livros. Falamos muito sobre leituras. Lira Neto também nos falava de sua trajetória de escritor/pesquisador. Obviamente que Getúlio ocupava o centro das conversas, os últimos documentos, as reações, as palestras. Mas, notava eu, volta e meia, Lira Neto falava de outro de seus livros, Padre Cícero. Falava com tanto entusiasmo, que já no dia seguinte, embora a nossa conversa tivesse entrado madrugada adentro, comprei o livro e já terminei de lê-lo. Uma maravilha.

Quem é afinal de contas o padre Cícero ou o famoso Padim Ciço. O que é a Juazeiro do Norte, a Meca do Sertão? As primeiras palavras na orelha do livro já nos fazem estas interrogações sobre o padre: "Santo ou impostor? Charlatão ou visionário"? Já Juazeiro foi o grande cenário do que ocorreu e continua ocorrendo. Para se ter uma opinião e formar uma ideia a respeito, será necessária a leitura de Padre Cícero - Poder, fé e guerra no sertão. Será necessário ler 557 páginas originadas de uma exaustiva pesquisa em fontes, muitas delas inéditas, sobre o apaixonante tema. É uma viagem à Serra do Catolé, ao Cariri no sertão nordestino, com passagens por Fortaleza, Rio de Janeiro e até no Vaticano. O santo padre chegou até a ser excomungado pelo Santo Ofício. Hoje, qual um novo Galileu, também está sendo reabilitado.
Entre um filé, taças de vinho e boas conversas. Com Lira Neto.

A introdução e o epílogo do livro se voltam para a atual questão da reabilitação do padre católico, que chegou a ser excomungado, mas que nunca teve a pena aplicada. No entanto, viveu grande parte de sua vida proibido de exercer as suas funções sacerdotais. Lira Neto terminou a escrita do livro em 2009 e a reabilitação ainda não acontecera, como ainda não aconteceu até hoje. Com isso as igrejas evangélicas neopentecostais continuam disputando fiéis, até entre os devotos do padim. Conter o avanço dos neopentecostais seria o grande objetivo da reabilitação de Ciço. "O padre Cícero é como um antivírus contra o avanço das seitas evangélicas", conta D. Fernando Panico, bispo da diocese do Crato, em entrevista ao New York Times, em 2005.

O livro, na verdade, são dois livros. O livro Primeiro: A cruz. E o segundo: A espada. Juntando os dois, temos o subtítulo do livro: Poder, fé e guerra no sertão. O primeiro livro tem três protagonistas: O padre Cícero, a beata Maria de Araújo e o bispo de Fortaleza, D. Joaquim. Mas um quarto personagem emerge naturalmente. É o padre Alexandrino, o vigário de Crato, uma espécie de inspetor Javert, sempre no encalço do padre. O segundo tem dois protagonistas: o padre Cícero e o seu preposto político, o médico Floro Bartolomeu. Se o padim é o santo da história, a Floro coube o papel de demônio.
Lira Neto com o professor Rodolfo Prates, o anfitrião da noite.


O padre Cícero Romão Batista nasceu no Crato em 1844, e não é um beato igual a Antônio Conselheiro. Ele é padre da igreja católica, formado dentro dos rigores do seminário da Prainha, de Fortaleza, dentro do espírito do Concílio de Trento e da contra reforma. O padre Cícero será sempre um padre extremamente conservador e abominava qualquer tentativa de desestabilização da ordem, menos as provocadas por seus beatos em suas batalhas e romarias. Antes de Cícero havia um padre místico que o deve ter inspirado e que introduziu o povo nas práticas de misticismo, o padre Ibiapina. Mas o centro de tudo será a beata Maria de Araújo e as hóstias que sangravam. Quanto mais ela era investigada, mais as hóstias sangravam. Os investigadores e homens da ciência, incrédulos igual a São Tomé, mudavam de lado, diante de tantas e tão renovadas evidências de milagre.

D. Joaquim está apavorado e põe no encalço de Cícero o terrível padre Alexandrino, cuja grande virtude não era a inteligência mas sim, a obediência e a fidelidade canina. A pequena Juazeiro, que ganha até capela, será comentada na nunciatura apostólica e chegará até a Congregação do Santo Ofício, em Roma. Padre Cícero passa por todas as penalidades imagináveis, chegando até a excomunhão, em documento assinado pelo Santo Ofício, mas que nunca foi aplicado. Quanto mais Cícero era perseguido, mais romeiros chegavam ao Juazeiro. Estes romeiros, formados por miseráveis em desespero, foram os responsáveis pela formação de uma das maiores fortunas materiais do Ceará, a fortuna do padre Cícero. Cícero chega até a ir para Roma, se defender perante o Santo Ofício. Ardilosamente a beata Maria de Araújo some do cenário, como também os paninhos embebidos em sangue, em obediência às ordens eclesiásticas, mas as medalhinhas bentas e milagreiras continuam fazendo a fortuna de Cícero.
A estátua do padim Ciço, em Juazeiro, no sertão do Cariri.


A ousadia do padre era enorme e o seu carisma popular só aumentava. Um dia chegam a Juazeiro duas pessoas, uma delas é o médico baiano Dr. Floro Bartolomeu. A cada dia que passa, Floro mais o padim, se unem quase que umbilicalmente. As ambições de Floro não tem limites. A dupla ocupa quase todos os cargos políticos possíveis. Cícero chegou a ser prefeito, vice presidente do Ceará e deputado federal, sem nunca ter ido ao Rio de Janeiro. Floro, além de  temido coronel, prefeito e deputado federal, também arregimentava e comandava tropas. Foi ele que organizou a "Sedição do Juazeiro", que derrubou o governo estadual. Também foi ele que convenceu o padre Cícero a solicitar o apoio de Lampião para combater a Coluna Prestes. Esta aventura patrocinou a Lampião o título de capitão, boa indenização e alguns agradáveis dias em Juazeiro. Prestes já driblara todo mundo e saíra ileso do Ceará. Floro é acometido se sífilis e morre cedo, com menos de 50 anos. Certamente isto foi bom para o padre.

Depois disso começa o declínio físico do padre, furúnculos, imobilidade e cegueira. Mas nada abalava o seu prestígio. Morre em 20 de julho de 1934 aos 90 anos de idade. Este é dia da romaria à cidade e que impulsionou o próprio crescimento econômico da cidade. Das rivalidades entre o Crato e Juazeiro, Juazeiro só saiu ganhando. Juazeiro tem hoje em torno de 250 mil habitantes, enquanto que o Crato, algo em torno de 95 mil. Juazeiro, além do grande centro de romarias também é o grande centro universitário do Cariri. Juazeiro, inclusive virou sede de diocese a partir de 1962. O Crato fora a segunda diocese do Ceará. Esta batalha Cícero sempre perdeu. Juazeiro que era para ser esta sede.
Lira Neto autografando o meu terceiro volume da biografia do Getúlio.


Para mostrar que Cícero não é unanimidade, embora os trabalhos de reabilitação estejam continuando, um historiador do Cariri, em livro intitulado O apostolado do embuste, assim se refere a Maria de Araújo, a beata que deu origem a toda a sua fama:"uma negra ignorante, que ingeria bons goles de cachaça, após fingidos êxtases". Se você se dirigir a Juazeiro, seja conduzido pela fé ou pela curiosidade e comprar lembrancinhas, especialmente as estatuetas do padre Cícero, certamente você está comprando produtos made in China. Em Juazeiro, a população evangélica já forma 10% da população. Estes trocaram os milagres do padim, pelos milagres da teologia da prosperidade. Se eles efetivamente acontecem, isso já é uma outra questão.

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